Em maio de 1945, a 2ª Guerra Mundial ia chegando ao fim, com a derrota das forças armadas alemãs. A rendição do Japão era questão de tempo. Dr. Plinio lançou, então, uma edição do “Legionário” consagrada ao acontecimento. E, com suas vistas costumeiramente elevadas, quis no editorial chamar a atenção dos católicos para a grandiosidade trágica do quadro histórico no qual se encaixava a tormenta cessante.
A proveitemos estes instantes fugazes, em que os cadáveres ainda estão quentes, em que as lágrimas ainda não secaram, em que a terra ainda não sorveu o sangue dos combatentes, em que os incêndios ainda fumegam, e os canos das metralhadoras ainda não esfriaram, para fixar em um quadro geral bem vivo a recordação destes anos de confusão e de tormenta. É este o instante propício para tal tarefa. A experiência histórica é muito mais substanciosa quando colhida em um passado recente e palpitante, do que nos herbários secos e fanados dos compêndios e dos arquivos.
Época de demolição
Será, por exemplo, muito difícil que a história venha a compreender, tão bem quanto nós, a época agitada, crepuscular, indecisa, em que irromperam no mundo os partidos totalitários. É preciso ter vivido em 1920, ou 1925, para compreender o tremendo caos ideológico em que se debatia a humanidade. A Cristandade parecia um imenso prédio em trabalhos finais de demolição. Não havia o que não se fizesse para a destruir. Aqui, especialistas silenciosos e metódicos arrancavam uma a uma as pedras, desconjuntavam as traves, tiravam as portas a seus batentes, e as janelas às suas esquadrias. Essa faina, que faziam com o mutismo, a solércia e a agilidade de conspiradores, progredia com frieza inexorável, sem perda de um instante, sem desperdício de um segundo. Revezavam-se os operários, mas de dia e de noite, enquanto os homens se divertiam, dormiam, trabalhavam ou passeavam, o trabalho não se interrompia. Mais além, monstros de figura humana assaltavam os muros vetustos da Cristandade com o furor delirante e impetuoso com que se atacaria, não um edifício de pedra, mas um edifício de carne viva, um grande corpo. Era a escalada de multidões raivosas, que entravam pelas portas e pelas janelas, saqueavam relíquias indefesas e tesouros abandonados, arrebentavam vitrais, profanavam altares, destruíam imagens ou abatiam com um só estampido de dinamite torres centenárias, muralhas imensas, contrafortes até há pouco inexpugnáveis. E a alguma distância, aos aplausos dos “gravoches”, dos vadios, dos [incendiários], outros operários procuravam, com o material roubado à Casa de Deus, construir em suas linhas extravagantes e sensuais, a orgulhosa Cidade do Demônio.
Tudo isto não é senão alegoria. E não há alegoria, nem imagem, nem descrição que possa retratar a confusão daqueles dias de “pós-guerra” [depois da 1ª Guerra Mundial].
O florescimento das nações cristãs no passado
A conversão dos povos ocidentais não foi um fenômeno de superfície. O germe da vida sobrenatural penetrou no próprio âmago de sua alma, e foi paulatinamente configurando, à semelhança de Nosso Senhor Jesus Cristo, o espírito outrora rude, lascivo e supersticioso das tribos bárbaras. A sociedade sobrenatural — a Igreja — estendeu assim sobre toda a Europa sua contextura hierárquica e, desde as brumas da Escócia até as encostas do Vesúvio, foram florindo as dioceses, os mosteiros, as igrejas — catedrais, conventuais ou paroquiais —, e, em torno delas, os rebanhos de Cristo.
Esta florescência religiosa projetou-se sobre a sociedade civil. O príncipe, o artesão, o filósofo, o guerreiro, o menestrel não era cristão apenas dentro do templo, no momento da oração. Ele reinava, produzia, pensava, guerreava e cantava como cristão. Seu reino era um reino cristão, seu trabalho era um trabalho cristão, seu pensamento era um pensamento cristão, sua guerra era uma guerra cristã, e seu canto era um canto cristão. Toda a vida civil, organizada com fundamento na Lei de Deus, ordenou-se segundo a vontade de Deus, e segundo a ordem natural por Deus estabelecida quando criou o universo, o mundo e o homem. Formou-se assim uma sociedade temporal estabelecida sob o signo de Cristo, segundo a lei de Cristo e conforme a ordem e a natureza própria de cada coisa criada por Deus. […]
Condição para a grandeza: a prática dos Mandamentos
Os Mandamentos são a expressão da vontade de Deus para os homens. Esses Mandamentos ensinam o homem a agir como Deus quer. Infinitamente sábio e bom, Deus não poderia querer que agíssemos em sentido diverso ou contrário da natureza que Ele nos deu. Assim portanto, os Mandamentos nos ensinam a proceder segundo nossa própria natureza. E eles contêm, pois, as regras fundamentais que se há de observar para conseguir a grandeza da sociedade civil, enquanto sociedade civil.
Esta glória e bem-estar temporal é o prêmio natural da sociedade civil. Mas ela tem, mesmo neste mundo, um prêmio mais alto. Explica Santo Agostinho que os homens podem ser punidos ou premiados em outra vida, por suas ações boas ou más, mas que as nações recebem seus castigos ou prêmios nesta vida, porque a nação, como tal, não transpõe os umbrais da eternidade. No céu haverá gregos, troianos, romanos ou egípcios. Não haverá nem Grécia, nem Tróia, nem Egito, nem Roma. Assim, pois, é preciso que Tróia, ou a Grécia, ou qualquer outra nação receba seu prêmio neste mundo. Deus auxilia a grandeza dos povos fiéis, não só pelo jogo natural das causas segundas, mas por uma multidão de graças especiais e por vezes miraculosas, de que está cheia a história das nações cristãs.
Isto explica por que, sob o influxo de todas as energias naturais e sobrenaturais entesouradas nas nações cristãs, foi emergindo lentamente do caos da barbárie na alta Idade Média, a sociedade civil cristã, a Cristandade. Sua beleza, de início indecisa e sutil, mais promessa e esperança que realidade, foi se afirmando à medida que, com o escoar dos séculos de vida cristã, a Europa batizada “crescia em graça e santidade”. Nasceram por essas energias humanas vitalizadas pela graça, os reinos e as estirpes fidalgas, os costumes corteses e as leis justas, as corporações e a cavalaria, a escolástica e as universidades, o estilo gótico e o canto dos menestréis.
Os admiradores da Idade Média se exprimem mal quando sustentam que o mundo atingiu nessa época o máximo de seu desenvolvimento. Na linha em que caminhava a própria civilização medieval, muito ainda haveria que progredir. O encanto grandioso e delicado da Idade Média não provém tanto do que ela realizou, como da harmonia profunda e da veracidade cintilante dos princípios sobre os quais ela construiu.
Ninguém possuiu como ela o conhecimento profundo da ordem natural das coisas; ninguém teve como ela o senso vivo da insuficiência do natural — mesmo quando desenvolvido na plenitude de sua ordem própria — e da necessidade do sobrenatural; ninguém como ela brilhou ao sol da influência sobrenatural com mais limpidez e na candura de uma maior sinceridade. Ela foi feita de homens que lutaram e sofreram na realização desse ideal, e que na sua caminhada muitas vezes recuaram ou desfaleceram ao longo do caminho; mas de homens que sempre continuaram fiéis ao seu ideal, ainda mesmo quando dele se afastavam por seus atos. E daí uma consonância profunda de todas as instituições, de todos os costumes, de todas as tradições nascidas nessa época, não só com as circunstâncias contingentes e transitórias do tempo em que surgiram, mas com as exigências genéricas da alma humana “naturaliter christiana” e as tendências espirituais peculiares aos povos do Ocidente.
A sociedade cristã se adapta a cada povo
Tocamos aí em um ponto de importância fundamental. Todos os povos têm sua mentalidade coletiva e seus problemas regionais. Entre um indiano e um sueco, um espanhol e um chinês, a diferença é enorme. Há um espírito nacional indiano, sueco, chinês ou espanhol, que permanece íntegro durante os séculos, enquanto a nação existir. Os homens, como os cursos de água, poderão ir correndo para a eternidade. Mas as nações, como os rios, continuam sempre as mesmas nos dados essenciais de seu temperamento. Além destas circunstâncias psicológicas, há problemas peculiares à situação geográfica de cada região: da Índia, da Suécia, da China ou da Espanha. Também estes problemas — ao menos os mais profundos e dignos de nota — são invariáveis.
Toda a civilização cristã há de ser inteiramente cristã, católica, universal, mas há de se ajustar, há de respeitar, há de desenvolver e estimular as características de cada região e de cada povo.
A sociedade cristã, dissemos, é a que vive de acordo com a própria ordem natural. E, por isto, ela há de respeitar integralmente as características regionais que pertencem à natureza de cada povo ou região. Respeitar e desenvolver, porque essas características são dons de Deus, e todos os dons de Deus merecem desenvolvimento.
Nos séculos de civilização cristã, cada povo teve, pois, suas características próprias, bem definidas. A alma nacional, em todas as suas aspirações universais e humanas, em todas as suas aspirações nacionais e locais, encontrou plena e ordenada expansão dentro da civilização cristã. Daí a enorme variedade de formas de governo e de organização social ou econômica, de expressões artísticas e de produções intelectuais, nas varias nações da Europa medieval.
A expansão das tendências nacionais causa ao povo um grande bem-estar físico. A mentalidade nacional inspira a formação de símbolos, costumes, artes, nos quais ela se exprime, se define e se afirma, se contempla a si mesma e se solidifica. Esses símbolos são um patrimônio nacional, uma condição essencial para a sobrevivência e progresso espiritual da nação. Eles têm uma consonância indefinível e profunda com a mentalidade nacional, uma consonância que é natural e verídica, e não puramente fictícia e convencional. Por isto, em via de regra, cada povo elabora uma só arte, uma só cultura e nela caminha enquanto existe. O maior tesouro natural de um povo é a posse de sua própria cultura, isto é, quase a posse de sua própria mentalidade.
Uma civilização cristã só pode ser admirada pelas almas que, fora da Igreja, tendem para o Catolicismo; só pode ser admirada e vivida pelas almas que, dentro da Igreja, vivem do Catolicismo. Ela é incompreensível, é cheia de tédio, é odiosa até em sua superioridade solar, para as almas que começam a abandonar a Igreja, ou que, do lado de fora, blasfemam contra ela. A civilização cristã só viveu plenamente enquanto foi sincera e profundamente católica a Europa.
Demolição iniciada com o protestantismo
E a grande tragédia da civilização ocidental foi precisamente a ruptura com o Catolicismo que, no século XVI, arrebatou ao grêmio da Igreja as nações protestantes.
[…] O protestantismo negou explicitamente in radice tudo quanto significasse autoridade, ordem, ascese. Onde pôde, proclamou a abolição de toda a hierarquia eclesiástica, nivelando inteiramente os leigos aos clérigos, e abolindo a própria clericatura. Onde não lhe foi possível ir tão longe, porque os espíritos ainda tinham alguns fragmentos de senso cristão, conservou o presbiterato, abolindo entretanto o episcopado e a supremacia pontifícia, ou admitindo mesmo o episcopado, mas negando o Papa. Mas, analisada a fundo a situação de qualquer bispo ou ministro protestante perante seus fiéis, vê-se que seu cargo é mais aparência vã, que realidade, e que mesmo entre os episcopais o bispo pouco ou nada se diferencia, em essência, de qualquer fiel. Isto, na ordem do governo e dos sacramentos. Em matéria de doutrina, o livre exame protestante é a afirmação do anarquismo na vida da inteligência. […]
A história do mundo, do século XVI para cá, não é senão, em forma ora explícita ora larvar, [a aplicação] dos princípios que constituem o substractum mais profundo do protestantismo.
Na Filosofia, nas artes, na cultura, na política, na vida social, os móveis psicológicos que haviam determinado em outros países a explosão protestante e concomitantemente sua completa transformação, provocaram a pari passu nos países católicos uma transformação profunda da vida civil, e geraram um estado de contradição que se tornou crônico e habitual. Tudo se transformou nos países ocidentais sob o sopro do orgulho e do sensualismo moderno, com exceção das crenças religiosas. O desajuste entre as crenças e a vida se tornou cada vez mais profundo. Tudo se paganizou por obra dessas massas e dessas elites que, entretanto, continuavam a não ser pagãs, e que professavam em matéria religiosa convicções cada vez mais dissonantes de tudo quanto pensavam, sentiam ou faziam em outros terrenos. As instituições cristãs, os costumes cristãos, as tradições cristãs foram perdendo sua vitalidade durante os Tempos Modernos, foram tendendo a se transformar gradualmente em relíquias sem vida, em hábitos meramente protocolares, em vestígios de um passado mumificado.
Em fins do século XVIII, havia, sob a aparência de uma sociedade cristã, uma realidade social que já tendia para o paganismo com toda a força de seu dinamismo. A Revolução Francesa, que se propagou por todo o orbe católico, foi a explosão insofrida dessa realidade nova, que atirava para os ares todos as destroços do passado. […]
Em matéria de Religião, as massas, de cristãs passaram a revolucionárias, as elites, de deístas a indiferentes ou atéias. Em matéria de filosofia, do cartesianismo passou-se para o materialismo evolucionista. Em matéria política, do Estado organizado a Rousseau, para a negação niilista de todo e qualquer Estado. Em matéria social, a burguesia destruíra a aristocracia em nome da igualdade; e armada do mesmo princípio a plebe se aprestava a estrangular por sua vez a burguesia. Em matéria educacional, do autoritarismo pedagógico da velha escola, para o igualitarismo socialista e para o comodismo didático da escola nova. Em matéria artística e literária, do classicismo rígido e formalista, para as convulsões do romantismo, e daí para as extravagâncias dos modernos sistemas artísticos.
Em 1918 um novo sopro de espírito revolucionário varreu a Europa. Deu-se o imenso estrondo do desabamento do czarismo, e se implantou o comunismo na Rússia. Toda a vida intelectual e social se seccionou ainda mais do passado. No Ocidente, a hegemonia se deslocava cada vez mais da Europa tradicional para os Estados Unidos niveladores. […]
Mas, como dissemos, desse passado ainda quente, se desprende uma grande lição. É inútil querer fazer sem a Igreja ou contra a Igreja, sem a hierarquia ou contra ela, a obra de Deus. “Enquanto o Senhor não edificar a cidade, trabalharão em vão os que construírem”. “Enquanto Ele não a proteger, lutarão em vão os que a guarnecerem”. […]
Esta a grande verdade que o fracasso do totalitarismo revela. Relembramo-la nesta ocasião memorável, não para reavivar dissídios com irmãos de crenças, mas para declarar que — excetuada esta grave lição que contém o suco de toda a trágica experiência destes últimos anos tão ricos em ensinamentos — tudo esquecemos, e que só queremos olhar para o futuro. Do passado não trazemos nem queixa, nem ressentimentos, mas apenas a convicção da vitória desta tese, que deve ficar: os católicos vencerão desfraldando inteiro o estandarte católico, e não ocultando-se sob as dobras de doutrinas políticas equívocas. […]
“In hoc signo vinces”, disse uma Voz a Constantino num momento em que parecia incerta a sorte das armas. Essa Voz não se calou durante quinze séculos, e ainda hoje é a mesma a sua mensagem para o mundo hodierno.
(Excertos do Editorial do “Legionário” de 13/05/45)