No último capítulo dos comentários de Dr. Plinio sobre a Carta Apostólica “Annum Ingressi”, de Leão XIII, vimos descritos os adversários da Igreja ao longo da História: o demônio, o mundo e as paixões humanas desregradas. Hoje veremos a atuação da Providência nesse combate.
Conforme dizíamos, os efeitos do pecado original, que são desregramentos, não podem ter senão resultados desencontrados. O demônio, pelo contrário, é capaz de planos articulados. Os homens morrem, o demônio não. Em tese, nada obsta que dure séculos, em determinadas condições, o poder de influenciar a fundo o desenvolvimento de um ciclo histórico, a formação e progresso de vícios e heresias, etc.
Na ordem concreta dos fatos, o mundo e o demônio formam como que uma força única, fundida num só esforço. E esse esforço consiste em oferecer ao homem, fundamentalmente egoísta, os deleites do “orgulho, cupidez e amor desenfreado dos gozos terrenos”, de que fala Leão XIII.
A todo momento, em nós e em torno de nós, trava-se a luta entre o bem o mal, entre as “duas cidades” de que fala Santo Agostinho, entre a fé e a incredulidade. (Acima, “A Igreja triunfa das heresias”, grupo escultural na igreja do Gesù, em Roma; ao lado, “Santo Agostinho disputa com os hereges maniqueus e batiza os convertidos”, alto-relevo medieval)
De um lado, portanto, está a Igreja, que aponta para o Céu e pede ao homem que renuncie a seu egoísmo, a seus deleites desregrados, e obedeça à Lei. Diz o Papa que “em face da Lei e daquele que a apresenta em nome de Deus” ergue-se o mundo, “sempre o mesmo”, isto é, o conjunto dos desregramentos humanos, e o príncipe deste mundo, que o dirige e o arrasta para a luta, quer dizer, Satanás, servido por mil satélites.
É a imagem agostiniana das duas cidades.
E a cidade do demônio “encontra na Igreja” — a cidade de Deus — “a mais poderosa barreira”. Por isso olha para esta com “ódio implacável”, cheia de revolta “em desmedido orgulho” e “espírito de independência a que não tem direito”.
Luta entre a Fé e a incredulidade
Presenciamos continuamente, quiçá sem lhes dar maior importância, certos fatos da vida quotidiana. Aqui é uma mãe que, acompanhada pelos seus, leva no colo seu filhinho até a igreja, para o Batismo. Além, é um propagandista protestante que discute sobre religião com um transeunte a quem ofereceu um folheto. A poucos passos, numa sala de aula, um professor dá um curso de biologia e aproveita para fazer propaganda materialista. Dentro de alguns minutos, a aula termina, e os alunos se dispersam pelas ruas. Um compra um jornal católico que está sendo apregoado na esquina. O outro abre uma revista comunista que levava debaixo do braço. E assim por diante, as influências favoráveis e hostis à Fé católica se vão exercendo ao longo de todo o dia, em qualquer lugar onde exista um grupo humano na face da terra.
Como esses fatos ocorrem de permeio com mil outros de natureza diversa, passam muitas vezes despercebidos. Constituem, entretanto, episódios minúsculos e incontavelmente numerosos de uma imensa luta, que se trava por mil meios por toda parte. A luta entre a fé católica e as heresias e erros que por todos os lados a assediam.
Combate entre a virtude e o vício
O mesmo se poderia dizer da luta entre o bem e o mal. Ela se realiza a todo momento em nós, e em torno de nós. Em cada ato bom que fazemos, a graça e a virtude se tornam em nós mais vigorosos, o bem conquista terreno dentro de nós contra o mal. Pelo contrário, a cada capitulação a graça se retrai, a vontade se debilita, o mal ganha terreno dentro de nós contra o bem. Cada bom conselho, cada bom exemplo que damos é um ato de hostilidade do bem ao mal. A contrário sensu, cada escândalo, cada mau conselho é uma ofensiva do mal contra o bem. Um artigo de jornal difundido entre 100 mil leitores, ou um discurso ouvido no rádio por 200 mil ouvintes, equivalem a 100 mil tiros ou 200 mil tiros do bem contra o mal, ou do mal contra o bem, conforme o caso. A luta entre a virtude e o vício é incessante, e se estende à terra toda.
De incontáveis maneiras intervém Deus nos acontecimentos terrenos, seja no âmbito individual, seja no coletivo, premiando, castigando, advertindo, por meio de pessoas providenciais que Ele suscita, ou se manifestando diretamente aos homens. Ao lado, São João Batista (Hôtel-Dieu de Beaune, França); na página seguinte, “Judite corta a cabeça de Holofernes”, gravura de Gustave Doré)
A História fala com espanto em guerras de vinte, trinta, cem anos. Essa guerra entre a Fé e a incredulidade, entre o bem e o mal, é mais antiga que o homem, pois teve início com a luta dos anjos no Céu, e só terminará com o fim do mundo.
Aspectos sobrenaturais da luta
Já vimos que os combatentes dessa luta são, de um lado, a Igreja militante e, de outro, as paixões desregradas do homem, o príncipe das trevas e seus satélites.
Desde que admitamos essa perspectiva, não podemos fugir a uma conseqüência de importância fundamental. É que, se os dois combatentes mais fortes são Deus e o demônio — seres espirituais, superiores por natureza à ordem de coisas visível que nossos sentidos percebem — grande parte dessa luta comporta elementos sobrenaturais.
Da parte de Deus, esses elementos são principalmente o governo da Providência sobre os acontecimentos humanos e as graças que concede a todos os homens.
O governo da Providência e o livre arbítrio
Deus criou o homem com uma alma espiritual e, portanto, dotada de inteligência e liberdade. Essa liberdade põe nas mãos do homem a faculdade de obedecer, ou não, aos preceitos promulgados pelo próprio Deus. Se o homem obedece a esses preceitos, realiza evidentemente a vontade de Deus. Se não obedece, realiza-se ainda assim a vontade de Deus, pois quis este que o homem fosse livre e pudesse escolher entre o bem e o mal. Para melhor se compreender isso, considere-se um exemplo.
Um pai põe uma criança correndo livremente por um jardim, e lhe recomenda certas regras de prudência. Deixando-a em liberdade, fá-lo por sua própria vontade, sabendo que ela poderá não observar as regras de prudência que lhe prescreveu. É que seu bom senso lhe faz ver como é razoável dar liberdade à criança, ainda que ela cometa alguma pequena falta. Nesse pai podemos considerar, pois, dois atos de vontade concomitantes.
Por um lado, ele quer que a criança brinque livremente, ainda que com algum risco, pois as vantagens dessa liberdade são maiores que os inconvenientes do risco; por outro, quer que a criança brinque retamente, sem se machucar.
Com Deus dá-se o mesmo. Ele nos criou com uma natureza dotada de livre arbítrio, e com isso nos fez um grande beneficio, pois só o homem livre, isto é, dotado de vontade, é capaz de amar, e só o homem capaz de amar pode alcançar o Céu, exclusivamente reservado aos que amam a Deus.
Quando Deus nos criou livres, sabia que é inerente à liberdade a possibilidade de praticar o mal. Ainda assim, quis criar-nos. E quando fazemos mau uso dessa liberdade, isso não se dá sem que Ele tenha considerado tal possibilidade, e sem que, apesar disso, tenha querido criar-nos.
Isso não tira, entretanto, a Deus o direito de detestar o mau uso que fizermos de nossa liberdade, e de nos punir por tal: precisamente como, no citado exemplo, o pai que previu um possível abuso de liberdade da criança no jardim não fica impedido de a castigar.
Vontade de eleição e vontade de consentimento
Resumindo essas considerações em linguagem escolástica, pode-se dizer que em Deus se distinguem duas vontades, uma de eleição, outra de mero consentimento. Segundo a primeira, os homens fariam, todos, um uso reto de sua liberdade, e pois obedeceriam à Lei. Conforme a segunda, alguns homens desobedecem e pecam: Deus os quis livres, e permitiu que optassem pelo pecado.
Tudo isso torna bem claro que, no universo, nada se passa sem que Deus tenha querido, ou por uma vontade de eleição, ou por uma vontade de consentimento. E que a vontade de Deus é — ainda quando ela consiste em nos deixar livres — a suprema razão das coisas.
Se muitas vezes a vontade de Deus consiste em deixar correr os acontecimentos ao impulso do livre arbítrio humano, muitas outras vezes Ele intervém, seja para recompensar um justo, seja para punir um pecado, seja ainda para preservar uma pessoa sobre a qual tem intenções particulares, ou tolher a ação de outra que contraria seus desígnios. Bem entendido, essas intervenções divinas não se dão apenas no plano estritamente pessoal. Como já dissemos, se Deus premia ou castiga por vezes os indivíduos já na vida terrena, fá-lo sempre com as instituições, as associações e as nações. É que estas não têm existência senão na terra: no Céu não haverá nação, nem classe, nem instituição. E, assim, já nesta vida precisam ser premiadas ou punidas.
Modos de intervenção de Deus
Como age Deus nesse sentido? De mil maneiras. Às vezes suscita um homem para abater um povo: foi o caso de Cyro com os caldeus. Ou uma mulher para salvar uma nação: foi o caso de Judite, no Antigo Testamento, e de Santa Joana d’Arc, na Idade Média. Outras vezes cega um homem, para o castigar com sua queda (situação tantas vezes observada ao longo da História, que foi imortalizada no provérbio latino “Quos Deus vult perdere prius dementat”: “quem Deus quer perder, começa por privá-lo da razão”). Ou suscita um homem para regenerar um rei, uma nação, um grupo de nações: Jeremias e São João Batista, com os judeus; São Francisco de Assis e São Domingos de Gusmão, na Cristandade medieval; Santo Inácio de Loyola na crise protestante; etc. Assim age Deus por meio dos Santos, dos Confessores, dos Doutores que ele suscita.
“Para ser possível uma reparação proporcionada à ofensa que representou o Pecado Original, era necessária a Encarnação do Verbo: Jesus, Deus e Homem, era capaz de expiar adequadamente a humanidade pecadora”
(na página seguinte, “Anunciação”, por Petrus Christus)
Deus age ainda de outra forma. A Igreja sempre admitiu que Ele, por vezes, ou fala diretamente aos homens, ou o faz pelo ministério de seus Anjos e de seus Santos, em visões e revelações. Exemplo disso são as aparições do Sagrado Coração de Jesus a Santa Margarida Maria Alacoque no século XVII, e as de Nossa Senhora em Lourdes, no século XIX, e em Fátima, no século XX.
Nesse campo, cumpre separar o joio do trigo. Mas, por mais cuidadosos que sejamos nesse terreno, seria impossível afirmar que Deus não tem o poder de agir assim, e que historicamente nunca o tenha feito (basta lembrar como a Sagrada Escritura está repleta de fatos do gênero).
O papel da graça divina
Deus intervém, entretanto, muitas vezes, não para tolher a liberdade humana, mas para lhe facilitar a opção para a virtude. O meio essencial pelo qual o faz é a graça. Já falamos dela em diversas passagens. Considerada em seus efeitos sobre a alma, a graça é um auxílio sobrenatural de Deus, que ilumina a inteligência e fortifica a vontade, para que o homem conheça as verdades da Fé e pratique as virtudes necessárias à salvação.
Como vimos, sem a graça não é possível ter Fé nem praticar duravelmente e em sua totalidade os Mandamentos. Bem entendido, ela nos dá possibilidades, mas não nos obriga a fazer uso dessas possibilidades. É como um tônico que nos dá forças para nos movermos, mas não nos obriga a isso.
A Teologia distingue vários tipos de graça: habituais e atuais, operantes e cooperantes, suficientes e eficazes, etc.
A todos os homens são concedidos os recursos sobrenaturais necessários para alcançar o Céu. Quer dizer, a graça suficiente, Deus não a nega a ninguém. Entretanto, se a graça nunca desce a um nível abaixo do suficiente, muito freqüentemente ela supera esse nível. Quando sua efusão é muito superior a ele, o número de pessoas que praticam os Mandamentos e se salvam é normalmente maior.
Por esse regime de efusão da graça, Deus intervém continuamente na grande luta.
A Redenção
Dessa luta, já vimos o primeiro lance que envolveu o homem: a queda de Adão e Eva (Gn 3,6). Como eles continham em si todo o gênero humano, no sentido em que a semente contém a árvore, o pecado que cometeram foi do gênero humano inteiro, embora sem uma responsabilidade pessoal dos seus descendentes. Vimos também o efeito produzido pela queda.
Digamos uma palavra sobre a Redenção.
Para reparar junto à Justiça divina o pecado original e os demais pecados cometidos pelos homens, era necessária uma expiação que estivesse no nível da gravidade da falta.
A gravidade resulta da natureza da ação faltosa, da dignidade da pessoa ofendida, e do ofensor. Uma bofetada constitui, por sua própria natureza, uma injúria mais grave do que um cumprimento distraído ou negligente. Se o agredido é um príncipe, a injúria é mais grave do que se fosse um particular. E se o agressor do príncipe é seu irmão, a injúria não é tão grave quanto se fosse um lacaio.
No caso do pecado original, a não considerar senão a dignidade de Deus e sua infinita desproporção com a dignidade do homem, ser finito, como poderia este reparar a ofensa?
Para se possível tal reparação era necessária a Encarnação do Verbo. Em Jesus Cristo, o Verbo humanado, há uma só Pessoa, em duas naturezas: a de Deus e a do homem. Sendo suas ações ao mesmo tempo divinas e humanas, Ele era capaz de expiar adequadamente os delitos da humanidade pecadora.
Quando, do alto da cruz, Ele proferiu o “consummatum est” (Jo 19,30) e entregou sua alma, estava resgatado o gênero humano.