sábado, noviembre 23, 2024

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Afetuosa compaixão

A influência de Dª Lucilia foi tão grande na formação da mentalidade de Dr. Plinio, que não é possível compreender inteiramente a história dele sem conhecer a dela. Vemo-la aqui na década de 1930, época em que seu filho já era líder católico de projeção nacional.

Em sua infatigável solicitude materna, Dª Lucilia tinha especial empenho em acompanhar de tão perto quanto lhe fosse possível as atividades apostólicas de seu querido filho. Este, após ter assumido a direção do “Legionário”, o foi progressivamente ampliando e nele passou a abordar temas de envergadura e profundidade cada vez maiores. Em pouco tempo, Dr. Plinio o transformou de pequena folhinha quinzenal de paróquia em prestigioso semanário, com repercussão internacional, e órgão oficioso da importante arquidiocese paulistana. De tal forma isso se deu que era ponto de honra para as maiores personalidades do mundo católico, de passagem por São Paulo, fazerem uma visita ao jornal.

Dr. Plinio ( à esquerda) recebe o Almirante Yamamoto (à direita), em visita à sede do “Legionário”

Em 1938 esteve na capital paulista o famoso almirante Yamamoto, veterano de muitas batalhas nos ignotos e longínquos mares do Extremo Oriente e líder católico de destaque no Japão (¹).

Logo ao chegar a São Paulo, procurou entrar em contato com Dr. Plinio e o “Legionário”. A fim de lhe retribuir a amabilidade da visita, Dr. Plinio convidou-o para jantar em sua casa, certo de que Dª Lucilia teria muito gosto em recebê-lo. Manifestou ela o desejo de ter também como comensal sua filha, Dª Rosée, cuja conversa brilhante e ligeira só poderia concorrer para interessar a todos os presentes.

Descendente de samurais — uma das categorias da nobreza do Império do Sol Nascente — homem deveras fino e de grande cultura, o almirante possuía todo um conjunto de qualidades que contribuíam para lhe conferir uma personalidade peculiar, profundamente marcada pela nota católica, porém muito diversa dos estilos ocidentais.

Fazendo-se acompanhar de uma alta personalidade do corpo consular nipônico em São Paulo, o insigne convidado compareceu com pontualidade militar à casa de Dª Lucilia, que o acolheu com a amabilidade característica das damas da antiga sociedade paulista.

A conversa, continuamente em francês, desenrolou-se de modo espontâneo em torno de recordações religiosas, militares e sociais do ilustre visitante. Tendo ele participado de inúmeras ações navais, não foi difícil levá-lo a contar alguns dos feitos que a justo título o cobriram de glória. Bastou tocar no assunto para seu enigmático olhar amendoado se acender, por detrás de uma impassível expressão fisionômica.

— Ah! batalhas! São uma coisa muito bonita!

Dr. Plinio perguntou amavelmente:

— Mas, almirante, o senhor participou de vários combates navais, não é?

— Sim, inúmeros.

— Não o cansaria descrever o episódio culminante, mais bonito, mais arriscado, das guerras de que o senhor participou? — propôs Dr. Plinio.

O drama do “Tsarevich”, posto a pique pelos japoneses na batalha de Tsushima, enche Dª Lucilia de consternação e piedade, pensando na desdita dos pobres marinheiros russos

O almirante sentiu-se à vontade, ao comprovar o real interesse de seu anfitrião, tanto mais que se tinha entregado de corpo e alma à profissão da guerra e nela sabia ver o lado grandioso.

— Pois não, professor, com muito gosto — respondeu.

No seu entusiasmo pelo combate, o visitante talvez não se tenha dado conta de não penderem os gostos e preferências de Dª Lucilia especialmente para este lado. Ela, que consentiria na imolação de seu próprio filho numa luta em defesa da Santa Igreja, não podia deixar de se condoer pela sorte de tantos infelizes, mortos numa guerra terrível, destituída de significado religioso. Um certo suspense tomou conta dos circunstantes, mas como a conversa era feita para agradar ao visitante, ninguém o interrompeu, prosseguindo ele seu relato:

Foi na batalha de Tsushima, durante a Guerra Russo-Japonesa, em 1905, em que pusemos a pique o grande couraçado russo Tsarevich.

— Mas como se deu isso? — perguntou Dr. Plinio.

— Ah! O senhor não imagina, que maravilha! O couraçado, um dos mais bem equipados do mundo, orgulho da marinha de seu país, era o navio-almirante da frota que combatíamos. Foi uma batalha terrível, com dezenas de navios afundados…

A fisionomia de Dª Lucilia ia-se tornando cada vez mais séria e consternada ao ouvir aquelas palavras. O almirante Yamamoto, sem atinar com a reação dela, prosseguiu calma e alegremente:

Dr. João Paulo, que auxiliava Dª Lucilia em seus atos de caridade para com o parente cego

— Aquele enorme couraçado passou bem diante do navio que eu comandava, em posição tal que não podíamos perder a oportunidade… Nossos tiros foram certeiros! Depois de o bombardearmos, emborcou de tal modo que a popa afundou e a proa ficou no ar. Vimo-lo quase inteiramente na vertical.

Dª Lucilia acompanhava a narração passo a passo, compadecida com o terrível sofrimento daqueles pobres marinheiros que iriam ser tragados pelas profundezas dos mares. Chegando a esse ponto, perguntou ela, penalizada:

— E como foi, então?

Entusiasmado continuou o almirante:

— Minha senhora, afundou completa e diretamente!

— Ahhh! — exclamou Dª Lucilia, com ligeiro sobressalto.

Embora o tema agradasse sobremaneira ao heróico combatente, ainda mais seu fogo se acendeu quando Dr. Plinio conduziu a conversa para abordar certas questões doutrinárias, na época muito controvertidas. Quem o haveria de dizer? O valente cabo-de-guerra se pôs então de pé, enrubescido, e começou a falar alto. Bem entendido, seus interlocutores o deixaram discorrer à vontade, até que, aquietado, passou espontaneamente para outro tema. Terminado o jantar, Yamamoto se despediu com cortesia de Dª Lucilia, levando para sua distante terra natal a recordação daquela afável senhora.

Anos mais tarde, ao ter notícia de sua morte, Dª Lucilia ficou muito entristecida e rezou fervorosamente por seu eterno descanso, pois não era só o Japão que perdia um guerreiro de valor, mas era sobretudo a Igreja que via suas fileiras desfalcadas de um destemido militante.

Afetuoso artifício

Se Dª Lucilia se condoía tanto das vítimas de uma guerra longínqua, muito mais se compadecia daqueles que lhe eram chegados. Embora essas qualidades nela reluzissem discreta mas possantemente, todos os afetos de seu coração sempre se mantiveram subordinados a uma constante elevação de espírito e amor de Deus, fonte das virtudes que praticava.

O modo como tratava um de seus parentes afastados, que tivera a infelicidade de ficar cego ainda menino, em virtude de uma imperícia médica, é um exemplo desses predicados. O fato de ser ele ateu inveterado levava Dª Lucilia a ter ainda mais pena do infeliz. Por isso não poupava oportunidade de lhe fazer algum bem, com a intenção de tocar sua alma. Com freqüência o recebia para almoçar ou jantar, e nessas circunstâncias o entretinha horas inteiras. Ato de caridade do qual também participavam Dr. João Paulo e Dr. Plinio.

Sabendo ter esse seu parente muito bom apetite, e conhecendo seu comedimento, Dª Lucilia combinou com a empregada: quando lhe fizesse sinal, deveria aproximar-se com a travessa e, sem ele perceber, servir-lhe um pouco mais. Ora, ele tinha o hábito de correr o garfo pela periferia do prato e depois por toda a sua superfície, à procura dos alimentos. De repente, quando julgava já estar no fim, encontrava — com evidente comprazimento — outra porção de comida!

Dª Lucilia assim procedeu até a extrema velhice desse parente, não apenas satisfazendo os gostos gastronômicos dele, como também dispondo-se à prosa que mais lhe agradasse. Era a solicitude levada ao último ponto.

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

1) Estêvão Shinjiro Yamamoto nasceu em 1878. Aos 17 anos foi batizado na Religião Católica. Combateu na Guerra Russo-Japonesa e na Primeira Grande Guerra. Como líder católico, promoveu a divulgação da literatura e do movimento de jovens católicos. Não se deve confundi-lo com outro almirante Yamamoto, comandante das Forças Combinadas japonesas na Segunda Guerra Mundial.

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