Esta matéria seria mais própria a uma seção sobre Teologia Mística. Na falta desta, sai ela nas páginas dedicadas à Filosofia, dada a relação entre essas matérias. Dr. Plinio, aqui, dá a definição de “flash”,expressivo termo para dar a conhecer uma realidade sobrenatural que passa muitas vezes despercebida, mas é de grande importância para a vida espiritual de cada um.
No que consiste a doutrina do “flash”? Vou expô-la seguindo o caminho pelo qual chegamos a ela: primeiro, uma observação; depois uma interpretação teológica da observação, conducente a uma conclusão.
A observação corrente da vida espiritual nos mostra que, quando às vezes tratamos com as coisas da Igreja, em certas ocasiões elas nos aparecem de súbito muito luminosas e bonitas. Nessas circunstâncias, percebemos nelas uma série de coisas que normalmente não perceberíamos, e experimentamos consolações espirituais. Algum tempo depois, tais consolações cessam, deixando apenas uma vaga recordação.
Durante os minutos, as horas, os dias ou os meses em que essa impressão permanece na alma, observam-se três efeitos: o amor de Deus e o amor das coisas da Igreja se intensificam muito; há uma apetência muito grande das coisas sobrenaturais; por fim, há também uma apetência muito grande — em virtude da apetência das coisas sobrenaturais — de combater o pecado, de combater a tentação, de maneira que nos tornamos extraordinariamente generosos.
“Flashes”, à tardinha, numa igreja
Por exemplo, há um fato da experiência corrente que sucedeu comigo mil vezes, e que deve se passar com cada pessoa, segundo seu feitio psicológico individual.
Dava-se isto comigo em muitas ocasiões, sobretudo no meu tempo de jovem (antes de entrar para o Movimento Católico), época em que eu não comungava todos os dias. De vez em quando, eu entrava durante a semana numa igreja para rezar, em geral, por causa das conveniências de meu horário, nalgum momento da tarde, entre três e seis horas. A igreja ficava praticamente vazia, apenas com uma ou outra pessoa, uma senhora se confessando, um homem maltrapilho rezando o terço num canto.
Ao entrar, eu me sentia como que envolto por toda uma atmosfera que me fazia ter a impressão de que a igreja toda reluzia de significação. As luzes dos vitrais, as cores dos quadros, a expressão das imagens, o silêncio do templo, o contraste entre aquele silêncio e o ruído que vinha da rua, tudo isso parecia introduzir-me numa atmosfera completamente diferente do habitual, em que minha alma como que via o espírito da Igreja Católica.
Olhando para cada uma das imagens de santos pintadas nos vitrais e iluminadas pelo sol, parecia-me ver a pregação da doutrina que aquelas imagens representavam, o que a Igreja entendia apresentando aquele santo como modelo de virtude e também como um mediador que nos auxilia a praticar a virtude da qual ele é modelo, e nos protege nesta vida. A disposição dos objetos dava-me a idéia de uma ordem que transpunha o meu espírito para os princípios metafísicos da ordem (eu não sabia que era isso; sentia sem saber o que era), e para o conceito de uma ordem absoluta, que me parecia em consonância total com o espírito da Igreja. De maneira que eu julgava ver o espírito da Igreja na boa disposição daqueles objetos, e me sentia transposto para uma atmosfera em que, literalmente, eu me banhava no sobrenatural. Isso sem ter uma visão, uma revelação, um êxtase, mas eu me banhava no sobrenatural.
Nesses períodos, eu ficava extraordinariamente generoso, apto a tomar quaisquer deliberações, e tinha uma noção mais profunda de toda a santidade e até de toda a divindade da Igreja Católica.
Nossa Senhora já me havia dado uma fé muito robusta. Esta, entretanto, fortalecia-se de modo extraordinário em contato com esse ambiente.
Noutras ocasiões, eu entrava na mesma igreja e não sentia essa feeria à maneira de um conto de fadas (a comparação não é adequada), que iluminasse para mim o interior do templo. Eu via ali coisas comuns, boas, bonitas, respeitáveis, mas todo o dinamismo de minha alma era diferente.
Isso, mais ou menos, deve ter-se passado com todo mundo. Tem-se, por exemplo, repentinamente uma impressão muito forte ao fazer alguma oração, ao ver uma imagem, ao ler a vida de um santo, ao assistir a uma conferência, etc. Tal impressão proporciona uma clareza especial de visão, faz a pessoa ver com uma luz intensa, produzindo um amor que a eleva acima do seu próprio nível e a enche do desejo de dedicação, tornando-a entusiasta e desejosa de dedicar-se.
Uma graça atual que dá um especial discernimento das coisas sobrenaturais
Esse fato, comum na vida espiritual, os teólogos o descrevem e o interpretam. Trata-se da graça atual, distinta da graça habitual. Esta última, também chamada de graça santificante, é um dom habitual, uma disposição estável e sobrenatural para aperfeiçoar a alma e torná-la capaz de viver com Deus, agir por seu amor. É infundida pelo Batismo, perdida quando se comete um pecado mortal e recuperada no Sacramento da Confissão.
Já a graça atual é um dom transitório, um auxílio momentâneo que Deus nos concede. Consiste em iluminações da inteligência e inclinação para o bem, atuando na vontade e na sensibilidade, de modo às vezes acentuado. Fazem-nos crer mais profundamente e, por assim dizer, vermos o sobrenatural. Dão-nos um discernimento pelo qual percebemos melhor o caráter sobrenatural das coisas da Igreja.
Exemplo característico de “flash” ocorreu com os discípulos de Emaús, enlevados pela conversa com Nosso Senhor ao longo do caminho, e inundados de graça sensível ao vê-Lo partir o pão
(ao lado, pinturas de Benedito Calixto)
São graças muitíssimo preciosas. Um dos exemplos mais típicos de sua atuação aconteceu com os discípulos de Emaús. O episódio é muito conhecido. Iam pelo caminho, conversando com Nosso Senhor, e sentiam muito enlevo e contentamento por estarem com Ele, sem saber que era Ele. Quando, na taberna, Nosso Senhor partiu o pão, e, nesse gesto, manifestou-se por inteiro, inundaram-se de consolação e O reconheceram.
Outro exemplo característico é o ocorrido com Santa Maria Madalena, junto ao Santo Sepulcro. Ela voltou-se para Nosso Senhor, sem O reconhecer, pensando que fosse o jardineiro, e perguntou:
— Se tu o tiraste, dize-me onde o puseste, e eu o levarei.
E Ele disse:
— Maria!
Ela só teve esta palavra:
— Rabboni!
Havia reconhecido Nosso Senhor.
Um terceiro exemplo aconteceu com São Pedro. Uma das cenas do Evangelho que mais me tocam é o olhar recebido por São Pedro. Eu peço continuamente um olhar assim para mim. Quantas vezes Ele havia olhado para São Pedro! São Pedro tinha esquecido, não prestara atenção, conspurcara essa graça com defeitos e ninharias. Mas, durante a Paixão, Nosso Senhor o olhou de um modo tal que o tocou fundo, e ele “flevit amare” — chorou amargamente. Foi um só olhar.
Quando na comunhão se diz: “Dizei uma só palavra e minha alma será salva”, eu penso: dai-me um só olhar e minha alma se transformará. Se eu pudesse ver os olhos d’Ele, tenho a impressão de que eu mudaria, de que eu seria como desejo ser.
Nos três casos acima, as graças vieram à maneira de ato, fazendo com que as pessoas favorecidas vissem algo, de repente, sob uma luz esplendorosa.
É preciso conferir no coração essas graças sensíveis
É necessário sabermos aproveitar os “flashes” para a nossa santificação.
O próprio dessa graça atual é que ela passa. Não se fixa, mas vai aumentando o amor de Deus na alma sucessivamente. Deixa uma consolação, um perfume. Ela passa várias vezes e vai nos preparando para, em determinado momento, esse estado de alma se tornar permanente, o que se dará no Céu.
Esse processo de acúmulo encontra uma imagem adequada na formação das estalactites e estalagmites: o “flash” é como a estalactite, que desce, goteja no chão, e vai, de resíduo em resíduo, formando a estalagmite. Tais resíduos vão se acumulando na alma, desde que os sucessivos “flashes” sejam recebidos com atenção, com recolhimento.
Não é difícil compreender que os sucessivos depósitos, dentro da alma, de como que “resíduos de luzes”, podem constituir algo que acaba no Céu, e que é o processo de desenvolvimento da vida espiritual de tantos católicos.
“Maria conservava todas essas coisas, meditando-as em seu coração”, diz o Evangelho a respeito de Nossa Senhora, por ocasião do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo e dos fatos maravilhosos que então se passaram. Maria é modelo para todas as almas ao longo dos séculos, em todas as situações. Diante do maravilhoso, façamos como Ela: meditemo-lo no coração.
A memória do “flash” conserva seu perfume
Assim como nossa memória olfativa não conserva apenas a idéia de que cheiramos algo agradável, mas conserva a idéia do que sentimos, assim também o resíduo do “flash” se conserva na memória.
Do mesmo modo, a memória de um “flash” se conserva em algo, lembrando o que aquilo tem, tão digno de ser amado, e leva a uma análise do que sentimos. É o tal “conferir no coração”, ou, em outras palavras, verificar e compreender com a inteligência, e conferir na própria vontade.
Deve-se procurar amar os vários “flashes” que se teve no passado. Fazer uma espécie de resumo dos “flashes” e conservar o melhor possível a memória deles.
Quando numa alma se acumulam uns sobre os outros os “resíduos de flashes”, e ela os trata desse modo, sente muito mais ânimo para uma grande dedicação, para manter a estabilidade, etc.
Qual a razão desse nome?
Temos aí exposta a doutrina sobre o que chamamos de “flash”.
Qual a razão deste nome? Assim como na hora de tirar uma fotografia é produzida pela máquina uma luz intensa e rápida — o “flash” —, iluminando repentinamente e permitindo a fixação da imagem de um modo tal que, sem essa luz, ela não se fixaria, assim também essa graça atua à maneira de um “flash”, muitas vezes, emitindo uma luz intensa, e essa luz faz com que a “objetiva” de nossa alma veja e grave aspectos que normalmente ela não veria ou não gravaria.
É uma imagem tirada de um aspecto técnico da vida contemporâ-nea, mas que ilustra muito didaticamente o fenômeno sobrenatural que estou aqui examinando. Trata-se, portanto, de um nome adequado para essa doutrina.
Aí está, exposto segundo o método utilizado para a verificação — experiência, explicação teológica, conclusão aplicável a nossa vida espiritual — a doutrina do “flash”.
Cada uma dessas partes comportaria por sua vez um desenvolvimento. Nesta breve exposição, fiz como alguém que passasse sob uma arcada gótica e mostrasse como, de cada arco, poder-se-ia ver um aspecto novo do panorama. Mas pareceu-me que, mesmo assim, seria de grande utilidade para a nossa vida espiritual. Fica, pois, dada uma noção sumária dessa matéria extraordinariamente suculenta, com vista a futuros desenvolvimentos.