Talentoso historiador francês, G. Lenôtre (1855-1935) observava que há dois tipos de acontecimentos que se entrelaçam no correr dos anos: alguns que se passam num patamar público e vão constituir a “grande histoire”, e outros, a nível individual, que formarão a “petite histoire”. Muitas vezes, é preciso conhecer as miudezas desta última para saborear melhor os episódios mais importantes. É o que acontece na conferência de Dr. Plinio transcrita nestas páginas. Ao narrar uma das recordações de sua vida — os “fatinhos”, como seus discípulos mais jovens chamavam — ele nos faz viver um pouco da história do Brasil das primeiras décadas do século XX.
Lembro-me de um “fatinho” mais pitoresco, envolvendo a Revolução de 1924. Consistiu esta num levante liderado pelo general Isidoro Dias Lopes, então comandante da guarnição federal em São Paulo.
O presságio dessa revolução chegou-me aos ouvidos, estando eu atrás de uma porta.
Um tio Secretário da Agricultura
Um dos irmãos de minha mãe havia sido eleito deputado federal. Logo depois, foi convidado a ser Secretário da Agricultura de São Paulo. Considerava-se o cargo de Secretário de Estado mais importante que o de deputado, por participar diretamente do governo, o que levou meu tio a aceitar o convite. Quando eu soube disso, tive uma surpresa. Ele dominava muito bem a arte de conversar, boa prosa, presença interessante, inteligente, lido e culto, com uma das melhores bibliotecas de São Paulo. Parecia-me que faria um bom papel como deputado. Já como Secretário da Agricultura, teria de cuidar de café, nabo e cebola, matérias muito menos propícias para a eclosão do talento dele.
Mas, é claro, ele não se lembrou de consultar um jovem de 14 ou 15 anos como era eu…
Reveladores cochichos
Meus pais, minha irmã e eu morávamos na casa de minha avó, que era a matriarca da família, e a quem minha mãe fazia companhia. Vovó Gabriela passava o dia inteiro numa cadeira de balanço, na sala de jantar, cuja porta vidrada dava para o salão de visita. Este último, como era costume naquele tempo, tinha mobília dourada, em estilo francês, com tapeçaria d’Aubusson, etc. Por isso, só se abria para visitantes ou para limpeza.
Certo dia passei por este salão. As lâmpadas estavam apagadas, mas notei, através da porta de vidro, que a sala de jantar achava-se iluminada. Ouvi então duas vozes sussurrarem. Percebi que meu tio, Secretário da Agricultura, completamente fora dos hábitos dele — era um homem corpulento, grande, sentava-se em cadeironas — estava sentado numa cadeirinha bem perto de minha avó, e cochichando.
Na residência de sua tia Zili (ao lado), o jovem Plinio recebia afetuosa acolhida, proporcionando-lhe agradáveis dias no litoral santista. Abaixo, vista da estação ferroviária de Santos
Não querendo ser indiscreto e encostar meu ouvido na porta, apenas pude entender alguns trechos da conversa. No meio do zum-zum, de vez em quando distinguia a palavra “revolução”, e isto aparafusou meus pés no assoalho. Ele contava que o governador (naquele tempo se dizia presidente) de São Paulo, Carlos de Campos, havia recebido uma denúncia de que se preparava uma revolução. Em vista disso, convocara a mais alta autoridade do Exército em São Paulo, o general Abílio de Noronha. Perguntara-lhe o que ocorria e exigiu dele um juramento de que nada estava sendo tramado. E o general — o episódio tinha ainda ares de Ancien Régime — jurara sobre a espada que não havia perigo.
Meu tio externava sérias dúvidas quanto à possibilidade de revolução. Minha avó, pelo contrário, já idosa e com a timidez que outrora caracterizavam as senhoras, mostrava-se mais receosa, e receosa pela vida do filho, naturalmente. Então dava-lhe conselhos, que abrisse os olhos com o tal Abílio de Noronha, etc. Verdadeira matriarca, ela era ouvida por toda a família, como opinião muitas vezes decisiva.
No momento achei a história interessante, mas… era época de férias. Pouco depois, eu e todos os meus parentes partíamos para Santos. Hospedamo-nos na casa de uma das irmãs de mamãe. Ela, seu marido e sua filha nos recebiam como era impossível melhor. Acolhida perfeita. Estávamos em Santos, cidade pela qual tinha enorme predileção, e em breve havia me esquecido completamente do que ouvira.
Notícias “quentes” vindas da capital
Uma manhã, vinha eu chegando do banho de mar, quando alguém me disse do alto da casa, um sobrado comum: “Você sabe que arrebentou uma revolução em São Paulo?”
O fato era tão inaudito, tão inesperado, que não o relacionei com a conversa que apanhara atrás daquela porta de vidro. Fiquei estatelado! Mas olhei para o rosto da pessoa que me dava a notícia, e notei que não estava especialmente emocionada. Entrei para me arrumar, fazer toilette, etc., e o acontecimento fugiu de minha atenção.
Quando desci, encontrei o ambiente completamente diferente. Arrebentara mesmo uma revolução, com tiros de canhão, trincheiras abertas perto de casa, soldados do Exército atirando. Os boatos começavam a chegar e, com eles, o drama. Todos os membros do governo estavam cercados no Palácio Campos Elíseos. O general Isidoro Lopes — um militar que a poeira da história depois devorou — tinha efetivamente se rebelado e, dos arredores de São Paulo, estava dando canhonaços sobre a cidade. Um obus já tinha atingido a sede do Governo, embora felizmente não tivesse deflagrado.
Circulavam boatos os mais fantásticos — nenhum confirmado. Um deles, que consternou muito Dª Lucília, e também a mim, era de que uma bomba havia derrubado a torre da Igreja do Sagrado Coração de Jesus. Na São Paulinho de outrora, uma das mais altas construções era essa torre. E, segundo a notícia, a imagem dourada do Sagrado Coração de Jesus teria caído, e quebrado o braço direito. O que podia significar que era a justiça de Deus, sua destra, que se descarregava.
Outro rumor era de que o povo havia entrado furioso no palácio, seqüestrado o governador e assassinado os secretários de Estado (naquele tempo eram quatro, e um deles, o meu tio). Depois de lhes cortar as cabeças, as colocaram em pontas de lanças e as amarraram no alto do portão, de maneira que eram vistas gotejando sangue. Corria uma série de notícias assim, próprias a deprimir todo tipo de pessoas da sociedade que estavam reunidas em Santos.
A casa de meus tios ficava a dois passos do maior hotel santista, repleto de famílias impedidas de regressar para São Paulo. Ali se encontravam encurraladas. Então, naturalmente, terror! Não se podia telefonar para São Paulo porque as ligações estavam cortadas. E os boatos continuavam a ferver.
Em hora tardia, chega um fugitivo da revolução
Pouco tempo depois, tarde da noite, eu estava dormindo e vieram me chamar:
— Plinio, acorda! Acorda!
Saí de um profundo sono da adolescência, e perguntei:
— O que há?
— Os secretários de estado não morreram. Conseguiram fugir, e o governo também escapou para um subúrbio de São Paulo. Mas seu tio, como é de uma pasta não militar, está vindo para Santos com outras pessoas, a toda debandada, de automóvel. Vai se hospedar conosco. Mas não se pode dizer a ninguém, porque é secreta a presença dele aqui. Você tem de ficar esperando na rua, porque ele deve chegar de um momento para outro e não sabe bem encontrar a casa. Você tem de lhe fazer o sinal que vamos combinar agora.
Fiquei então esperando do lado de fora. Não foi preciso fazer sinal, pois, mal os fugitivos me viram, perceberam o significado de minha presença ali. Eu estava metido naquela atmosfera de drama, numa tranqüila rua da minúscula Santos daquele tempo, em que de vez em quando se ouviam os apitos dos guardas noturnos. O automóvel se detém, dele saem vários homens, e o veículo segue para outro lugar. Os recém-chegados se despedem, dispersam-se a pé, e meu tio, com capote todo fechado, entra sozinho na casa da irmã dele. Entro atrás e bato a porta. Minha avó, a esposa dele e outras pessoas estavam lá para recebê-lo. Aliviado, ele se acomodou numa poltrona e passou a dar um relato emocionante dos acontecimentos.
Ele soubera da revolução pelas nove da manhã. Vestiu-se calmamente e foi, num carro do governo, tentar entrar no palácio sitiado. Passou com facilidade por toda espécie de tropas.
Quando os membros do governo tiveram de se retirar, resolveram sair separados para varar o cerco mais comodamente. E todos conseguiram passar. Como a pasta dele não era política, era dos que corriam menos risco. Saiu a pé do Palácio dos Campos Elíseos, através da Alameda Glete, até a rua das Palmeiras. Ao passar pela estação de bondes, os motorneiros que o conheciam tiravam o quepe e cumprimentavam.
Como ele precisava de um carro para fugir, parou um táxi, o motorista tirou a casquete e perguntou:
— Dr. Gabriel, aonde o senhor quer ir?
— Como o senhor sabe quem sou?
— Sei quem é o senhor e que deve estar precisando de condução. Como costumo ser chofer da senhora sua mãe, disponha de mim como quiser. Não vou sequer avisar minha família.
Enquanto eu ouvia o relato, começou a nascer em mim uma desconfiança. Minha idéia era esta: se esse palácio estava tão cercado, como fizeram na hora de fugir? Ele entrou numa tratativa com quem cercava? O que aconteceu?
Aquilo absolutamente não ficara claro para mim. Perguntei:
— Como o senhor varou a guarda que fazia o cerco?
Notei uma espécie de frio em torno de mim. Era uma pergunta que não devia ter feito. Ele respondeu:
— Numa hora em que houve uma distração dos soldados, eu passei!
Muitos anos depois, conversando com o filho de um ex-governador, ele me contou que um dos jardins do Palácio Campos Elíseos era ornado por uma fonte. O chafariz tinha a forma de uma mulher com um jarro que deitava água, algo muito comum, mas que tinha uma razão de ser. No fundo da escultura havia um côncavo o qual, quando pressionado, abria um alçapão. Era a entrada de um subterrâneo que chegava até o Pátio do Colégio, no centro de São Paulo. Os quatro secretários teriam saído por ali, e também o governador.
Outra missão para o jovem Plinio
Noutra noite alguém chega de novo ao lado de minha cama:
— Plinio, acorda! Acorda!
— O que há?
— Seu tio tem o maior empenho em saber o primeiro momento em que as tropas revolucionárias entrem pela Avenida Ana Costa (é uma avenida longa). Podem chegar por lá através da estrada de rodagem. E logo que cheguem, você deve avisar a seu tio, para que ele possa sair com rapidez. Se eles tiverem notícia de que seu tio está aqui, vêm prendê-lo. Você fique atento lá fora.
Saí, pensando: “Se os revolucionários virem um menino acordado a essa hora, duas, três da manhã, com evidente cara de sentinela, suscita desconfiança. É uma tolice. Mas se eu for argumentar isso com meus parentes, vão dizer que estou com medo. Então é melhor eu permanecer aqui, e depois entro. Se acontecer, aconteceu. O que posso fazer?”
A ordem pareceu-me completamente disparatada. E foi a única vez em minha vida que fiquei falando sozinho. Devia me colocar defronte de um terreno baldio, grande, que havia ao lado de nossa residência. Comecei a resmungar alto sobre a inutilidade da ordem, tão alto que em casa tiveram receio de que alguém da vizinhança ouvisse e indicasse o que se estava querendo esconder. Dali a pouco uma janelinha se abriu, uma mãozinha fez um sinal e alguém disse: “Olha, pode ir dormir!”
Consegui o que queria, e dormi largamente!
O desfecho
O Presidente da República, Arthur Bernardes, não deixava de ter uma certa habilidade política. Logrou congelar a revolução, deixando claro que esta não se expandiria. Mas cometeu um erro fatal: embora tivesse encurralado os revolucionários em São Paulo, permitiu que a vida na cidade corresse normal. E contava que, com o tempo, os rebelados se entregassem.
Ora, estes ficaram uns vinte dias na capital paulista, vivendo calmamente, vendo que o governo federal não queria batalhar ali. Passaram uma temporada de férias com baioneta na mão. Em determinado momento, a notícia sensacional: sem que o governo percebesse, eles, tendo se apoderado da Estação do Norte, Estação da Luz, formaram um comboio ferroviário, com víveres, canhões, balas, obuses e vagões inteiros com soldados. Era o exército do General Isidoro Dias Lopes que ia viajar. Por onde? Começariam uma campanha pelo Brasil inteiro, diziam eles. Dirigiram-se para o Rio Grande do Sul e ali constituíram o núcleo da chamada Coluna Prestes.
*
Podíamos voltar a São Paulo. Pensei que encontraria a casa de minha avó crivada de balas, saqueada e depredada pelos revoltosos. Engano. Estava numa ordem perfeita. Ouvindo minha avó conversar com a governanta, uma senhora muito capaz e esperta, soube que ela, tão-somente de pena dos soldados entrincheirados, levava-lhes todos os dias comida, com possibilidade de ser atingida por tiros. Mas estes não saíram e os soldados se mostravam muito amáveis. E a casa era da mãe de um membro do governo que eles queriam depor…