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Extraordinária manifestação de fé

Em sua infinita sabedoria, a Divina Providência freqüen­temente se aproveita de cer­tos fenômenos que tocam nossos sentidos corporais para, através deles, exer­cer determinada ação em nossas almas. Assim, por meio daquilo que atin­ge sua percepção física, o homem discerne algo de sobrenatural que lhe en­riquece o espírito.

Um exemplo. Estamos passando diante de uma linda catedral gótica, sentimo-nos atraídos pela imponência de suas linhas, e entramos: igreja va­zia, silenciosa, recolhida, com seus gran­des vitrais batidos de sol, povoando de pedras preciosas o solo do templo. O ambiente e o colorido logo nos prendem o interesse pelas vistas. De repente alguém toca o órgão, despertando nossa sensibilidade pelo ouvido. Mas, ao mesmo tempo em que a beleza da arquitetura, da luminosidade e do som nos colhe, age também em nós um toque da Graça, pelo qual percebemos uma misteriosa analogia daquelas maravilhas sensíveis com cer­tas riquezas sobrenaturais, com valo­res da Fé, com virtudes e princípios católicos.

Mais: aquela grandiosidade de formas, aquela envolvente música de ór­gão, aquela radiosa policromia dos vitrais, são símbolos de determinadas perfeições do Criador e, por isso, tornam-se veículos para o homem conhe­cer algo do próprio Deus.

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É o que acontece quando se contem­pla a Catedral de Bourges, tida como uma das mais bonitas da França.

Em sua ampla e esplendorosa fa­chada se sucedem portas e arcarias gó­ticas, incrustadas de esculturas incontáveis. No centro, a grande rosácea, ponto de convergência de toda a de­co­ração. O pórtico principal, formado por várias camadas de ogivas, prolonga-se sob um esguio e anguloso telhado, guarnecido por vigorosas colunas. À direita e à esquerda da entrada maior se abrem mais quatro, me­no­res, também precedidas por fileiras de ogivas, recobertas de pequenas ima­gens talhadas em pedra.

Dr. Plinio admira a majestosa Catedral de Bourges, durante sua última viagem à Europa, em 1988


Cada um dos pórticos se enfeita com uma rosácea e uma imagem mais expressiva. Na principal está a figura de Nosso Senhor Jesus Cristo vitorioso, triunfante, deixando passar os fiéis pe­las grossas e lavoradas portas de ma­deira. As entradas laterais obedecem à mesma estrutura, embora menos ricas, fazendo o papel de damas de hon­ra que acompanham a rainha, comple­tando-lhe a beleza arquitetônica e si­métrica. O mesmo papel de acólito desempenham as colunas secundárias que separam as entradas menores da principal, assim como as ornamenta­ções daquelas servem de respeitoso e enlevado pendant  para as desta.

De todo esse conjunto sobressai uma expressão harmoniosa do espírito hie­rárquico predominante na época his­tórica em que foi construído. Tudo nele é ordem, é classe, é categoria; é o espírito da Idade Média.

Agora, se tomarmos em considera­ção que todos os adornos da Catedral — e são inúmeros! — foram esculpidos em pedra, e que muitas dessas esculturas são genuínas obras de arte, facilmente percebemos que seus reali­za­do­res não se preocupavam com o tem­po, nem com o trabalho e a mão-de-o­bra necessários para chegar a essa ma­ra­vi­lha da arquitetura cristã. Não se in­co­mo­davam com prazos, não ti­nham fre­nesis de terminar logo. Nada na Catedral de Bourges parece ter sido feito “a galope” ou “a toque de cai­xa”. Na­quele tempo, não se marca­vam datas para concluir edificações co­mo essas. Pelo contrário, sabia-se que talvez vá­rias gerações passariam, até que os ho­mens pudessem admirar em todo o seu esplendor mais um grandioso templo católico.

Para se ter um pouco idéia do trabalho que uma construção desse por­te exigia, basta reparar na espessura das paredes, na quantidade imensurável de pedras utilizadas, na profusão de imagens e floreados góticos, de colunetas e arcarias: é quase uma orgia de labor e dedicação. É um esbanjamento de arte. Na verdade, uma extraordinária manifestação de fé.

Chama particularmente a atenção as seqüências de ogivas formando arcadas que resultam numa composição de força e leveza, arrematadas por ­agulhas e florões de pedra que lhes conferem especial nota de elegância, todas apontando para o firmamento, co­mo a dizerem aos homens: “Confiem, pois no Céu tudo se resolverá!”

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O edifício é imenso, porque as ca­tedrais eram feitas para conter a po­pulação inteira da cidade, naquela é­po­ca áurea da Civilização Cristã em que todos eram católicos. Assim, tornava-se possível que a maioria dos fiéis assistisse às missas e participasse das ce­rimônias litúrgicas dentro do recinto sagrado, ao abrigo das vicissitudes cli­máticas, nevascas, tempesta­des, for­tes calores, etc. A igreja era a própria ca­sa do povo, porque era o palácio de Deus, onde havia lugar para ricos e pobres, reis e senhores feudais, auto­ridades eclesiásticas e re­pre­sentantes civis, para nobres e plebeus. Dentro, formavam uma só família cristã, sob o manto da Santa Ma­dre Igreja e a celeste proteção de Maria Santíssima.

Nos vitrais de Bourges, a Bíblia escrita em páginas de vidro

Todos podiam se beneficiar da amplitude daqueles espaços interiores, das sólidas e imponentes colunas que se lançam para o alto abrindo-se e se encontrando em ogivas gó­ticas, das gros­sas paredes de pedra e — mais que tudo — da ma­ravilhosa luminosidade mul­­ticolorida, pro­por­cionada por seus des­lumbran­tes vitrais. Verdadei­ras ren­das de vidros policro­ma­dos, fun­din­do-se numa mes­cla de co­res capaz de encantar ao mais insensível dos homens.

Fixando-se neles a aten­ção, é-nos permitido discernir uma série de figurinhas que se movem, que tomam atitu­des, que falam e gesticulam: em ge­ral são representações de episódios do Antigo e do Novo Testamentos, cenas his­tó­ricas da Cristandade, bata­lhas memoráveis, ou acontecimentos decisivos para a humanidade, como a Res­surrei­ção dos mortos e o Juízo Final.

Nessa feeria de cores predomina o azul, profundo, lin­díssimo, lembrando o anil de certas asas de borboletas que embelezam nossos bosques tro­picais. Talvez não fosse exa­gerado afirmar que o azul de Bourges é o azul da França, posto em vitrais que não só entusiasmam, como encerram lições de His­tó­ria Sagrada: os fiéis que não sabiam ler, acabavam conhe­cendo a Bíblia atra­vés daquelas luminosas e coloridas páginas de vidro…

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Vale apontar, ainda, a beleza dos chamados botaréus, os contrafortes que arrimam as paredes externas da igreja. Parece que os medievais não possuíam ple­no domínio dos cálculos necessários pa­ra garantir a estabilidade de gigantes­cos edifícios como a Catedral de Bourges. Para evitar que ruís­sem, erguiam do lado de fora uma série de ar­cos-botantes, colocados de encontro ao corpo da igreja.

Mas essa função prática se oculta sob formas tão bo­nitas, tão elegantes, tão leves que, se alguém pensasse em tirar essas escoras, os artistas da França e do mundo inteiro protesta­riam. Compreende-se: quando se tem uma grande alma, até o não-conhecimento leva ao belo…

Os arcos-botantes da Catedral de Bourges, símbolo da grandeza da alma cristã sempre à procura do mais belo

Eis a Catedral de Bourges, o fruto de almas cristianizadas e estuantes de fé, que acabaram dando origem a esse magnífico estilo gótico, por meio do qual nos aproximamos da grandiosidade e da força, da harmonia e leveza infinitas de Deus Nosso Senhor.

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