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Magnífico equilíbrio entre cerimônia e intimidade

Em harmonia com seus anelos de um mundo onde só reinassem elevação, benquerença e bom trato, Dª Lucilia demonstrava uma invariável delicadeza de sentimentos, sempre própria a encantar os corações abertos que dela se aproximassem. Exemplos paradigmáticos dessa riqueza de alma são as cartas e outros escritos que ela dirigia a seus filhos, procurando amenizar as saudades quando estes se ausentavam por breves ou longos períodos.

“Parece-me ouvir-te e ver-te o dia inteiro”

Assim, em meados de 1921, por ocasião de uma estadia de Plinio e Rosée em Santos, na casa de sua tia Zili, irmã de Dª Lucilia, esta enviou ao filho as seguintes linhas, impregnadas de intenso carinho materno:

Filho querido!

Escrevo-te às pressas por estar passando mal e muito cansada pelas muitas visitas que temos recebido ontem e hoje.

Tenho tido tantas, tantas saudades tuas, meu filho, que se quisesse não saberia dizer-te!… Parece-me ouvir-te e ver-te o dia inteiro….. Farei todo o possível para ir ver-te e à minha filhona na segunda-feira, se Deus permitir.

Dizes-me que a casa de tia Zili está lindinha, o que é natural com o seu bom gosto, e tenho muito desejo de vê-la. Recebi ontem e hoje à tarde tuas cartinhas que me alegram tanto…

Sê sempre bonzinho, obediente e delicado para com teus bons tios, e carinhoso e delicado para com Ilka.

Um apertado abraço a tio Nestor¹, muitos beijos a tia Zili e Ilka, e para você….. muitas bênçãos e o coração saudoso de tua mamãe,

Lucilia

Fino e amável, Nestor Barbosa Ferraz comprazia-se no relacionamento afetuoso que sempre manteve com Dª Lucilia e os filhos dela

De outra estadia, um pouco posterior, é este cartão escrito por Dª Lucilia a Plinio:

Filho querido!

Recebi tua carta que muito prazer me causou. Dora² te dirá porque não te escrevo mais hoje, o que farei amanhã sem falta. Vai este pequeno money para ficares mais um dia. Sê bem amável para com tua irmã e prima. Estou com muitas saudades tuas, e envio-te com minha bênção, muitos e muitos beijos e abraços. Divirta-te mas com juízo.

De tua mamãe que muito te quer,

Lucilia

“Quer ver Lucilia? Olhe para Plinio”

O Sr. Nestor, mencionado na carta acima transcrita, sempre manteve afetuoso relacionamento com Dª Lucilia e os seus. Havia-se formado na Inglaterra, ainda em fins do século passado. Parecia um gentleman, muito distinto e amável, mas ao mesmo tempo com uma têmpera de ferro.

Quando seus sobrinhos ainda eram crianças, para distraí-los imitava às vezes dança de café-concerto, o que conseguia representar com toda a perfeição. De bengala e palhetinha, cantava, assobiava, pulava, conseguindo entreter durante um bom tempo seus pequenos espectadores, que o aplaudiam alegremente.

Votou de forma ininterrupta dedicada amizade a Dª Lucilia. Nos últimos anos de vida, conversando com alguns amigos de Dr. Plinio, comentava:

— Lucilia tinha uma personalidade muito marcada e muito vigorosa. E um afeto sem igual por seu filho Plinio. Várias vezes ela me disse que gostaria de dotar o Plinio de grande fortuna e prestígio.

E, como que a confirmar o adágio latino, filius matriscat³, acrescentava:

— Quer ver Lucilia? Olhe para Plinio. Quer ver João Paulo? Olhe para Rosée.

Nos conselhos, afeto e sabedoria

Nos momentos oportunos, nunca faltava a Dª Lucilia a palavra adequada para esclarecer uma conjuntura ou dirimir uma dúvida. Com o passar do tempo, as repreensões foram naturalmente cedendo lugar a recomendações que ela sabia dar como ninguém, deixando que os filhos resolvessem por si os problemas.

Em razão do alto grau de perfeição moral a que aspirava para eles, era levada a aconselhá-los com palavras repassadas de afeto e sabedoria.

O tino psicológico fazia dela exímia observadora e excelente conselheira. Discreta, prestando muita atenção no que se conversava em sua presença, era dotada de agudo senso moral que lhe possibilitava discernir com nitidez os matizes de bem e de mal de tudo quanto em torno dela se passava. Sua percepção era especialmente sensível e fina no que dizia respeito aos Mandamentos da Lei de Deus, à dignidade e à correção.

Sobre assuntos práticos, ela não era de dar conselhos inoportunos, limitando-se a alguma sugestão. Se opinava sobre a conduta de alguém ou emitia seu juízo a respeito de certo conjunto de circunstâncias, insistia em determinado ponto que julgasse não haver sido considerado adequadamente. Alertando a um dos filhos, dizia:

— Preste atenção. Sobre tal pessoa ou tal situação assim, sua mãe acha que…

E se se tratava de precatar contra algum defeito ou má intenção de outrem, nunca o fazia sem antes haver refletido muito. É claro que jamais dava conselhos a alguém diante de terceiros. Este modo de conduzir as almas, impregnado de espírito católico, tornou-se mais admirável ao terem Rosée e Plinio atingido a idade própria a freqüentar a vida social.

Se a quem é muito jovem o tempo parece escoar vagarosamente, a quem é mãe os anos correm céleres. Como que num piscar de olhos ela vê aqueles filhos, que ainda ontem embalava no colo, já prontos a ingressar na sociedade. Para Dª Lucilia, essa nova fase dava origem a não poucos receios.

Na adolescência, Plinio e Rosée começaram a freqüentar a sociedade, preparados por Dª Lucilia, a quem costumavam encontrar rezando diante do seu oratório do Sagrado Coração de Jesus (página seguinte)

Guiando os filhos que vão freqüentar a sociedade

Em conseqüência do anticlericalismo reinante no século XIX e que se prolongou século XX adentro, a prática da religião era vista como mais própria às mulheres. Segundo os conceitos então dominantes, não se admitia que uma jovem não fosse recatada e piedosa. Envolta na branca veste da virgindade, ela subia os degraus do altar apoiada no braço protetor de seu pai, para ser entregue àquele que daí a pouco seria seu cônjuge. Não se tolerava que uma esposa fosse infiel ao marido, e havia todo tipo de compreensão para o esposo que, vendo-se traído, “lavasse no sangue a honra ofendida”. Este era um dos clichês da linguagem do tempo.

Contudo, embora se exigisse do sexo feminino, com razão, o cumprimento da Lei de Deus, contraditoriamente isto não ocorria em relação aos homens. O modelo de virilidade então na moda, herdado do positivismo caduco e anticlerical do século anterior, prescrevia como impróprio a um espírito “objetivo” e “esclarecido” — outros termos do vocabulário redundante e vazio da impiedade em voga — a prática da Religião Católica, incluída no rol das superstições que a ciência acabaria por derrubar com seus progressos deslumbrantes. Como decorrência dessas idéias, havia todas as complacências em relação àqueles que, antes ou depois do casamento, não conservassem a castidade segundo seu estado. Era isto tão difundido que alguns pais chegavam a favorecer, e por vezes até a impor veladamente, que os próprios filhos passassem a freqüentar casas de perdição.

Por tudo o que já conhecemos de Dª Lucilia, bem podemos calcular a sua aversão a essa mentalidade anticristã e o quanto procurava formar seu filho em sentido diametralmente oposto.

No que diz respeito às filhas, as mães procuravam precavê-las de modo discreto. Mas até quando os usos sociais manteriam as regras de moralidade em relação às moças? De qualquer modo, assim como para evitar que uma criança se machuque não se lhe pode proibir de andar, correr e saltar, também era inevitável o ingresso da juventude na vida de sociedade, ainda que com o risco de extraviar-se.

Ao atingir 15 anos de idade, as jovens eram apresentadas em um baile de gala às relações de suas famílias, o que se revestia, conforme as épocas e o nível social, de maior ou de menor solenidade. Este costume se mantém ainda hoje, mesmo em países mais modernos e avançados como os Estados Unidos, onde é habitual convidarem-se príncipes e princesas de sangue a honrar semelhantes event os com sua presença.

Embora no Brasil os tempos felizes do Império, com suas cerimônias e seu protocolo, tivessem ficado para trás, pomposas festas e bailes continuavam a atrair e deslumbrar a sociedade. Dª Lucilia não se furtava às obrigações que sua posição lhe impunha. Por isso, quando chegou a hora de seus filhos começarem a freqüentar esses ambientes, ela os preparou convenientemente.

Tais encontros sociais, apesar de se revestirem das aparências de diversão, constituíam também uma espécie de campo de batalha sui generis, onde se jogavam interesses de família das mais diversas ordens. Ali se faziam e desfaziam projetos de casamentos dos quais não estavam ausentes aspectos econômicos, relações de sociedade e até alianças políticas.

Por isso, ao se abrirem as portas dessas solenes atividades aos jovens novatos, era chegada a hora de colocar em prática a arte das boas maneiras. Sobretudo era o momento de se mostrarem dignos descendentes das respectivas estirpes.

Quando Dª Lucilia não acompanhava seus filhos, estes, ao voltarem para casa, encontravam-na freqüentemente a rezar diante de seu oratório do Sagrado Coração de Jesus. Ela nunca se recolhia sem que Rosée e Plinio retornassem. Nas conversas domésticas do dia seguinte, queria saber como havia transcorrido a festa. Às vezes as circunstâncias lhe davam oportunidade para uma “lição ao vivo” a respeito de tipos característicos daquela ainda requintada sociedade.

Cultivando o trato cerimonioso

Aliás, cumpre ressaltar que, embora já estivessem em plena era da influência liberalizante do American way of life, os parentes próximos de Dª Lucilia conservaram entre si um trato amenamente cerimonioso, em inteira consonância com o modo de ser desta dama paulista, sempre inclinada a tudo quanto era decoroso e elevado.

Mas, Dª Lucilia não seria ela mesma se não aliasse à admiração por um relacionamento impregnado de dignidade aquele seu contínuo e envolvente afeto. E era esse magnífico equilíbrio entre cerimônia e intimidade, mantido com sabedoria por ela e pelas gerações passadas, que tornava particularmente encantadores os aspectos miúdos da vida de todos os dias.

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

1) Nestor Barbosa Ferraz, esposo de Dona Zili.

2) Sobrinha de Dª Lucilia.

3) Expressão latina que significa: o filho sai à mãe.

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