A História é profundamente marcada por dois acontecimentos supremos: o pecado original e a Redenção. Esta última abriu para os homens um tesouro de graças cujo aproveitamento influencia o desenrolar dos acontecimentos na Terra. Eis a matéria desenvolvida por Dr. Plinio, continuando seus comentários à Carta Apostólica Annum Ingressi, de Leão XIII.
Quando, do alto da cruz, Nosso Senhor Jesus Cristo proferiu o “consummatum est” (Jo 19,30) e entregou sua alma, foi resgatado o gênero humano. O homem, colocado pelo pecado na postura sem remédio de um devedor absolutamente insolvente, se reabilitou. Franqueado estava para ele o caminho da virtude, aberta a porta do Céu. Esse imenso triunfo foi uma vitória pessoal de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Estava, pois, anulada a vitória obtida pelo demônio no Paraíso terrestre.
Miríades de lutas individuais
Restava a cada homem fazer uso da graça de Deus, trilhar o caminho franqueado, transpor os umbrais da porta aberta; uma série de lutas pessoais, pelas quais cada qual se salva a si mesmo.
Na verdade, essas lutas se iniciaram antes de Cristo. Na previsão dos méritos do Redentor, a graça foi dispensada aos homens desde o primeiro momento depois da queda. Graça sempre suficiente, pouco abundante para os povos gentios, mais profusa para o povo eleito, que vivia à sombra da Sinagoga, prefigura da Igreja. Aqueles que venceram essa luta pessoal aguardaram no Limbo a salvação, entrando no Céu quando se efetuou a Redenção.
Mas essa graça se tornou incomparavelmente mais torrencial, especialmente para os fiéis, depois da Redenção.
As miríades de lutas individuais que tornam aproveitável para cada qual a vitória alcançada por Nosso Senhor Jesus Cristo, se efetuam com o recurso a três armas: a oração, pela qual o homem pede a graça de Deus; a resistência às tentações, pela qual corresponde à graça e cumpre a Lei; e a penitência, pela qual expia seus pecados.
A Redenção, a graça e o Corpo Místico de Cristo
Como Nosso Senhor Jesus Cristo, com os sofrimentos crudelíssimos e infinitamente meritórios de sua Paixão e morte, pagou pelos homens o preço do resgate, Deus abriu-lhes a porta do Céu, e franqueou-lhes os meios de lá chegar.
A graça é, pois, um dom comprado à Justiça Divina por nosso Redentor. Em rigor, todos os méritos de Jesus Cristo só a Ele pertencem, pois são fruto das dores que sofreu. Contudo, numa efusão de sua misericórdia, quis Ele oferecer esse tesouro infinito por nós.
Tornamo-nos, assim, coproprietários desse capital inestimável que são os méritos de Cristo.
Formou-se, desse modo, uma sociedade, composta por Jesus Cristo e por todos os homens que Ele salvou. Sociedade mística, pois seu capital é sobrenatural, e sobrenatural é o plano em que ela vive e produz seus efeitos.
Tal sociedade existe à maneira de um corpo, em que Jesus Cristo seria a cabeça. Com efeito, na medida em que cada membro da sociedade está unido a Jesus Cristo, d’Ele recebe a vida da graça, que é fruto de seus méritos. Se recusar a graça, rompe sua participação na sociedade e perde a vida sobrenatural.
Numa bela metáfora, São Paulo chama essa sociedade Corpo, e a Jesus Cristo chama de cabeça desse corpo. A Igreja tornou corrente a expressão “Corpus Christi Mysticum”.
Comunhão dos santos
Se bem que os méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo sejam infinitos e, pois, suficientes para expiar inteiramente pelo gênero humano, quis Ele que uma parte do preço do resgate ficasse por pagar. E pagar pelos próprios homens.
Em outros termos, estamos todos reunidos. Mas a maior parte das graças que recebemos está na proporção de nossos méritos. A méritos abundantes correspondem graças copiosas, a méritos menores, uma menor afluência.
Note-se, entretanto, que esse princípio não tem uma aplicação meramente individual, de maneira a entender-se que a maior ou menor abundância de méritos de uma pessoa acarreta só para ela um acréscimo ou diminuição de graças.
De um lado, porque a humanidade constitui um só todo aos olhos da Justiça Divina. De outro, porque nossos méritos não são senão a frutificação da graça em nós. Ora, a graça é, por sua vez, fruto dos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo que a todos pertencem. Por isso, todo mérito que adquirimos representa não só um enriquecimento para nós, mas para a Igreja inteira. Acontrario sensu, toda graça que míngua ou se extingue num homem empobrece toda a Igreja.
No fato de os méritos e deméritos de alguém projetarem efeitos sobre outros homens consiste o dogma da comunhão dos santos. O termo “santos” emprega-se aqui num sentido especial, referindo-se aos fiéis, e não aos santos canonizados.
O tesouro da Igreja
Os méritos infinitamente preciosos de Jesus Cristo, e nossos méritos, constituem pela comunhão dos santos o capital da sociedade sobrenatural que é o Corpo Místico. Esse capital é designado pelo nome de “tesouro da Igreja”.
Acrescer esse capital por ações meritórias constitui um meio de acrescer a efusão da graça em todo o mundo — enriquecendo esse tesouro —, razão pela qual, na luta da Igreja contra seus adversários, é de primordial importância praticar de todos os modos tais ações.
Cada vez que alguém resiste a uma tentação, toma uma resolução virtuosa, faz uma oração, pratica um ato de penitência ou uma obra de misericórdia espiritual ou temporal, acresce o tesouro da Igreja.
Explicam-se por esta forma as Ordens contemplativas. Sem qualquer ação externa, elas vivem para acrescer com o contributo humano o tesouro da Igreja.
Aspecto sobrenatural e aspecto jurídico da Igreja
Posto isso, vemos que há na Igreja Católica, considerada enquanto sociedade de fiéis, dois aspectos indissociáveis. Um sobrenatural e invisível — a sociedade das almas na comunhão dos santos e no Corpo Místico. E outro visível e jurídico. Neste último, a Igreja é uma imensa monarquia com aspectos aristocráticos e democráticos.
Enquanto sociedade de fiéis, a Santa Igreja apresenta dois aspectos indissociáveis: um, sobrenatural e invisível, formado pela Comunhão dos Santos; outro, visível e jurídico, estabelecido na sua magnífica hierarquia eclesiástica
(Ao lado, cartuxo do Mosteiro de Pleterje, Eslovênia; acima, o Papa reunido com Bispos, na Basílica de São Pedro)
Enquanto governada em todo o universo pelo Pontífice Romano, que tem jurisdição direta e plena sobre todos os Bispos e sobre cada fiel, é uma monarquia. Enquanto desse governo participam os Bispos sob a autoridade do Sumo Pontífice, mas com jurisdição própria e não delegada por este, a Igreja é aristocrática.
A situação da Diocese na Igreja Universal assemelha-se por muitos lados à do feudo na monarquia medieval. E as relações do Bispo com o Sumo Pontífice oferecem mais de um ponto de analogia com as que existiam entre o senhor feudal e seu suserano.
O traço democrático existe na Igreja na escolha dos Pontífices, Bispos e Sacerdotes, que não obedece, como no Antigo Testamento, a restrições de caráter familiar. Entre os hebreus, determinou Deus que os sacerdotes só pertencessem à tribo de Levi. Contudo, na Igreja o sacerdócio em todos os graus, inclusive o Papado, pode ser exercido por plebeus.
Reflexo na ação da Igreja
Em ambos os aspectos, sobrenatural e jurídico, a Igreja pode ser vista como um organismo de luta.
Por seus órgãos visíveis — o Romano Pontífice, seus Cardeais, as Congregações Romanas e outros órgãos que constituem a Santa Sé, os Patriarcas, Arquimandritas, Arcebispos, Bispos e Clero secular, Clero regular, religiosos não-sacerdotes e religiosas distribuídos em Ordens e Congregações, as Ordens Terceiras, as associações de fiéis — é ela um imenso organismo que luta proclamando a verdade, dirigindo as almas para a virtude e distribuindo os sacramentos.
A força desses guerreiros, a eficácia de suas armas está toda na graça a qual, pela comunhão dos santos, se distribui por toda a terra.
Acima dessa imensa sociedade, e assistindo com suas preces a nossa luta, estão a Igreja padecente, a Igreja gloriosa e toda a Corte celeste, tendo no ápice, junto ao trono de Deus, a Rainha do Céu e da Terra, Maria Santíssima que é o “General dos Exércitos de Deus” (São Luís Grignion de Montfort, “Tratado”, cap. 1, nº 28).
Como já vimos antes, essa assistência celeste se realiza também com intervenções, visíveis ou não, nos acontecimentos da terra.
Assim, a Cidade de Deus é e será até a consumação dos séculos “ut castrorum acies ordinata” — “como um exército em ordem de batalha”.
Isto segundo uma visão estática. Pois, segundo uma visão dinâmica, a realidade se apresenta muito mais rica. Consideremo-la em um quadro histórico determinado: a grande crise religiosa triunfalmente superada pela Igreja no século XIII.
Atuação de homens providenciais
A sensualidade, sob todos os seus aspectos (depravação de costumes, gosto imoderado de prazeres), penetra a fundo na Cristandade e ameaça dominá-la. A Providência suscita, então, dois varões, São Francisco de Assis e São Domingos de Gusmão, e faz o Papa ver em sonho a Basílica de Latrão em risco de ruir, e sustentada pelos dois fundadores (a Basílica de São João de Latrão, e não a de São Pedro, é a catedral de Roma e do mundo, simbolizando a Igreja universal).
Cada qual age num meio diferente para a regeneração da Cristandade.
São Francisco ensina o desapego dos bens da terra; São Domingos combate as heresias. Em torno deles formam-se falanges de homens e mulheres, dispostos à imitar-lhes os exemplos e auxiliar-lhes os esforços. Surgem sucessivamente as Ordens primeiras, dos frades; as segundas, das freiras; e as terceiras, dos leigos. À voz dos fundadores e de outros apóstolos, as multidões se comovem, as heresias fenecem, o vício decai, a Fé e todas as virtudes voltam a seu primitivo esplendor.
No plano natural, o movimento franciscano se nos apresenta com os seguintes elementos: 1º) um homem de personalidade impressionante, que põe todos os seus recursos a serviço de um altíssimo ideal; 2º) devoções e virtudes que ele prega, as quais, se não são novas, ao menos são por ele apresentadas sob nova luz: a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, a pobreza evangélica, etc., nascendo assim a espiritualidade franciscana; 3º) auxiliares que ele forma e organiza solidamente nas três Ordens; 4º) ele se dirige ao povo, e o conquista.
Com pequenas adaptações, o esquema é o mesmo no plano sobrenatural: é Deus que suscita seus homens de eleição, que convida por sua graça outros homens a lhes servir de discípulos, que lhes dá vocação para a vida religiosa, que atrai para eles as multidões, que toca a alma das multidões quando eles falam, que enfim lhes dá o êxito.
Claro está que nada disto se realizou sem a cooperação do livre arbítrio de cada homem. Mas, enfim, os planos natural e sobrenatural se tocam e, mais do que isso, se interpenetram, do mesmo modo como a vida embebe todos os elementos materiais que formam uma planta.
Em termos filosóficos, no reino vegetal só pode haver vida se houver planta (não há vida vegetal em abstrato); de outro lado, a planta só existe na ordem da vida (uma planta desenhada num papel, por exemplo, não é verdadeiramente planta).
Assim também, na ordem sobrenatural a graça só eleva as criaturas que são puro espírito (anjos) ou dotadas de alma espiritual (homens); por sua vez, as criaturas só podem ser elevadas à vida sobrenatural pela graça.
E assim fatos tão pequenos na aparência — frades que pregam, conventos que se fundam, povo que reza — são ricos em profundo significado, e sua fecundidade resulta de uma ação na qual estão empenhados os mais altos desígnios de Deus, os tesouros mais ricos de sua sabedoria e de sua bondade.
Dessas ações tão modestas na aparência resultaram também os acontecimentos mais profundos da História da humanidade.