Num dia de carnaval, lá pelos idos de 1914-1918, o menino Plinio participava com sua família de um corso de carnaval, quando viu passar um carro com a capota aberta, e duas ou três moças com chapéus compridos, em forma de cone, de cujas pontas caíam largos tules. Extasiado com a beleza desses chapéus, perguntou a alguém que fantasia era aquela.
— É da Idade Média. — responderam-lhe.
“Idade Média! O que será? Eu preciso conhecer mais sobre isso…”
Foi o primeiro encontro de Dr. Plinio com aquela era histórica, e o início de uma veneração que durou até seu último suspiro.
Um dos princípios básicos que costumamos aprender é o de que Deus criou todos os homens iguais por natureza.
Em virtude disso, todos têm análogos direitos à vida, à propriedade, à liberdade individual, à dignidade pessoal, à saúde, etc.
Entretanto, ao lado desses direitos essenciais, inerentes à condição humana, existem também determinados direitos acidentais, oriundos dos predicados que caracterizam cada indivíduo. Assim, o homem mais inteligente, o mais capaz, o mais trabalhador, o mais virtuoso, pelo fato de possuir certas qualidades superiores às do nível comum, acaba adquirindo privilégios igualmente invulgares.
Então, a verdadeira justiça dentro da sociedade não consiste em ser absolutamente igual para todos, mas em tratá-los de tal maneira que lhes assegure os direitos essenciais da pessoa humana, porém distribuindo melhores vantagens e honrarias àqueles que, dotados de superiores atributos, suportam com maior responsabilidade o fardo dos interesses coletivos.
A situação social do clero na civilização medieval
Dentro dessa linha de idéias, na Idade Média prevalecia o conceito de que duas classes sociais deveriam sobretudo viver para o bem público, granjeando as legítimas distinções decorrentes do alto serviço que prestavam ao povo.
Em primeiro lugar, o Clero. Sendo esta a classe, a bem dizer, instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo através do sacramento da Ordem, sendo os membros do Clero sagrados e incumbidos na Terra de uma missão divina, é compreensível que — máxime numa civilização católica — constituam a primeira categoria social. É quase uma imposição da honra que os distingue, pois a unção sacerdotal confere à pessoa do padre uma preeminência humana. Ele está posto acima de seus semelhantes para ser um traço de união entre estes e Deus, merecendo respeito como representante de Nosso Senhor no mundo e como uma personificação da religião católica.
A este principal atributo do sacerdote se soma o fato de que o exercício de seu ministério é da maior importância para o próprio Estado. Com efeito, ao contrário do que hoje se passa, para o homem da Idade Média a razão fundamental de ser do Estado não era formar uma grande cooperativa de caráter financeiro. O Estado não existe apenas para saciar o apetite de todos os seus cidadãos. Sua tarefa primordial consiste em promover as condições de uma vida virtuosa para os indivíduos, de maneira a conduzi-los à glória celestial. Em outros termos, a função essencial do Estado é favorecer e incentivar o bem.
Se isto é assim, compreende-se que, dentro da sociedade, nenhuma classe tem direito a mais preeminência do que aquela que representa exatamente o elemento propulsor da salvação eterna dos homens, ou seja, a classe sacerdotal. Esta posição de destaque se acentuava tendo em vista que ela, por sua natureza e pelas circunstâncias que a envolvem, é propensa a constituir uma elite não só na virtude, mas também no saber, o que a faz se sobressair, uma vez mais, na orientação da vida social.
De outra parte, como esta classe arca com obrigações muito pesadas — antes de tudo, a de renunciar a fazer carreira e fortuna para se dedicar inteiramente aos interesses da Igreja —, como o sacerdote renuncia até ao prazer legítimo de constituir família, para se entregar por completo ao serviço de Deus e das almas, maior deve ser a sua recompensa. Por causa disto, a esta classe, cuja função era de capital importância, cabia uma posição privilegiada na civilização medieval.
A alta missão de verter o próprio sangue
Ao lado da classe sacerdotal vinha a categoria militar. Esta tinha obrigação de derramar seu sangue pela sociedade. Não se entendia a carreira militar como uma profissão qualquer, nem o homem consagrado ao mister das armas podia ser considerado como um mercenário que vendia seu sangue para o Estado. As tropas mercenárias sempre existiram na Idade Média. Eram lutadores que gostavam dos combates, sentiam-se mal longe dos perigos bélicos e por isso se faziam anunciar nos mercados internacionais, prestando serviços a quem os contratasse. A palavra mercenário não tinha então um sentido pejorativo. Pelo contrário, esses soldados combatiam com muita fidelidade, característica que os distinguiu e os tornou célebres muito tempo depois do período medieval. Quando a monarquia francesa caiu em 1789, as tropas que se manifestaram mais fiéis ao rei foram os mercenários suíços. E o último vestígio da tropa mercenária existente no mundo é também a Guarda Suíça do Papa, soldados contratados naquele país, e que servem com exímia presteza ao Sumo Pontífice.
A condição do mercenário era, enfim, honesta. Muito diferente, porém, apresentava- se a situação do militar de carreira. Tratava-se de um homem que, em favor do bem comum, renunciava a tudo aquilo que a vida pode dar de legitimamente bom. E chama a atenção que a mais belicosa época da história, a que nos ofereceu o maior número de grandes guerreiros, de indivíduos de imensa valentia e denodo, a que mais glorificou a coragem, foi ao mesmo tempo a época que teve mais consciência do que a condição de militar tem de pungente e de dramático para quem se entrega a ela de corpo e alma.
Explica-se, em virtude da profunda catolicidade dos homens de então. Imbuídos dos ensinamentos da Igreja, sabiam compreender que a coragem não consiste apenas em ter toda a noção da importância do perigo, mas em enfrentá-lo por um ato de deliberação e de vontade. Nisto imitavam o modelo perfeito, o protótipo de heroísmo, que é Nosso Senhor Jesus Cristo no Horto das Oliveiras. Ali o Divino Salvador não teve nenhuma atitude de estourado, incompatível com sua santidade infinita. Ele mediu toda a tristeza das dores que ia sofrer e chegou a sentir tanto medo que suou sangue. Apesar disto, como era dever d’Ele enfrentar aqueles padecimentos para cumprir sua missão redentora, enfrentou tudo, levou a Cruz até o alto do Calvário e se deixou imolar. Neste holocausto havia um ato deliberado da vontade de Jesus.
Ora, o cavaleiro cristão medieval era um homem que tinha eminentemente esta concepção da coragem, possuindo no mais alto grau a noção do perigo. Com freqüência aparecem na literatura medieval as manifestações de tristeza do cavaleiro que parte para a guerra. Com lágrimas nos olhos ele se despedia de seus familiares, os quais o acompanhavam até certo trecho da estrada. No último adeus, longe do castelo, chorava-se mais uma vez. E os cavaleiros sentiam tantas saudades de sua própria pátria, que combinavam com seus parentes uma determinada hora do dia em que rezariam certas orações para, ao menos em espírito, mitigarem a saudade. Vê-se aí a noção profunda, eminentemente cristã, que tinham do risco, da dor da separação, da aventura que a guerra representava e quanto todos sofriam com isto.
A par dessa idéia do que representava o perigo dos combates, o cavaleiro medieval estava habituado a uma alta idéia do dever, conhecendo de modo claro as razões de ordem sobrenatural, deduzidas da Fé e da Revelação, que o levavam a correr esses riscos. E era por causa dessas razões sobrenaturais que ele de fato se expunha à luta e à morte.
Característica desse estado de espírito era a vigília de armas do cavaleiro cristão.
Durante a noite, enquanto fora tudo é silêncio e repouso, o futuro guerreiro reza sozinho no interior de uma igreja ou de uma capela. Sobre uma mesa diante do altar estão as armas que ele irá revestir no dia seguinte, quando for armado. Em meio às suas fervorosas preces, ele vai se compenetrando de que, uma vez sagrado cavaleiro, não mais se pertencerá a si mesmo. Pelo juramento que brotará de seu coração e de seus lábios, ele dispõe para sempre a sua vida a serviço da Igreja, dos órfãos, das viúvas, dos fracos e oprimidos, em cuja defesa é obrigado a entrar na liça.
Cumpre notar que a Santa Igreja não ocultava a esse homem o risco que ele iria correr. Pelo contrário, fazia-o meditar durante uma noite inteira a respeito desse perigo. As armas colocadas diante do altar mostram a ele toda a rudeza do combate que vai enfrentar. Aquele elmo significa que a cabeça dele pode ser rachada e o seu pescoço cortado, enquanto a couraça o adverte de que seu peito pode ser transpassado. Tudo lhe recorda a iminência do perigo que vai correr, por amor a Nosso Senhor e a Nossa Senhora, de quem todo cavaleiro é um servidor e um arauto.
Com esta noção eminente do peso do sacrifício e da dor, com esta aceitação das altas razões pelas quais um homem deve de fato expor-se a tanto, compreende-se que o medieval tivesse a condição militar no mais elevado conceito. À semelhança do que se passava com o Clero, esta classe que arcava com a ingente obrigação da vida militar tinha de ser necessariamente privilegiada. Um homem de armas era considerado um verdadeiro benemérito, e as condições de guerreiro e de nobre eram inseparáveis. O nobre era o militar, o militar era o nobre, porque vertia o seu sangue pelo país, porque suportava o pior nos campos de batalha. Era, portanto, legítimo que desfrutasse também de maiores direitos, e da situação privilegiada, das honras e deferências que lhe eram tributadas.
A influente classe dos intelectuais
Ao lado das duas classes precedentes havia outra que, pela ordem natural das coisas, sempre teve e terá uma imensa influência na sociedade: a universitária ou dos intelectuais. Mais do que por interesses, os homens se deixam conduzir por idéias. Sem estas, ele é incapaz de se mover.
Na Idade Média o pensador elaborava suas doutrinas no recesso das universidades, mas gozava de uma glória da qual dificilmente temos noção em nossos dias. Quando, naqueles tempos, um mestre dava um grande curso, ele adquiria logo fama intelectual e estudantes do mundo inteiro acorriam para ouvir suas exposições. Era objeto de tanta admiração que, depois de uma brilhante aula, os alunos costumavam estender suas capas sobre a rua, a fim de sobre elas passar o ilustre sábio. Às vezes o levavam de liteira para casa, aplaudindo-o e conversando com ele. De maneira que, não raro, o trânsito parava nas ruas estreitas da cidade medieval, dando passagem a uma turba de universitários carregando o mestre, sentado numa liteira. Era o Prof. Fulano de tal, de tal cátedra, que acabava de dar uma aula extraordinária.
Essa fama e essa influência se irradiavam pela cidade. Por causa disso, os atos acadêmicos se revestiam de muita importância na vida civil. Quando havia defesa de tese numa universidade, não era de estranhar que as maiores personalidades do lugar comparecessem para assistir ao evento intelectual e presenciar a disputa entre dois grandes doutores. Aquelas pessoas todas estavam vendo um ato relevante da existência social: era uma discussão de idéias, pelas quais elas nutriam um respeito eminente.
Aliás, uma das belezas da Idade Média vem do fato de se encontrar na organização de sua sociedade um universo de teorias harmônicas e coerentes entre si, atestando a existência de um mundo profundamente dominado pelas idéias. Princípios e noções elaborados pelos concílios, pelos teólogos, pela Igreja, pelas universidades, enfim, e que na realidade governavam os homens.
Tríplice elite e sumidades populares
Temos, então, uma tríplice elite participando da direção da Idade Média: elite eclesiástica, representando uma missão divina, o saber, a virtude; elite social, representando a nobreza incumbida da guerra, da meditação, da coragem, do patriotismo considerado com espírito sobrenatural, encarregada da manutenção das tradições da sociedade; e a elite intelectual, feita dos plebeus e dos nobres desejosos de seguir a vida universitária e que constituíam a luz da sociedade.
Dentro dessa civilização protegida por essa tríplice elite, qual era a situação do homem do povo?
Ele não constituía uma espécie de matéria anônima. A própria condição popular era repleta de elites, de caráter profissional. As corporações dos artífices produziam operários excelentes, e quando um deles se revelava dotado de talento incomum, passava por um exame e, se aprovado, recebia o título de mestre. Esses mestres eram sumidades em seu próprio gênero e ainda tinham dentro do seu pequeno âmbito muita honra e muito galardão.
Além disso, o homem do povo vivia protegido pela Igreja, dentro de uma existência humilde, mas cuja modéstia a Igreja sabia iluminar. De que forma? Ensinando a todos que o importante neste mundo não é ser rico ou pobre, ser nobre ou plebeu, inteligente ou ignorante, mas é ter Fé Católica, autêntica e íntegra, ser puro, honesto e leal. Fazendo compreender que, após a morte, o Eterno Juiz haverá de julgar a cada um, não de acordo com a posição que ocupou nesta vida, e sim segundo o bem ou o mal que praticou na Terra. De maneira que essa convicção, iluminando a vida do homem do povo, conferia muita dignidade à própria pobreza e à própria mendicância. É o que explica certas cenas da Idade Média em que vemos reis lavando os pés de leprosos, servindo os pobres, e declarando que, se pudessem, deixariam o trono para se tornarem mendigos de Jesus Cristo.
Desta realidade do Juízo Final e dos supremos objetivos da existência humana depreendia-se toda a organização medieval. A figura desta vida passa. Ela não é senão uma representação. No fundo, o homem vale pela virtude que pratica. Eis o grande, o fundamental axioma em que se baseava a civilização na Idade Média.