sábado, noviembre 23, 2024

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Funções de paz, mas militantes

Continuando seus comentá­rios aos documentos de Leão XIII sobre a ação da Igreja ao longo dos séculos, Dr. Plinio entra re­pentinamente no campo da Teologia, a fim de esclarecer o caráter militante da instituição fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo.

Uma sociedade é um ente distinto de seus sócios, e um corpo constitui um todo distinto de seus membros. Sociedade visível, a Igreja distingue-se de seus membros e constitui um todo capaz de atividade própria. Ela se compõe de dois elementos nitidamente diversos: os Pastores, a quem compete ensinar, governar e santificar os homens em ordem à salvação; e o rebanho, ao qual compete ser ensinado, governado e santificado.

Queremos analisar o caráter militante das atividades da Igreja, e de cada um dos dois elementos que a compõem.

A função de ensinar

Ensinar não é, em si, uma função militante. Trata-se de transmitir conhecimentos verídicos a quem os ignora. Ora, abrir aos espíritos as portas da Verdade é tarefa intrínseca e eminentemente pacífica. Por isso, quando Jesus Cristo percorreu a Terra Santa, pregando a Boa Nova ao povo eleito, fez obra de paz.

O ensino pode acidentalmente tornar-se uma ação mi­litante, desde que a verdade encontre obstáculos à sua pro­pagação. Em tal caso, com efeito, será preciso a um só tempo ensinar a verdade e contrariar a ação dos fatores que se opõem à sua divulgação.

A Revelação é um conjunto de verdades ensinadas por Deus aos homens, contidas na Sagrada Escritura e na Tradição.

Exposta no Antigo e no Novo Testamento, ou transmiti­da pelo ensinamento oral dos Apóstolos, pelas obras dos Padres da Igreja, etc., a Revelação foi dirigida aos ho­mens de todos os tempos e lugares, expressando-se, claro está, em linguagem humana. Dada a precariedade desta, que dei­xa sempre lugar a dúvidas, e a falibilidade da men­te do ho­mem, sempre sujeita a erro, inevitável era que interpretações as mais variadas surgissem a respeito do significado da palavra de Deus, escrita ou transmitida oral­mente.

Desse modo, embora a Revelação fosse para todos, era certo, a priori , já no tempo de Jesus Cristo, que muitos não a compreenderiam. Para esses, tudo se passaria como se a Revelação não lhes fosse dirigida. Ora, sendo desígnio da Providência que todos os homens fossem alcançados pela Boa Nova, o único meio de obviar as dificuldades decorrentes das insuficiências da linguagem e da mente humana deveria consistir, à primeira vista, na criação de um órgão ao qual fosse confiada a incumbência de ensinar o verdadeiro significado da Revelação.

Porém, essa é uma solução simplista, pois qual ho­mem pode estar certo de jamais cair em erro? E co­mo ter a cer­teza de que os membros desse ór­gão nunca errariam?¹

O único meio de esse órgão não errar e, portanto, não se revelar perfeitamente inútil, seria que fosse sempre assistido por Deus.

Logo, no plano divino, a pregação da Boa Nova tinha de compreender a instituição de um magistério infalível. Foi o que fez Jesus Cristo, instituindo Pastores e impondo-lhes que se apoiassem sobre a rocha inabalável que é Pedro.

Essa infalibilidade não resulta da inteligência ou cultura de quem a possui. E não se trata de uma inspiração; Deus não revela ao Papa o que deve dizer, mas este último interpreta a Escritura com as forças de sua inteligência. A ação do Espírito Santo consiste em evitar que, nes­se trabalho de interpretação, o Sumo Pontífice caia em erro.

Instituindo pastores e impondo-lhes que se apoiassem sobre a rocha  que é Pedro, Nosso Senhor fundou uma instituição infalível, e essa infalibilidade dá ao magistério da Igreja um caráter intrinsecamente militante (acima, o Vaticano no dia da proclamação do Dogma da Infalibilidade papal)

Caráter intrinsecamente militante da infalibilidade

A infalibilidade dá ao magistério da Igreja um caráter intrinsecamente militante. Com efeito, munida desse pri­vilégio, ela ensina a verdade, baseada em argumentos de dois gêneros diversos:

a) Os de razão. A Fé é um “rationabile obsequium”.  Segundo as normas da boa crítica histórica e científica, demonstra-se: que Jesus Cristo existiu; que os Evange­lhos são autênticos; que suas narrações são verídicas; que vários fatos narrados são miraculosos; que, pois, Jesus Cristo é o Homem-Deus; que instituiu a Igreja; que a do­tou do privilégio da infalibilidade. Provado tudo isto segundo a reta razão, é acertado que o homem creia no que Jesus Cristo revelou e na Igreja que Ele instituiu.

b) Os de autoridade. Quando os argumentos de razão falham, os segundos devem bastar para persuadir inteiramente.

Por ser infalível, a Igreja tem o direito e o dever de exigir que a razão se dobre diante dela, e o homem aceite como verdadeiro o que lhe parece falso, e como falso o que lhe parece verdadeiro².

Em tais casos, seu ensinamento encontrará no fiel uma relutância interior, tendo de enfrentar a força tumultuaria de um dos defeitos humanos mais violentos e obstinados: o orgulho.

E fosse só o orgulho! De modo geral, todas as paixões humanas desregradas colidem com algum dos ensinamentos da Igreja relativos à Fé e à Moral, tentando arrastar as inteligências para o erro. O demônio, príncipe das trevas, acentua essas dificuldades. O erro gera entusiasmos e dedicações, tem seus apóstolos, seus doutores e até seus “mártires”. Cria argumentos, funda sistemas, propaga-se, organiza-se, procura conquistar as cátedras e todos os postos-chave de onde possa propagar-se ou lucrar influência.

A revolta, de individual que era, se torna coletiva, explodindo no íntimo de um Ario, por exemplo, dando ori­gem a poderosos movimentos de opinião que se cristali­zam em doutrinas destinadas a viver séculos; estruturam-se em organizações as quais, pela sedução da palavra ou pela força das armas, conquistam cidades, regiões, na­ções, quiçá continentes.

Se a Igreja não fosse infalível, poderia ceder, compor, transigir. Mas, sendo infalível, cumpre-lhe opor argumen­to a argumento, organização a organização. Seu magis­tério é essencialmente obra de esclarecimento das inte­ligências e de paz, mas essa obra encontra a oposição do mundo, do demônio e da carne.

Governar e santificar, obras de paz

Se ensinar é obra de paz, governar e santificar – as outras duas funções da Igreja – também o são. Governar é precisamente unir as vontades para o bem comum, estabelecer aquela “tranqüilidade da ordem” que, segundo o Doutor Angélico, é a verdadeira paz. Com efeito, São Tomás retomou a definição de Santo Agostinho, “pax est tranquillitas ordinis” , que, pela primeira vez na História, verificava-se em concreto naquela época de grandes idéias, grandes realizações e notável equilíbrio, como era a Idade Média (IIª-IIae q. 45 a. 6 co).

Quando a Hierarquia exerce o governo espiritual dos fiéis, o efeito próprio de sua ação é estabelecer a paz nos seus corações, em suas famílias, nas suas nações: “Pacem meam do vobis, pacem meam relinquo vobis”  (“Eu vos dou a minha paz, Eu vos deixo a minha paz”), disse Jesus Cristo. Santificar por meio dos Sacramentos e do fomento da piedade é também obra de paz. Pois os Sacramentos e a oração são canais da graça de Deus, e esta tem por fruto próprio a virtude, a ordem, a paz.

É com o coração materno, com o carinho e a solicitu­de do Bom Pastor, que a Igreja governa e santifica as almas. A missão da Mãe é de paz; de paz é igualmente a ta­refa do Pastor. Mas, se o lobo assalta o redil, o que pode fazer o Bom Pastor, senão defender a ovelha? E, se alguém agride a criança no colo materno, o que pode fazer a mãe senão lutar contra o agressor, com toda a energia de seu carinho sobressaltado?

A Hierarquia é, então, ao mesmo tempo quem ensina e realiza a paz na terra, e quem combate no grande pré­lio que enche a História com o seu clamor, na defesa da verdade contra o erro, do bem contra o mal.

Esses dois aspectos de sua ação se completam. Pregando a verdade e o bem, realiza a paz, de que esta é fruto: “Opus justitiae pax” (“a paz é fruto da justiça”), diz o lema do Papa Pio XII. Mas se ela não enfrentasse o erro e o mal, freando-lhes a influência, não haveria para o mundo nem verdade, nem bem, nem paz. A Igreja é, pois, militante, ao mesmo tempo que pacífica. Sua luta é ge­radora de paz. É nesse sentido que Leão XIII glorifica a luta dela na História.

Cidade fortificada, a Igreja tem como fim primeiro conduzir a humanidade decaída a um destino sobrenatural (Papa e prelados do mundo inteiro reunidos na Basílica de São Pedro)

Uma cidade fortificada

A Hierarquia Eclesiástica conta com o apoio das Ordens e Congregações religiosas, masculinas e femininas, que “combatem o bom combate”, às vezes em campos especializados (ensino, imprensa, obras de caridade, missões, etc.).

Abaixo das Ordens e Congregações estão as associa­ções de fiéis. Lutando, ora pela santificação de seus mem­bros, ora pela santificação do próximo – e o mais das vezes por uma coisa e outra – sob a direção da Hierarquia, ou com sua benevolente permissão, arregimentam para o bom combate milhões de fiéis de todas as línguas, raças e condições sociais, que põem em comum seus esforços. Tais organizações desenvolvem uma ação que não se confunde com o apostolado individual e isolado de cada fiel. Promovem retiros, recolhimentos, atos de pie­da­de coletivos, desfiles, concentrações, movimentos de opi­nião, intervêm nas eleições, fazem pesar sua vontade na elaboração das leis e nos atos do governo. Incluem-se entre elas as associações como a do Apostolado da Oração, que não têm por fim específico senão a oração e a peni­tência, mas que devem ser tidas por militantes pela mesma razão que as Ordens Contemplativas.

São, todos esses, instrumentos lúcidos, vivos e ágeis para lutar por todo o bem, e contra todo o mal. Temos assim uma grandiosa visão de conjunto da Igreja militante, como um imenso exército empenhado na grande lu­ta que Leão XIII tão lúcida e eloqüentemente descreve.

Para a compreensão das concepções históricas de Leão XIII, é indispensável ter em mente esse caráter militante da Igreja. Por isso o destacamos neste capítulo, sem pretendermos que as outras notas da Igreja tenham importância secundária. A Igreja não é propriamente uma fortaleza, mas uma cidade fortificada. A primeira tem por único fim a luta. A segunda tem os fins próprios a qualquer cidade. Se ela se cerca de muralhas, é por ser forçada a isso por seus adversários.

Como sublinha o Pontífice, o fim da Igreja é “conduzir a humanidade decaída a um destino sobrenatural”. O meio é a prática da “luminosa lei evangélica”. A luta é apenas uma condição necessária para os homens não serem desviados do uso desse meio.

1. Os protestantes procuram safar-se da dificuldade alegando que o Espírito Santo instrui individualmente cada fiel. Se assim é, como explicar que os próprios protestantes divirjam tanto uns dos outros? Como explicar que teólogos doutos e de boa-fé pudessem discordar entre si tão ampla e profundamente na interpretação de textos da Escritura? A experiência evidente e constante demonstra que não existe essa pretendida assistência do Espírito Santo a cada indivíduo.

2. Não há verdadeira incompatibilidade entre a Fé e a razão. Mas pode dar-se que, pela fragilidade do homem, ele chegue a conclusões contrárias ao ensinamento da Igreja, e não logre perceber em qual dos seus argumentos errou. Neste caso, deve aceitar humildemente como verdadeiro o que ensina a Igreja infalível, subordinando-lhe sua inteligência falível.

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