Fazendo uma exposição sobre a personalização dos cargos públicos durante o período medieval, Dr. Plinio não se contenta com a mera narração dos fatos, mas procura as razões mais profundas que moldaram as instituições dessa era histórica.
Em direito podem-se distinguir duas espécies de pessoas jurídicas: as associações e as fundações.
Associação é, pelo menos na prática, um conjunto de pessoas que são ou podem vir a ser, coletivamente, proprietárias de um determinado patrimônio. Seu direito de propriedade sobre esse patrimônio é tal que podem, em determinados condições, dissolver a sociedade por mútuo acordo, dividindo os bens entre si. Se quiserem, podem também fazer doação do patrimônio para outra sociedade. E se lhes aprouvesse, poderiam até queimá-lo. Ou seja, elas exercem sobre o patrimônio social a plenitude da propriedade.
A configuração jurídica da fundação é diferente. Trata-se de um conjunto de bens, doados ou legados por um instituidor, acrescido muitas vezes por doações sucessivas, e que constituem um só patrimônio. Este patrimônio não pertence a ninguém. Há os beneficiários do patrimônio, as pessoas em vantagem das quais ele existe, e há os que o administram, mas como empregados, sem retirarem para si nenhuma vantagem pessoal.
Concepção medieval do governo do Estado
Pelo direito moderno, quem governa situa-se, em relação ao Estado, como o gestor de uma fundação em relação aos bens desta. O governante não tem o direito de usar ou de reger os negócios sociais em proveito próprio, mas apenas em benefício do Estado. Recebe um ordenado, como empregado, presta determinados serviços e se retira. Nada há que o ligue a este patrimônio por alguma espécie de propriedade. Isto se dá de alto a baixo na escala social: desde um rei ou um presidente da República, até um contínuo de repartição, em face do Estado todos estão, segundo o pensamento moderno, mais ou menos como os gerentes ou os empregados de uma fundação em face desta.
A característica do direito medieval era inteiramente outra. O governador de um Estado, o senhor feudal, o dirigente da cidade, colocavam-se em face do bem público não como um simples terceiro, mas de maneira tal que houvesse um certo direito de propriedade sobre a função pública de que eram detentores. Não se tinha, portanto, a concepção de um Estado gerido à maneira de uma fundação, em relação à qual todos são terceiros. Mas ele era entendido como uma sociedade, na qual todos têm um tal ou qual direito de propriedade.
Isto se dava, ora graças a um direito histórico; ora a grandes feitos, grandes habilidades, grande dedicação na defesa dos bens públicos; ou a qualquer outra razão pela qual um homem se afirma e sobrepuja os demais. Eram os que constituíam as famílias e os homens mais importantes e graduados. Eles dirigiam o Estado à maneira de co-proprietários. O rei ou o senhor feudal não eram simples titulares do cargo que ocupavam, mas sim os eminentes, dentre os inúmeros proprietários do reino ou do feudo. Os demais tinham um direito de propriedade menor. A idéia de tudo se considerar como propriedade era tal que, na casa real, até as menores funções eram consideradas como propriedade. Assim é que se chegou a referir-se em alguns documentos a determinada pessoa que “tinha por feudo a cozinha real”.
O cartório, revivescência da propriedade dos cargos
No direito brasileiro, temos uma pálida revivescência disso: os cartórios de notas. O tabelião não é propriamente um funcionário público, mas o proprietário do cartório. Ele presta determinado serviço ao público, credenciado pelo Estado; mas, sendo proprietário de seu cartório, sua posição é profundamente diferente da de um funcionário público, que não é o proprietário da repartição onde trabalha. Um secretário da Repartição de Águas e Esgotos, por exemplo, é apenas um funcionário que dirige uma máquina anônima.
Como é hoje o tabelião para seu cartório, assim era o funcionário na concepção medieval. O reino poderia ser considerado como um grande cartório onde o rei seria o tabelião-mor; os nobres, oficiais graduados e co-participantes dos lucros; e por fim a plebe que também participaria desses lucros.
No Estado moderno, monárquico ou republicano, impera o anonimato, a pura repartição pública. Ele é completamente despersonalizado, impessoal.
Pelos laços do feudalismo, o poder monárquico se desmembrava em “miniaturas” do rei, que eram os nobres nos seus respectivos feudos. Essa cadeia de dignidades se desdobrava até o mais simples dos camponeses, considerado o “rei” de seus próprios filhos
(Ao lado, Luís XI de França cercado de nobres; na página seguinte, um feudo com seus senhores e camponeses)
Na Idade Média, quando se fala de Estado, fala-se de dinastia. E quando se fala de dinastia, fala-se do rei que personifica a dinastia e o Estado. Em relação aos dias de hoje, não poderíamos dizer o mesmo. Tomemos ao vivo um exemplo. Ninguém poderia dizer que a rainha Elisabeth é a Inglaterra. Ela é uma inglesa bem situada, de muito prestígio social, simpática, esperta, como uma magnífica atriz num grande palco, vivendo como se fosse rainha, usando jóias dignas de uma antiga rainha. Mas, na ordem concreta dos fatos, a Inglaterra praticamente não tem rainha.
Na Idade Média, pelo contrário, o Estado monárquico era personificado pelo rei e pelos que participavam do poder real, era uma instituição profundamente pessoal. Poder-se-ia dizer algo de análogo a respeito de vários dos Estados não-monárquicos da Idade Média.
Participação na propriedade das funções públicas
Como dissemos, o rei era a personificação do Estado feudal. Mas, quando comparamos o rei com um nobre — o rei da França, por exemplo, com o duque da Normandia ou o da Bretanha —, vemos nesse nobre uma miniatura do rei. Ele é, em âmbito menor, tudo aquilo que o rei o é num âmbito maior. E se considerarmos um nobre de categoria inferior, ele é uma miniatura do duque da Normandia. E por esse processo, de miniatura em miniatura, chegaríamos até ao último grau da hierarquia feudal.
Contudo, pode-se simplesmente afirmar que o rei está para um senhor feudal como o original está, em ponto grande, para a sua miniatura, ou há nisto alguma realidade mais profunda? Pode-se dizer que um príncipe de Condé era uma simples miniatura de um rei da França? O fato de se afirmar que é uma miniatura não mostra a existência, entre eles, de um laço feudal? No que consiste propriamente este laço feudal?
Um rei de França desmembra o seu reino em feudos e dá, a cada senhor feudal, uma parcela do poder real de que ele é detentor. Desse modo o senhor feudal não é apenas uma miniatura do rei, mas participante do seu poder. Ele é, por assim dizer, uma extensão do rei. Sua ligação com o rei faz dele uma espécie de desdobramento do próprio rei.
Os senhores feudais de categoria secundária têm um desdobramento do poder do primeiro senhor feudal. E assim, de participação em participação, chegamos às últimas escalas da hierarquia feudal. Partimos de uma grande fonte de poder, que é o rei, e encontramos participações sucessivas, semelhantes aos galhos de uma árvore. O rei seria o tronco e as várias categorias de nobreza seriam os galhos, sucessivamente mais delgados, até constituir o cimo da copa da árvore, toda alimentada por uma mesma seiva, que é o poder real, do qual tudo emana e para o qual tudo tende. Mas não é absorvente; deita seus inúmeros galhos em todas as direções.
Dignidade pessoal: no rei, no nobre, no camponês
Estudando essa idéia da participação do poder real na hierarquia feudal, chegamos a uma consideração de outra ordem, relacionando a distinção pessoal de cada homem com a dignidade conferida pela função ou o cargo que ocupa.
Quando nos referimos ao rei, dizemos que ele tem uma tal grandeza que chamaríamos de majestade. Nesse conceito, a majestade é aquele tipo de grandeza que constitui propriamente o seu pináculo, e que corresponde ao poder real. Seria impróprio dizer que um duque, por exemplo, tem majestade. Diríamos que tem elevação, alteza, distinção, eminência, que são o próprio dom da majestade, mas num grau menor. Do mesmo modo, não podemos nos referir a um conde e a um marquês como nos referiríamos a um duque. Dizer que têm alteza ou eminência seria demasiado. Poderíamos dizer que têm saliência, relevo, destaque, projeção. É, portanto, mais uma redução. De um nobre menos elevado poderíamos dizer simplesmente que tem fidalguia, ou seja, é um homem um pouco mais saliente, distinto, elevado, mas que já toca na massa geral dos outros homens.
Analisando mais profundamente essas idéias de dignidade, de majestade, de distinção, de elevação, vemos que podem também aplicar-se, embora com menos plenitude, às pessoas da plebe.
Quando consideramos um chefe de família medieval, podemos dizer que ele, ao sentar-se em seu por assim dizer trono, para presidir as refeições de sua numerosa família, o faz com majestade. Entre os camponeses de certa região da Espanha, era costume o chefe da família, ao sentar-se para presidir a mesa — com até cinqüenta pessoas de sua casa — dizer: “Comeremos, pues”, e todos repetirem: “Comeremos, pues”. Recitava depois a oração, que dizia em Navarra: “Que o Menino Jesus, que nasceu em Belém, abençoe a pátria, o rei e a nós também”. E iniciava-se a refeição. Diante desse quadro, poderíamos dizer com toda propriedade que havia ali a majestade simples do patriarca, do homem rude do povo, do lavrador, na qual se sente uma grandeza da natureza, de seiva, de terra.
Poder-se-ia falar em distinção no povo? Certamente. O camponês espanhol ao qual nos referimos, quanto não tem de distinção e de garbo? Assim, tudo quanto dissemos da nobreza, poder-se-ia dizer analogamente da plebe, embora com menos plenitude. Verificamos, portanto, que estes conceitos de nobreza e de majestade não repousam numa só classe social, mas podem aplicar-se até ao menor e ao mais simples dos camponeses. “O rei é o pai dos pais, e o pai é o rei dos filhos”, dizia-se na França antiga.
A bondade intrínseca do ser e a majestade moral
Quanto de majestade não havia em Jó, deitado no seu monturo, limpando sua lepra com um caco de telha, dizendo frases inspiradas e sublimes, carregando o seu infortúnio, falando com Deus, apostrofando seus adversários, impressionando toda a posteridade! Como podemos falar de majestade num homem que está reduzido ao último grau de humilhação? Esta majestade que há nele significa o quê: mando? poder? ou é algo diferente e superior a isto?
Aquilo que chamamos de distinção, nobreza, majestade, elevação, com possibilidade de existir em todos os seres racionais, não é senão a bondade intrínseca do ser. Ensina-nos a Filosofia que todo ser, enquanto ser, é bom. E bom não apenas no sentido moral da palavra, mas no sentido ontológico.
Quando o homem inteligente toma conhecimento dessa dignidade intrínseca do ser e se mostra, por seu livre arbítrio, à altura de sua bondade de ser inteligente, racional e livre, adquire uma elevação que não é comparativa de nada, mas deduzida de seu próprio ser. O mais ínfimo dos homens, consciente do que é ser homem, e mais ainda, do que é ser cristão, e bom cristão, pode elevar-se a uma autêntica majestade moral.
Isto é tão verdadeiro que a Igreja canonizou uma Santa que nos serve de exemplo característico: Santa Ana Maria Taigi. Era cozinheira em Roma. Entretanto, andava pelas ruas com um porte tão majestoso que as pessoas instintivamente recuavam para lhe dar passagem. Não por ter servidores e arrogar-se em grande; a Igreja jamais canonizaria uma cozinheira que quisesse se fazer passar por duquesa. Isto lhe advinha da plenitude de dignidade humana, fruto da correspondência perfeita à graça.
A propriedade do cargo aumenta a dignidade pessoal
Essa grandeza pessoal, como afirmamos, provém da consciência da dignidade humana levada ao seu mais alto grau. Quando, porém, além de ter em si a dignidade comum a todos os homens e própria a todo católico, a pessoa acumula a isto outro título — senhora, por exemplo, de um reino, de um Estado, de uma instituição — algo se lhe acrescenta que a engrandece mais.
O mesmo não acontece quando alguém é um mero funcionário de um reino ou de uma república, pois ao deixar o cargo fica apenas um ex-presidente, por exemplo, e nada mais. Na Idade Média, era preciso que a pessoa estivesse fundida em determinada coletividade humana e fosse a proprietária, por vinculação pessoal, da direção dessa coletividade, para que acrescesse realmente sua pessoa de uma dignidade, que era uma participação da dignidade daquela coletividade humana. Quanto maior e mais ilustre fosse essa coletividade, tanto mais se lhe acrescentava nova dignidade. Era a dignidade do poder público, fundida na sua pessoa, constituindo-se assim na nota própria da nobreza.
Príncipes houve, contudo, que não estiveram à altura do cargo que exerceram nem da posição que ocuparam, e por isso ficaram muito abaixo da situação que deveriam ter.
Realização plena da majestade e papel da Graça
Qual a razão de dizermos que Carlos Magno encheu a história de seu tempo? Por haver tido uma personalidade tão inteiramente à altura do cargo que ocupava, que o próprio cargo foi uma decorrência de sua pessoa. Tornou-se necessária a criação do cargo de Imperador, pois ele não cabia na categoria de rei.
A majestade se realiza plenamente num homem quando, além da dignidade da pessoa humana, ele eleva sua personalidade à grandeza que compete à sua função. A majestade plena lhe advém quando ele encarna o poder supremo, o detém a título de propriedade pessoal e o exerce.
Poder-se-ia perguntar se é possível ter majestade sem auxílio da graça. Esta grandeza pessoal, inerente à personificação de uma grande condição, é uma virtude. Para o homem praticar as virtudes duravelmente e na sua totalidade, precisa da colaboração da graça, mas não para a prática de uma ou outra virtude. Compreende-se, pois, que esta virtude possa ser praticada sem a colaboração da graça. Por isso encontramos a majestade realizada, a seu modo — e que não é artificial — em grandes personagens pagãos da antiguidade, como o faraó Ramsés II, considerado o Luiz XIV do Egito. Contudo, a nobreza, a dignidade, a majestade, alcançam sempre uma realização mais profunda quando resultam da colaboração da graça.
Uma distinção própria a cada classe social
Por fim, podemos examinar o problema da personalização dos cargos e a distinção que lhe é inerente nas várias categorias sociais.
Na Idade Média havia uma forma de distinção própria a cada classe social e condicionada à função de cada qual na sociedade. Havia uma distinção eclesiástica, uma distinção aristocrática e uma burguesa. É necessário não confundir a distinção segundo a concepção medieval da dos tempos modernos. No “Ancien Régime”, por exemplo, a distinção eclesiástica era ter o cabelo empoado, usar lencinho e uma série de atitudes congêneres. Já o espelho da distinção eclesiástica medieval pode ser visto nas esculturas de bispos nos portais das catedrais: homens eretos, de porte firme, olhar profundo e simplicidade de maneiras, mas, ao mesmo tempo, com uma racionalidade e uma nobreza extraordinárias; verdadeiros pastores de almas, guias, príncipes na ordem do espírito, sem preocupação de caráter mundano. O nobre tinha uma distinção guerreira, porque a classe aristocrática era a classe militar. Devia ser um batalhador corajoso, de peito aberto, olhar inflamado, atitude decidida. A distinção plebéia, no fim da Idade Média, era a do burguês: sério, calmo, bonachão, pensativo, de aspecto grave, colocado atrás de uma verdadeira tribuna que era seu balcão.
São três estilos de vida, três funções diferentes na sociedade, dando origem a três tipos distintos. Eram pessoas profundamente enriquecidas em sua dignidade pessoal, que encarnavam e personificavam suas posições. É uma das mais profundas razões da força e solidez das instituições medievais.