sábado, octubre 5, 2024

Populares da semana

Relacionados

A entrada no caminho do sofrimento

O caminho da cruz é lindo e cheio de surpresas. A entrada nele é uma resolução heroica e viril, mas ao mesmo tempo é uma ponderação dos mil matizes do sofrimento, conforme o Espírito Santo vai mostrando a cada alma.

Muitos pregadores – eu não os censuro por isso –, quando falam da cruz, querem levar a alma num só voo para a admiração e para a eventual aceitação das consequências dela naquilo que têm de mais lancinante e terrível. Dizem: “Eu vou te falar da cruz. Olha, São Vicente sofreu tal martírio assim; esse outro suportou tal situação…”

Isso é bom ou não?

Mil gamas e mil modos de falar da cruz

Ao se tratar da questão da cruz, é necessário, antes de tudo, um discernimento dos espíritos, porque, de fato, a graça chama as pessoas para ela conforme as almas e em momentos certos. Há casos em que a graça chama, de uma vez, para o pináculo da cruz, e pode ser um principiante. Às vezes, pelo contrário, ela vai se revelando lenta e gradualmente.

Em determinado auditório, dependendo da situação, pode acontecer de um pregador ser levado, pelo discernimento dos espíritos, a ensinar a cruz no que ela tem de mais terrível: “Meus caros irmãos, quereis ouvir o que é a cruz? Ouvi estas palavras: ‘Eli, Eli, lamma sabactani’”1 (Mt 27, 46). Começar por aí e produzir um choque.

Flávio Lourenço
Martírio de São Pedro de Verona – Museu Castelo Sforzesco, Milão

Pode também começar pela doutrina dos pequenos sacrifícios de Santa Teresinha do Menino Jesus, porque a cruz é tão divina, tão enorme, tão complexa, que não pega nela quem quer, do jeito que quer. Cada um é atraído pelo Espírito Santo, pela graça, a pegá-la de uma maneira. E, se pegar de modo errado, não entra no caminho da cruz.

Há, pois, mil gamas e mil modos de falar da cruz.

Diferentes vias

Há vias excepcionais e isso está ligado à teoria do estado de perfeição ao qual estão obrigadas as vocações religiosas. A perfeição, quando vivida em toda a sua autenticidade, é um estado de cruz. Entretanto, o estado de perfeição é para ser praticado por muitos, não, porém, por todos. Esses muitos constituem uma multidão e, ao mesmo tempo, uma minoria em comparação com toda a humanidade.

A grande maioria das pessoas vive a cruz nas condições de vida de um fiel comum, porque, do contrário, a sociedade temporal desaparece. Assim sendo, há uma quantidade infindável de almas não chamadas para esse estado de perfeição. Contudo, são chamadas a admirar a perfeição e, pela caridade, alcançá-la. A partir do momento em que o indivíduo deixa de ter um amor abrasado, entusiasmado pela perfeição, ele começa a relaxar. Só consegue ser correta a alma que admirou profundamente a cruz para a qual ela não é chamada.

Assim, pregar a cruz no que ela tem de mais terrível, mas tranquilizando o fiel: “Não se tome por um escrúpulo torturante por ser incapaz disso, mas ame um sofrimento que não lhe é pedido, sem ser tragado por ele. Se for pedido – porque não se sabe qual é o futuro do homem – você terá graças que não tem agora. Sentir-se proporcionado com isso, no momento, não é a sua obrigação.”

Tenho a impressão de que, ao se levantar o estandarte da cruz, esta é a primeira precaução. Do contrário, perde-se o rumo.

Admirar sem remorsos

Lembro-me de uma experiência pessoal. Eu tinha muita admiração pelos mártires, mas tinha um medo imenso de passar pelos tormentos que eles passaram. Resultado: ficava perturbado, dizendo para mim mesmo: “Você está extasiado de admiração por eles. Quero ver quanto vale essa admiração. Queria ver se você, diante de um leão, tomaria a mesma atitude. Não tomaria! É um fracalhão. Este medo prova que sua admiração é hipócrita!”

E isso me perturbava a fundo, porque parecia uma increpação virtuosa. Até que ouvi um padre dizer, de passagem: “A maior parte desses mártires tinha a graça no momento de chegar em contato com a fera.” Eu disse: “Aqui está!” Comecei a admirar os mártires sem nenhum arrepio.

Isso acontece tanto com os sofrimentos lancinantes, quanto com os sofrimentos menores, na vida de todos os dias. De repente, vemos alguém fazer um sacrifício de que não somos capazes. Admiremos! E admiremos sem remorsos nem increpações tontas contra nós mesmos.

Geralmente nós dizemos: “É bem verdade, essa cruz, eu, no momento, não carrego. Carregarei algum dia? Como vai ser quando eu tiver que carregar?”

A resposta é a seguinte: “Não se ponha o problema! Admire energicamente e sem restrições, e peça a graça para, caso lhe for imposto esse sofrimento, você ter a coragem de enfrentá-lo, mas sem certa forma de angústia que faz mal à alma.” Porque, às vezes, a previsão é pior do que a realidade.

Os matizes para aguentar a cruz

Se, por outro lado, me deparo com um sacrifício sem nada de extraordinário, mas porque sou poltrão não tenho coragem de fazer, vou pedir para Nossa Senhora ter pena de mim e me dar as forças que eu deveria ter e não tenho: “Salve Regina, Mater misericordiæ, vita, dulcedo et spes nostra, salve…” Vou rezar e acabarei obtendo. Mas nunca me aproximar da cruz em seco.

Flávio Lourenço
Encontro de Nosso Senhor com Nossa Senhora – Igreja de São Pedro, Gante, Bélgica

Assim a cruz se torna manuseável. Fora disso, não será possível. E o exemplo foi Nosso Senhor. Ele, como que se manifestou sem proporção com a sua Cruz, a tal ponto de dizer: “Pater, si fieri potest” (Mt 26, 39). E a oração, como não podia deixar de ser, foi gratíssima a Deus, que mandou um Anjo para consolá-Lo. E na Via Crucis, um Cireneu, uma Verônica, o encontro com Nossa Senhora.

Entenda-se que tudo é muito matizado. Sem essas matizações enviadas por Deus, fugimos da cruz. Ela se torna um disparate. Se Deus matiza tanto para nós o caminho do sofrimento, por que havemos de imaginá-lo sem isso?

Alma aberta à admiração

Então, recomendo: procure admirar muito a perfeição para a qual você não será chamado. Admire-a, porque é um modo de obtê-la! Quer a prova? Quem seria capaz de arcar com o sofrimento que arcou Nosso Senhor Jesus Cristo ou Nossa Senhora? Não tem um! Nem de longe temos substância para isso!

Mas, de tanto admirar aquilo de que não somos capazes, algo daquela graça entra em nós. A admiração é o cálice através do qual recebemos a qualidade superior.

E, na medida em que admiro a capacidade de um outro sofrer, entra em mim a mesma capacidade. Não significa que entrará tanto quanto há no outro. Mas a medida de que sou capaz é, à força de admirar, que eu a recebo!

A alma aberta à admiração é aberta a todas as estrelas, a todos os sóis. A alma fechada à admiração está entregue a si mesma. Da alma invejosa, então, não sei o que dizer… Esta apedreja, insulta as estrelas.

Entrada no caminho da cruz

Portanto, a entrada no caminho da cruz é a admiração à cruz. Naturalmente, antes de tudo ao Crucificado e à Co-Redentora. Mas não nos limitemos a exemplos históricos. Procuremos ver a cruz entre aqueles que, em torno de nós, praticam o amor a ela.

A Paixão de Nosso Senhor não passou, de algum modo ela é permanente. Mas só entro em nexo com o que passou quando admiro aquilo de congênere passando em torno de mim. Devemos, portanto, olhar admirativamente em torno de nós.

Flávio Aliança

Sei que muitos têm a prática tão infeliz e miserável de não fazer exame de consciência e de nem saber o que se passa na própria alma. Por aí entram pedregulhos de inveja. Não tenhamos ilusão! Ou temos a certeza de que tratamos de expulsar a inveja, ou ela habita em nós. Não é alentador, mas é a pura verdade.

O caminho da cruz e os graus de perfeição

A respeito do condicionamento da via da cruz é preciso dizer o seguinte: seria um erro afirmar que as pessoas chamadas para a vida temporal não são chamadas à perfeição.

Com efeito, todos os que pertencem a Ordens religiosas são chamados para o estado de perfeição. O religioso que se recusa explicitamente a tender para a perfeição comete, ipso facto, pecado mortal. É doutrina da Igreja, ele deve tender para a perfeição.

Mas, se não houver na sociedade um bom número de pessoas que, dentro das suas condições de vida, busquem a perfeição cristã, ou ao menos tenham a intenção de buscá-la, a sociedade temporal fenece, perece.

Não devemos, portanto, identificar “perfeição” somente com a condição eclesiástica ou religiosa, consentindo para a sociedade temporal a imperfeição desavergonhada. Cada um foi chamado a um grau de perfeição. Para o estado de perfeição dos religiosos a grande maioria não foi chamada, mas, sim, o foi a um certo teto de perfeição dentro da vida que leva, e para isso deve tender.

Na Igreja de São Basílio, em Moscou, temos uma imagem disso. Aquelas cúpulas poderiam ser o gráfico das perfeições. Algumas perfeições são enormes, outras são pequenas, torreõezinhos tendo na ponta uma cúpula pequenininha também. Assim é a multidão das almas. Toda alma é como um torreão que tem no alto uma cúpula, ou seja, uma perfeição própria para a qual deve tender.

Alguém pode chegar ao Céu sem passar pelo Purgatório, tendo vivido na sociedade temporal para uma perfeição menor. E, porque foi reto nessa perfeição, seguiu um ideal muito belo e alcançou a visão de Deus.

Nagarjun(CC3.0)
Cúpulas da Igreja de São Basílio

Compreendendo isso, creio que a alma fica arejada e balizada para entrar no caminho da cruz, o qual é lindo e cheio de surpresas, como uma navegação num mar ignoto apresenta tanto as borrascas e as ciladas mais tenebrosas, como também os panoramas mais magníficos.

Suavidades colocadas pela Providência

Há coisas que para o comum das pessoas seria um sacrifício medonho praticar. No entanto, quando alguém é chamado a realizar aquilo pela vocação, se enche de alegria e de consolação até os últimos dias da vida.

Na Gruta de Lourdes, por exemplo. Ali estão homens e mulheres que se esmeram em dar banho aos doentes. Alguém poderia dizer-lhes: “Olhe, ali você vai ter contato com tudo o que há de mais repugnante, de mais terrível. Quando você mexer na água daquele banho imundo, onde tem as cascas de ferida e o pus do mundo inteiro, os micróbios mais ameaçadores de toda doença vão se levantar em você. Aquelas piscinas são anti-higiênicas no sentido mais violento e literal da palavra, e você colocará as suas mãos limpas, desinfetadas, para lavar aqueles doentes. Será uma tortura todo dia.”

Não é uma tortura! Vá, mexa naquilo, a graça vai mexer na sua alma de outro jeito e tudo será feito com naturalidade! Não considere a coisa como em concreto ela não vai ser.

Com muitos sofrimentos se dá isso, com outros não. Sofre-se muito, mas não se percebe que a Providência põe uma suavidade na alma a propósito daquele sofrimento. Quando acaba, a pessoa gosta de se lembrar dele e, às vezes, volta ao lugar onde sofreu para dar graças a Nossa Senhora.

No âmago do sofrimento, uma doçura

É mister cada um compreender: não se deve confrontar ao sofrimento futuro o seu estado de espírito atual, porque quando chegar a hora, Nossa Senhora obterá as forças. Ainda mais Ela, que é Mãe de Misericórdia, dará os meios de sofrermos potavelmente.

Há uma doçura especial no âmago do sofrimento, quando nos lembrarmos do seguinte: esta cruz me foi dada por Deus, é o travesseiro suave que a Mãe de Misericórdia me preparou para aguentar. Vamos adiante! Quando isso terminar, eu terei saudades desses dias.

Luis Samuel
Sagrado Corção de Jesus (acervo particular)

É como Jesus com os discípulos de Emaús. Na hora de Ele ir embora, O reconhecem. Na hora do sofrimento cessar, nós percebemos que mão estava nos segurando e ficamos encantados.

Não nos apavoremos! A entrada do caminho do sofrimento é uma resolução heroica e viril, mas ao mesmo tempo é uma ponderação dos mil acolchoados que entram nisso. Senão, não se viveu nem se sofreu catolicamente.

O exemplo para mim é a iconografia do Sagrado Coração de Jesus. Todas as imagens O apresentam com o Coração coroado de espinhos, transpassado, ferido por uma dor. Em cima, ardendo uma bonita chama do amor de Deus, de virtude, e apontando o Coração para os outros verem o quanto Ele sofria. Mas, sorridente, afável, bondoso, digno e – por que não dizer? – até nobre, é Rei! Rex dolorum, mas Rex caritatis. Rei de amor de Deus e de amor dos outros. É um prodígio de equilíbrio na dor!

(Extraído de conferência de 6/12/1985)

1) “Meus Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”

Artigos populares