Há 33 anos, Dr. Plinio via o caos avançar sobre o mundo, e a tal respeito isto lançava um brado de alerta pelas páginas de um influente diário paulistano.
Vivemos em pleno caos. Ao ler esta frase inicial, haverá quem tenha pensado: “Como é banal o conceito que abre este artigo!”
Realmente, banal, banalíssimo. E esse conceito, já de si banal, eu o apresentei em sua forma mais elementar e, por assim dizer, acaciana, para lhe realçar, até o paroxismo, a banalidade. Deste modo, posso fazer sentir aos leitores, mesmo aos mais otimistas, até que ponto é certo, evidente, indiscutível, que vivemos mesmo em um caos. Já que, neste caso, como em muitos outros, banalidade é sinônimo de evidência.
“A todo momento vemos pessoas cujo procedimento de hoje está em contradição com o de ontem, e entrará em contradição com o de amanhã.”
Essa sensação do caótico nos assalta a cada passo, na vida quotidiana. A todo momento vemos pessoas cujo procedimento de hoje está em contradição com o de ontem, e entrará em contradição com o de amanhã. Às vezes, em uma mesma conversa, e até em uma mesma frase, nosso interlocutor externa convicções que a lógica aponta como incompatíveis uma com outra. E é cada vez mais raro encontrarmos pessoas que, ao longo de tudo quanto pensam, dizem e fazem, se manifestam coerentes com alguns tantos princípios fundamentais.
Na apreciação deste quadro, as pessoas se classificam em três principais famílias de almas:
a) Uns — os menos numerosos — compreendem, admiram e aplaudem a coerência. Por isto, estigmatizam o ilogismo ambiente e lhe imputam os piores frutos presentes e futuros;
b) Outros fecham os olhos para o fato e, quando este lhes entra pelos olhos adentro, procuram justificá-lo: a contradição seria, segundo eles, a ruptura necessária do equilíbrio ideológico de outras eras, o efeito típico do tumultuar fecundo das épocas de transição; por isto, ela não produz desastres senão na epiderme da realidade, e tem de ser vista, em última análise, com benigna e sorridente indulgência. A família de almas que pensa deste modo era muito numerosa até há alguns anos atrás. Mas, vendo que o assim chamado tumultuar fecundo das contradições vai tomando o cunho de uma farândola de ritmo endiabrado e conseqüências sinistras, vão rareando os que conseguem sustentar, diante dela, a despreocupação risonha e benigna de outrora;
c) Bem mais numerosas são as pessoas que constituem o terceiro grupo ou família de almas. Elas suspiram diante da contradição caótica de nossos dias, aturdem-se… e não passam disto. Mudar de posição lhes parece impossível. Pois se a contradição as assusta, por outro lado, implicam, do mais fundo de sua alma, com a coerência. Elas gostariam de prolongar, contra ventos e marés, seu mundo agonizante que resulta do “equilíbrio” de idéias contraditórias, as quais se “moderam” umas às outras em amável coexistência. E como, para esta família de almas, as idéias são feitas para pairar no ar, sem relação com a realidade, não há, segundo ela, o menor risco de que este “equilíbrio” de contradições venha a se romper algum dia com prejuízo para a pacata e boa ordenação dos fatos. Esta situação, intrinsecamente desequilibrada, se afigura a esta família de almas a quintessência do equilíbrio. E, como a experiência está a provar, escancaradamente, a inviabilidade deste equilíbrio, ela se encontra diante de uma opção que a aterroriza: de um lado, o caos que lhe entra como um tufão pela casa e pela vida adentro; e de outro lado uma coerência que lhe parece correta talvez no plano da lógica, mas espetada, desalmada, hirta, e, numa palavra, desumana. Estarrecidas diante da opção, as pessoas pertencentes a esta família de almas param. E ficam a suspirar, de braços cruzados, na espera obstinada de alguma coisa que faça cessar o caos, sem que se tenha que implantar o reinado da coerência.
Vamos aos exemplos, quanto à terceira família de almas.
Quanto lar há que acolhe com um sorriso cúmplice a novela de televisão imoral, ou o livreco piegas e sensual, que pinta com cores fascinantes a imagem da vida mais dissoluta. Neste lar se nutre a certeza de que tais miragens não produzem senão efeitos puramente platônicos. Depois, se o filho ou a filha se transvia, as demais pessoas declaram que “não entendem mais nada”, e que “o mundo de hoje é um caos”.
Quanto proprietário há que proclama, diante de seus filhos ou de seus empregados, as idéias mais radicalmente igualitárias; toda superioridade de categoria é para ele um insulto à dignidade humana. (Isto não o impede aliás de fazer grossos negócios e encaixar opulentos lucros…) Se seu filho, ou sua filha, se torna comunista, ele se espanta. Se o empregado bem pago faz agitação, ele se desconcerta. Ele não compreende que tenha frutificado frutos amargos de caos e desordem o que ele mesmo pregou.
Porém, na mesma família que figuramos, em que entram a novela e o livreco imoral, o pai e a mãe por vezes pregam também, para manter o equilíbrio baseado na contradição, alguns princípios cristãos de moral ou de ordem. Falam sobre a legitimidade da propriedade, declamam contra o comunismo e mantêm o respeito por certas tradições morais. (…)
Assim, em suma, nesta família de almas se professa uma cômoda e risonha desordem de idéias. Desordem que vem do convívio, em uma região toda platônica, entre fragmentos de bem e de mal, de erro e de verdade. Alguns, dentro deste ambiente, optam pela integridade da desordem. Outros, pela da ordem. E por isto, nessa família de almas, cai-se em susto e em pranto.
(Trecho extraído da “Folha de S. Paulo”, de 23/10/1968. Título nosso)