Do amor indescritível pela Igreja Católica, derivava naturalmente, na alma de Dr. Plinio, um entusiasmo respeitoso e admirativo pela mais alta das missões que um homem possa ter neste mundo: ser ministro dessa Igreja, representante de Deus na terra. Numa conferência pronunciada em maio de 1973, ele analisa sob diversos prismas a excelsitude dessa vocação, para chegar ao arquétipo do sacerdote: Nosso Senhor Jesus Cristo.
Após os cânticos de amor e de entusiasmo que acabo de ouvir nesta sessão jubilar, toca-me a mim fazer uma conferência, cabe-me apenas falar. Dura tarefa, mal-compensada pelo que tem de realmente formoso o assunto, uma vez que devo entreter os vossos espíritos — durante um tempo que terá o mérito de ser breve — a respeito de um tema que, a ser bem analisado, contém em si todas as belezas da terra. Eu devo falar a respeito da plenitude do sacerdócio.
Adão no Paraíso, príncipe do mais belo dos reinos
E esta consideração me leva à noite dos tempos, a uma digressão histórica que pega o homem no período, talvez, mais crucial e mais duro de sua história. Nós imaginamos hoje que estamos aos bordos, talvez, de uma catástrofe sem precedente. Não nos lembramos de que uma catástrofe houve maior do que todas as catástrofes, uma catástrofe houve que marcou logo, desde o início, a história do gênero humano. Aquela catástrofe narrada pelo Gênesis, da desobediência do homem que, tentado pela mulher, tentada pela serpente, duvidou de Deus, revoltou-se contra Ele, não quis seguir os destinos que Deus lhe assinalara e por isso foi expulso do paraíso.
Príncipe do mais belo e mais encantador dos reinos, colocado como senhor de toda a natureza visível cujos segredos ele conhecia perfeitamente e sobre a qual exercia um misterioso império; confortado pelos dons preternaturais que lhe asseguravam, entre outros (benefícios), a imortalidade, Adão pecou, Eva pecou, saíram do paraíso, deixaram aquela terra de bênção e de eleição onde, segundo diz o Gênesis, Deus passeava com Adão, comentando todas as belezas que Ele havia criado.
Saíram daquela terra de eleição e entraram para a terra do exílio. Os dons preternaturais deles se retiraram. A natureza humana, desamparada diante de um ambiente sobre o qual não tinha mais governo, que não mais dominava, sentiu-se apoucada, diminuída, ameaçada pela justa cólera de um Deus que tinha sido ofendido. E com o homem, na terra do exílio penetraram a apreensão, a dor, o sofrimento, a incerteza, seguida, não tanto tempo depois, da imagem terrífica da morte.
O fratricídio de Caim
Adão e Eva que se sabiam, então, destinados à morte, antes de morrerem passaram por esta tragédia terrível de ver o filho da bênção, o filho da predileção, Abel, o doce Abel, o justo, o magnífico, prostrado no chão, morto! Eles nunca tinham visto um morto! Não tinham a idéia plena, talvez, do que fosse a morte, porque aquilo que não se vê, não se conhece inteiramente. E morto por quem? Morto por um outro filho. O fratricídio ignóbil derramando no solo o sangue do justo que, segundo diz a Bíblia, subia até o céu bradando a Deus por vingança.
E nós podemos imaginar o trágico do primeiro funeral na terra: Eva soluçando, Adão batendo no peito, Caim desvairado sumindo ao longo dos caminhos, os outros filhos abrindo em qualquer lugar a esmo, na terra, uma cova. Fecha-se a sepultura, encerra-se a história de Abel…
Faz-se o vazio na terra imensa, e a humanidade começa a sua enorme peregrinação, com este sentimento duplo: de um lado, o da própria finitude, o homem vai morrer, morrerá como morreu Abel, será um cadáver como foi Abel, a terra o devorará como está sendo devorado o cadáver de Abel; de outro, o sentimento de precariedade, de incerteza, a natureza revoltada, os animais que agridem, as trovoadas que caem, o alimento difícil de extrair do chão. Tudo somado, dá ao homem uma dificuldade de se orientar na vida, que marca a fundo a existência da humanidade dos filhos de Adão ao longo dessa trajetória que nos conduziu de tragédia em esplendor, de esplendor em tragédia, de esperança em frustração, de frustração em vitória que se arrebenta em novas frustrações; conduziu-nos até este século XX, ápice, ele mesmo — pelo menos a seu modo — de esplendores, de frustrações e de tragédias.
Diante da infinitude e do mistério, a noção de sacerdócio
Essa posição de finitude e de incerteza do homem diante da sua vida terrena acendeu duas concepções distintas de sacerdócio. Concepções estas que nós encontramos em duas famílias diversas de religiões pagãs.
Em primeiro lugar, as religiões ditas religiões sem mistérios, que correspondem, quiçá, a uma família de almas do gênero humano: as almas mais voltadas para esta terra, que não negam diretamente a existência de uma outra vida, e nem dela se desinteressam, mas que de tal maneira se deixam impressionar pelo dia de amanhã, que o centro de suas preocupações se volta para os afazeres terrenos.
Então os senhores têm, talvez correspondendo a essa família de almas, o aparecimento das religiões ditas sem mistérios. Religiões em que o sacerdote aparece como um mediador entre os deuses e o homem — é esta, sempre, a nota característica da noção de sacerdote: é um intermediário entre Deus e os homens —, mas de um mediador que, embora com os olhos voltados para o céu, tem missões caracteristicamente terrenas.
Quais são as missões do sacerdote nas religiões pagãs sem mistérios?
O sacerdote é revestido de poderes mágicos por onde faz crer que ele tem o poder de curar, de matar; tem o poder de, por meio de encantamentos e de sortilégios, governar os trovões, aplacar as feras, etc.
O sacerdote resolve, portanto, problemas humanos: ele executa curas, ele pratica mortes, sendo instrumento de vingança, ele governa os elementos.
Vemos aí uma vaga saudade que o gênero humano tem, nesta decadência, daquele domínio que ele exercia sobre a natureza, quando Adão ainda não havia caído. A nossa natureza pede esse domínio. E os sacerdotes do paganismo, da gentilidade, para satisfazer a esta necessidade de domínio, assim se apresentavam aos homens.
E daí o tipo de sacerdotes exorcistas que enxotam os espíritos malignos capazes de atrapalhar o homem na sua faina diária, de arruinar as colheitas, de espalhar doenças, de fazer fugir o gado, etc.
É também o sacerdote sacrificador, o sacerdote que imola, o sacerdote que diante da vista do homem pecador toma uma vítima — um animal, uma fruta, que sei eu? infelizmente, muitas vezes uma vítima humana — e a imola para assim aplacar a cólera de um deus que o homem sente irado, brigado com ele, do qual ele tem medo, e por isso deseja de algum modo tornar-lhe propício.
Aqui aparece, então, a figura do sacerdote antigo, segundo o tipo dessa mentalidade mais voltada para os bens terrenos.
O sacerdócio comunicador da vida divina
Mas há uma outra família de almas, talvez mais rara, certamente mais elevada. É a dos homens que vivem compreendendo que, por mais importantes que sejam os problemas terrenos, eles não passam de logística; por mais importantes que eles sejam, não é para resolvê-los que o homem está na terra. São os homens que compreendem não ser a fome o problema central da vida; são os homens que sabem pensar, que param para refletir, e que, abrindo um intervalo nas justas atividades da faina diária, de vez em quando se perguntam:
— Que sentido tem isto? Que sentido tem esta vida? Por que nasci? Para onde vou? Depois que eu morrer, o que será feito de mim? Não sei! Preciso indagar.
Essas questões supereminentes dominam a vida humana a qual, sem elas, é inexpressiva.
Para atender às perguntas desse gênero de espírito, a própria gentilidade, embora nos seus desvarios e nos seus erros, levada por um misto de bom senso e de tradição que ela nunca chegou a perder completamente, elabora o tipo de sacerdote de religiões de mistérios. São religiões que praticam — em geral às ocultas e em geral para um número relativamente pequeno de crentes — ritos que devem operar este efeito extraordinário: algo da vida da divindade passa para o sacerdote, e algo do sacerdote deflui para o público, de maneira que uma certa vida divina circula entre os que praticam e os que presenciam o rito. Vida divina esta que lhes dá mais força nas agruras desta existência, lhes dá mais luz à mente, lhes dá mais energia à vontade. Vida divina esta que se manifesta também pela magnífica promessa de que ela não terá fim. Ela veio do além, ela se insere no homem, ela — criam eles — não cessa com a morte do homem.
A promessa de uma outra vida, existente de modo menos categórico também nas outras religiões, afirma-se mais definidamente nessas religiões de mistérios. E as almas sequiosas de uma natureza melhor que esta, sequiosas de uma explicação mais alta para seus problemas, de uma orientação para a vida mais profunda do que simplesmente a preocupação de obter o ganho necessário para não morrer de fome, ou para satisfazer ambições e vaidades, esse tipo de almas se encaixa nessa série de religiões.
E assim, vagamente, confusamente, no meio de ritos idolátricos, por vezes abomináveis, e até satânicos, podemos discernir o filão de uma tradição preciosa, o filão do bom senso humano, como também o filão de uma esperança.
Numa noite em Nazaré, faz-se a paz entre o Céu e a terra
Com efeito, todas, ou pelo menos muitas dessas religiões, eram animadas pela esperança de que um dia a paz se faria entre o Céu e a terra, um momento chegaria em que os tempos teriam a sua plenitude, e um eleito de Deus, perfeito, amado, haveria de vir ao mundo para restaurar a ordem que o pecado de nossos primeiros pais — lembrado em tantas religiões antigas — nos tinha tirado.
Nascido de Maria Virgem, Nosso Senhor é o Sacerdote na sua plenitude, Fundador do sacerdócio verdadeiro, o sacerdócio católico
(Acima, detalhe do quadro da pg. 6; ao lado, “santinho” recebido como prêmio por Dr. Plinio,quando aluno no Colégio São Luís)
Em determinado momento, numa meia-noite, no silêncio absoluto de uma cidade hebraica, uma Virgem tênue, delicada, cândida, trazendo nos olhos uma infinitude (de reflexos celestiais), rezava. Os tempos tinham maturado, o grau de sofrimento e de degradação da humanidade tinha chegado a um ponto tal, que a misericórdia de Deus criara esta Virgem para que Ela, imaculada, conseguisse o que nenhum homem pecador conseguiria: pedir e alcançar a vinda do Messias. E Ela pedia precisamente que viesse o Salvador e que regenerasse todos os povos. O Messias previsto pela raça judaica, que deveria nascer de alguém da estirpe de David, da estirpe de que Ela mesmo nascera, e a que pertencia o seu casto esposo José. Ela rezava na calada da noite, pedindo que esse Messias viesse, e pedia — segundo piedosas tradições — que fosse Ela a escrava, a servidora da mulher bem-aventurada de que esse Messias haveria de nascer.
De súbito, se produz pelos ares um movimento misterioso; algo como um bater de asas, como uma movimentação, como uma vibração diáfana, como uma cintilação da lua marca o ambiente. Ela olha e ouve as palavras tão conhecidas: “Ave, cheia de graça”…
Nasce o Sacerdote perfeito: Nosso Senhor Jesus Cristo
Apenas nós sabemos que depois de Ela ter dito: “Faça-se em mim segundo a palavra do Senhor, sou a servidora d’Ele”, o Verbo se encarnou e habitou entre nós. E veio à terra Aquele que, por excelência, no sentido mais pleno da palavra, no sentido arquetípico da palavra, seria o sacerdote: Nosso Senhor Jesus Cristo.
Sacerdote no sentido pleno da palavra, porque se é verdade que é inerente ao sacerdócio ser um vínculo, ser uma ligação entre os homens e Deus, ninguém o poderia ser de modo mais perfeito, mais magnífico, do que Aquele que era ao mesmo tempo homem e Deus, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnada, que ligava a natureza humana à natureza divina. Nosso Senhor Jesus Cristo é sacerdotal por sua própria natureza, porque Ele é o elo, Ele é o vínculo, Ele fundou o sacerdócio verdadeiro, o sacerdócio pleno, o sacerdócio cristão, o sacerdócio católico!