Omnia possum in eo qui me confortat (Fil 4, 13) — “Tudo posso n’Aquele que me fortifica”. Esse é o alto patamar alcançado pelas almas que, abertas à ação da graça divina, esforçam-se sinceramente em colaborar com ela. É sobre isto que Dr. Plinio fala no texto transcrito a seguir.
Segundo a doutrina católica, a santificação do homem deve resultar da cooperação de dois elementos: a graça e a vontade.
A graça é um auxílio sobrenatural que Deus dá ao homem, iluminando sua inteligência e fortificando sua vontade a fim de que ele possa ver claramente a Verdade e praticar o Bem. É ponto fundamental da doutrina católica que, sem o auxílio da graça, o homem é inteiramente impotente, na ordem sobrenatural, não sendo sequer capaz de invocar com piedade o nome de Jesus.
Os Sacramentos que Nosso Senhor Jesus Cristo instituiu na Santa Igreja Católica, e a oração, são os meios pelos quais o fiel pode receber essa graça que é condição de sua salvação eterna, tornando com ela onipotente a incapacidade de sua vontade débil, e clarividente a cegueira de sua inteligência falha.
Erro venenoso a ser evitado
Há, portanto, um orgulho insuportável em qualquer erro doutrinário que vise negar à graça divina a menor parcela do papel preponderante que ela ocupa na santificação individual. Tal erro implica em ver no homem uma força de que ele é incapaz, lisonjeando seu orgulho e diminuindo criminosamente a ação de Deus.
Como corolário, é simplesmente abominável o erro dos que quereriam difundir entre os católicos — graças a Deus, este erro está, aliás, muito pouco difundido — uma formação espiritualista na qual o adestramento da vontade por processos muito parecidos com os da protestantíssima Associação Cristã de Moços ocupasse o primeiro lugar, ficando reduzidas para segundo plano, como coisa de somenos importância, a freqüência dos Sacramentos, a prática da oração, e toda a vida de piedade em geral.
Não basta ao homem cifrar-se à recepção dos Sacramentos, se sua vontade não combater de modo intransigente suas más inclinações
Há tanto veneno neste erro, tanto orgulho, uma tão pronunciada infiltração de princípios diametralmente opostos ao espírito da Igreja, que nem sequer nos deteremos em lhe dar refutação.
Se pusemos em evidencia a formal condenação em que este erro deve ser tido por parte dos católicos, foi para que, nas linhas a seguir, ninguém supusesse que nutrimos para com ele a menor complacência. O amor à verdade nos leva, porém, a apontar os efeitos funestos de uma situação decorrente de um erro oposto a este que apontamos. E’ o que procuraremos fazer.
A necessária cooperação humana com a graça
“Aquele que te criou sem o teu concurso não te salvará sem tua cooperação”, dizia Santo Agostinho, dirigindo-se aos fiéis.
Realmente, se é verdade fundamental da doutrina católica a incapacidade total do homem sem a graça, não é menos verdade por isto, que a doutrina católica afirma a necessidade da cooperação humana com a graça, para que seja efetiva a santificação. E quem negasse a necessidade de tal cooperação incidiria irremediavelmente em heresia.
A vida espiritual não pode, pois, limitar-se à recepção dos Sacramentos e à pratica da oração. Por meio dos Sacramentos e da oração, o homem adquire as luzes e as energias necessárias para a prática do bem e o combate às suas más inclinações. Munido destes recursos, é preciso que o homem deles se utilize efetivamente, por um trabalho muitas vezes lento e penoso, em que sua inteligência e sua vontade devem cooperar arduamente para aumentar o amor à virtude, aperfeiçoar-se na sua prática, e vencer as más inclinações e as tentações a que todos estamos sujeitos.
Uma alma que sinta em si a fraqueza resultante do pecado original, e a ação muitas vezes impetuosa das tentações, não se pode dispensar deste trabalho penoso. Seria inútil para ela cifrar-se à recepção dos Sacramentos, se sua vontade não travasse contra as más inclinações um combate cerrado e intransigente.
Exemplifiquemos, para maior clareza.
Em um século cujo ambiente intelectual está infestado por doutrinas as mais heréticas, que muitas vezes se apresentam sob forma subtil e inocente, o católico deve desenvolver um trabalho interior intensíssimo, no sentido de conservar virginalmente incorrupta de qualquer erro sua inteligência, …. de toda e qualquer doutrina oposta à da Igreja ou simplesmente a ela suspeita.
Em segundo lugar, deve o católico fazer toda uma educação de seus sentimentos, seus costumes, e suas inclinações. Quem tem um pouco de prática de vida espiritual sabe o que isto significa de esforços e até de violências sobre si mesmo. É necessária uma vigilância indefectível e atentíssima …. a fuga intransigente das ocasiões de pecado, para combater o mal. E, além disto, há o trabalho positivo de aumentar o amor do bem pela leitura, pela observação atenta a todos os exemplos edificantes, por toda uma serie de esforços enfim, que tendem a levar a vontade a se conformar em tudo com a santíssima vontade de Deus, e, portanto, com os Mandamentos d’Ele e da Igreja.
Claro está — volto a insistir neste particular — que é temeridade estulta e ridícula pretender alguém realizar este trabalho dissociando-o da vida da graça, haurida na oração e nos Sacramentos. Pelo contrário, quanto mais íntima e intensa for a vida da graça, quanto mais assídua e perfeita a recepção dos Sacramentos, tanto mais perfeito será este trabalho que, sem o auxilio da graça, será de todo em todo impossível.
No entanto, cumpre não esquecer que há aí uma parte da cooperação da vontade, e que, sempre que esta cooperação for omitida na formação espiritual, há os maiores desastres a recear.
O desejável perfil das almas virtuosas
Qual a fisionomia espiritual de um homem que, vivendo intimamente unido a Nosso Senhor Sacramentado e à sua Mãe Santíssima, realize com seu favor e proteção este trabalho interior? Bastará olhar para qualquer Santo, e ter-se-á a resposta. De um lado, uma doçura celeste, triunfando humildemente no coração do Santo, sobre as investidas, finalmente domadas, do orgulho, da ira, e de todas as paixões a que o homem está sujeito. De outro lado, completando esta doçura, uma energia invencível, um caráter varonilmente forte, uma vontade mais inflexível que o aço, toda ela posta a serviço do amor de Deus e do próximo. São assim os Santos.
Sem atingir o esplendor desta plenitude espiritual, poderiam ser assim as almas de todos os católicos de vida realmente interior. Enérgicos e varonis, mas cheios de suavidade; mortificados e desprendidos, mas vibrantes de santa alegria; acolhedores e afáveis, mas estuantes de santa combatividade.
(Excertos de artigo do “Legionário”, nº 312, de 4/9/38. Título e subtítulos nossos.)