Ao redigir, por volta de 1940, um memorando sobre vida espiritual (para esclarecimento de um sacerdote vinculado à Ação Católica), Dr. Plinio não teve dificuldade em discorrer sobre o caminho que leva à virtude: ele mesmo o procurava trilhar desde a infância. Daí suas observações não serem meras normas abstratas, colhidas em algum manual de vida espiritual, mas o resultado de experiências vividas no fragor das batalhas interiores. Aqui reproduzimos a segunda parte desse trabalho.
Tendo em vista a tremenda decadência moral de nossa época, a ninguém será possível conservar uma perfeita pureza de corpo e alma sem uma vigilância constante sobre o seu interior. As más sugestões pululam por toda parte e provocam movimentos desordenados da sensibilidade, que podem passar despercebidos no início, simular-se mesmo de bons sentimentos e de virtudes, até que a onda avolumada se lance impetuosamente e já quase não haja mais como resistir-lhe. Assim, muitas vezes o incauto alimenta, com ingenuidade culposa, a própria chama em que arderá.
São Luís G. de Montfort e a basílica que leva seu nome, em St. Laurent-sur- Sèvre. Ensina-nos ele que, para alcançarmos a perfeição, precisamos nos esvaziar do que há de mau em nosso interior
Maior perigo corre, ainda, a integridade da fé. Nesse mundo desvairado de nossos dias, a nossa sabedoria católica pode ser substituída por loucura, se não a guardarmos com escrupuloso cuidado. Há muitos que pensam manter íntegra a sua fé, mas, na verdade, conservam apenas as exterioridades do dogma, sem a substância, porque o mais íntimo e oculto recanto da inteligência lhes adere à terra. Isto porque, nos afazeres quotidianos, não tiveram a devida reflexão, e se expuseram às surpresas de uma natureza decaída, e, assim, deformou-se-lhes a mentalidade, como já ficou visto. Principalmente, sem este prudente hábito de ver, julgar e agir em si mesmo, não será possível a formação do senso católico, esta delicada flor da fé, que nos dá a capacidade de sentir, nas mínimas coisas, o bom odor de Cristo ou o cheiro pestilencial da mundanidade; e de saber a cada momento o que é mais favorável à Igreja, pois que o amor ardoroso tem pressentimentos daquilo que o entendimento ainda não viu.
Dominar as tendências desordenadas
O homem é livre, isto é, determina-se no seu agir, sendo senhor de seus atos. Não quer isto dizer que não sinta a atração dos objetos vários, que lhe aparecem como fins possíveis de sua atividade, mesmo porque, sem esta atração, a vontade humana não poderia agir. De fato, a vontade se inclina de si mesma para o bem, e, portanto, não se pode mover se algum bem não lhe é proposto. Entretanto, o bem para o qual a vontade se inclina própria e necessariamente é o bem absoluto, pois a experiência prova, irrefragavelmente, que todos desejamos uma felicidade ilimitada. Tal felicidade, porém, não pode ser dada por nada deste mundo, porque as coisas deste mundo são limitadas em si mesmas. Logo, nada deste mundo pode atrair irresistível e absolutamente a vontade. E quando a vontade escolhe algum objeto, ela o faz tendo em vista aquela felicidade ilimitada, para cuja consecução o objeto escolhido contribui de alguma forma.
Muitas vezes, embora vejamos o verdadeiro bem, sentimos o peso das más tendências que nos impelem para objetos que não nos podem saciar o nosso ardente desejo de uma felicidade plena, antes afastam dela, mas que iludem esse desejo com uma aparente satisfação, que logo se dissipa. Cedemos, então, muitas vezes, mas cedemos livremente, sabendo que abandonamos o caminho do verdadeiro bem, movidos pelo imediatismo, que acha muito longo e difícil aquele caminho. E, livremente, abdicamos de nossa liberdade, entregando-nos às forças tremendas que o pecado original desgarrou em nós. Assim, de queda em queda, vai-se enfraquecendo o poder da vontade, até que aquelas forças se tornam mais poderosas e escravizam o pecador, que, daí por diante, só se utiliza da liberdade para entregar-se a elas. É necessário, portanto, fortalecer a vontade pelo exercício sistemático de atos austeros, para que ela possa, sem perigo, dominar as tendências desordenadas que todos possuem por causa do pecado original, e, assim, pôr ordem na alma.
O que mais fortalece a vontade é a graça de Deus
Nada, porém, pode robustecer tanto a vontade e iluminar a inteligência a respeito do bem como a graça de Deus, que nos vem abundantemente de Jesus Cristo, Nosso Senhor. Neste sentido, há uma dupla definição do Concílio Tridentino que ilumina singularmente o assunto. Em primeiro lugar, é heresia afirmar que os infiéis não possam praticar atos virtuosos, porque, se assim acontecesse, o homem não seria naturalmente livre. Entretanto, quem afirmar que é possível ao homem, sem o auxílio da graça, cumprir durável e totalmente os mandamentos, seja anátema, por que isso seria negar os efeitos do pecado original. Assim, aquela educação da vontade nunca poderia ser completada sem a graça, mas pela graça adquire seu verdadeiro significado: é a correspondência livre do homem ao dom inestimável de Deus.
Alem disso, a graça transforma os nossos atos, dando-lhes um valor sobrenatural.
Assim, é da graça que dependem a possibilidade e a excelência da obra de nossa santificação; mas é de nossa vontade que depende sua realização. Do contrário, já não haveria mérito; e seria absurdo supor que aquilo que nem o pecado original tirou, fosse suprimido pela graça, isto é, a liberdade. Não é assim, mas a graça é um conforto para a vontade, que, fortalecida, sabe afirmar-se entre tantas forças dissidentes, e seguir sua inclinação natural para o verdadeiro bem, e não a sua decadência, escolhendo livremente, segundo o seu critério interior, o que lhe parece melhor. E se a graça é um conforto, é necessário que a vontade se sirva deste conforto, para não acontecer que a graça fique vazia em nós e, portanto, inútil, conforme ao que diz o Apóstolo.
Assim, será ilusão pensar numa santificação automática pela graça. A vida dos santos, pelo contrário, demonstra que a santificação é uma luta ardorosa e tenaz.
Meios para vencer a batalha da santificação
A prece verbal ou mental, particular ou litúrgica, não constitui o fim da vida espiritual. Este fim é a santificação, isto é, a morte à nossa natureza decaída e nossa reedificação em Jesus Cristo (Rom. 6, 3-11). Mas a prece é um meio eficaz para dotar o católico de maiores recursos para o combate interior. O auxílio divino, porém, é concedido segundo a reta intenção de quem pede, em qualquer espécie de prece.
Assim também os sacramentos, embora contenham objetivamente a graça, e sejam por aí um recurso certo, de nada servem sem a correspondência interior de quem os recebe. Da mesma forma, o Santo Sacrifício da Missa é uma torrente caudalosa de graças, mas a maior ou menor recepção delas, com maior ou menor aproveitamento, depende essencialmente das disposições interiores dos assistentes.
A graça nos torna capazes de vencer dificuldades cada vez maiores
Uma graça assim correspondida por nós, e que em nós produziu fruto, é penhor de novas e maiores graças. E, ao conceder-nos esta maior liberdade, Deus exige de nós mais numerosos e excelentes frutos de santificação, até nossa perfeita consumação em Jesus Cristo. Assim, a maior abundância de graças conferidas a uma pessoa não se destina a privar a sua vida espiritual de todos os obstáculos, mas a torná-la capaz de vencer obstáculos sempre maiores. De fato, a nossa natureza foi deformada, de alto a baixo, pelo pecado original.
Diz São Luís Grignion de Montfort:
“Nossas melhores ações ordinariamente são manchadas e corrompidas pelo mau fundo que há em nós. Quando se põe água limpa e clara num vaso que cheira mal, ou vinho numa pipa cujo interior está sujo de um outro vinho que lá houve, a água clara e o bom vinho se alteram, e tomam, facilmente, o mau cheiro. Igualmente, quando Deus põe no vaso de nossa alma, deteriorado pelo pecado original e atual, suas graças e seus orvalhos celestiais ou o vinho delicioso de seu amor, seus dons ordinariamente são danificados e deteriorados pelo mau fermento e pelo mau fundo que o pecado deixou em nós. Nossas ações, mesmo as virtudes mais sublimes, se ressentem disso.
É, pois, de uma enorme importância para adquirir a perfeição, o que só se consegue pela união a Jesus Cristo, esvaziar-nos do que há de mau em nós: do contrário, Nosso Senhor, que é infinitamente puro e odeia infinitamente a menor mancha na alma, rejeitar-nos-á, e não quererá unir-se a nós”.
E continua pouco depois: “Para esvaziar-nos de nós mesmos é necessário todos os dias morrer a nós mesmos: quer dizer que é preciso renunciar às operações das potências de nossa alma e dos sentidos do corpo, que é preciso ver como se não víssemos, ouvir como se não ouvíssemos, servir-se das coisas deste mundo como se não nos servíssemos delas” (La vraie dévotion, cap. 2º, art. III, §§ 78 e 81).
Assim, é necessário que destruamos o edifício viciado de nossa natureza pecaminosa, para reedificá-lo em Cristo. E quanto mais progride e se aprofunda este trabalho, com a graça de Deus, mais dificultoso se torna, porque remontamos para a causa de todos os nossos defeitos, até chegarmos àquele ponto em que mereçamos receber do Espírito Santo a transformação final. Não só mereçamos recebê-la, mas tenhamos ânimo de suportá-la.
(Continua no próximo número)