Em abril de 1952, mês em que Dª Lucilia completava 76 anos, ela, seu esposo e seu filho se instalaram no espaçoso, aprazível e acolhedor apartamento recém-comprado por este último, no 1º andar da Rua Alagoas, 350, no bairro paulistano de Higienópolis. A satisfação pelo novo lar, vemo-la expressa nas palavras que, algum tempo depois, escreveria ela a Dr. Plinio:
Com teu pai, estamos os dois agasalhadinhos na nossa “casa gostosa” que o filho querido preparou para consolo de nossa velhice.
Cenário ideal do derradeiro período de vida
A residência da Rua Alagoas como que abria nova fase na vida dela, correspondente a seus últimos dezesseis anos de existência.
As cartas de Dª Lucilia que temos contemplado são portadoras das suaves brisas de afeto doméstico e familiar que, ao longo de sua existência, não fizeram senão requintar-se e aprimorar-se. Tão preciosos documentos constituem uma das melhores manifestações da silenciosa e contínua elevação de suas virtudes.
Como nas cartas que escreveu, deixaria Dª Lucilia um testemunho imponderável de sua presença nesses aposentos e salas, onde iria transcorrer o derradeiro período de sua vida. Transformar-se-ia assim o apartamento na perfeita moldura daquele alcandorado convívio, que ali atingiria seu ápice, em especial – é óbvio – no que diz respeito ao relacionamento com o “filho querido de seu coração”.
Nesse local cada objeto teria uma história a contar, evocaria um passado próximo ou longínquo, seria portador da recordação de uma alegria ou de uma tristeza. Em tudo isso haveria de meditar Dª Lucilia em suas extensas horas de reflexão, nas quais analisaria, não raras vezes, os acontecimentos do passado e do presente, tirando conseqüências e fazendo deles um juízo, antes de partir para a eternidade.
Essa seria, por excelência, a casa de Dª Lucilia a qual ela marcaria de forma indelével. Como uma flor que, mesmo depois de retirada do vaso, deixasse a atmosfera impregnada do suave aroma generosamente exalado por suas pétalas, ainda hoje, tantos anos após sua morte, ao transpormos a soleira da porta temos a impressão viva de estarmos entrando em sua residência.
Abandonemos, pois, as turbulências deste século, atravessemos os umbrais do 1º andar da Rua Alagoas, e façamos uma visita “em espírito” à nova casa de Dª Lucilia, deixando-nos envolver pela atmosfera de serenidade e distinção que marca aquelas abençoadas paredes, antes de entrarmos no relato de seus últimos anos de vida.
Acompanhando um cicerone da natureza
Seguindo o peregrinar dos raios solares pelo apartamento de Dª Lucilia, logo ao amanhecer encontrá-losemos esgueirando-se entre as discretas penumbras do quarto dela. Dois oratórios — o do Sagrado Coração de Jesus e o da Imaculada Conceição — a presidir o ambiente, são como os dois extremos de um arco-íris imaginário, que sobre sua cama reluz. Daí, ora contemplava ela, manhã adentro, os Sagrados Corações de Jesus e Maria através das imagens de sua devoção, ora tecia elevadas considerações sobre os aspectos evocativos de alguns objetos: um pequeno relógio de alabastro, bronze e esmalte, presente de Dr. João Paulo; uma elegante jarra e um conjunto de toilette, de prata; ou um gracioso bibelot de porcelana que representa uma raposa, além de pequenos quadros com fotografias de familiares.
Saindo do quarto de Dª Lucilia, a primeira porta no corredor, à esquerda, nos conduz a um living, reservado por Dr. Plinio para seus pais conviverem na recordação do passado e na esperança da eternidade. A seguinte dá acesso a outro aposento: o quarto de dormir do invicto batalhador. Aí, diante de uma pequena imagem do Imaculado Coração de Maria, Dª Lucilia rezava durante o dia, e mais especialmente nas longas ausências de Dr. Plinio, implorando a Maria Santíssima que o acompanhasse.
Atentos e enlevados, prosseguimos o percurso e, em certo momento, nos detemos ao ouvirmos as melodiosas e suaves badaladas de um relógio, que bem simbolizam aquele aprazível ambiente. Atraídos, entramos num escritório de acolhedora atmosfera, banhada por discreta luz.
A digna e sóbria cadeira de balanço faz recordar as incontáveis horas nas quais Dª Lucilia, tecendo crochet ou entregando-se às suas orações, marcava com sua presença esse local. A seu lado costumava trabalhar, num sofá de couro vermelho, seu “filhão”.
Era nesse escritório que Dª Lucilia, sentada à escrivaninha de Dr. Plinio, fazia as contas de sua administração doméstica, as pequenas listas de compras do dia, ou anotava as providências e ordens que daria às empregadas. Quando queria reservar alguma quantia para uma finalidade futura, apontava numa pequena folha de papel o destino do dinheiro, e o enrolava cuidadosamente; guardavao depois numa gaveta onde se iam juntando, em perfeita ordem, os vários rolinhos.
Recolhimento, distinção e harmonia
À saída do escritório, podemos contemplar, no início da tarde, o sol que, caudaloso, penetra na sala mais nobre do apartamento. Aí, uma bela imagem do Sagrado Coração de Jesus, de alabastro branco, domina o elevado ambiente.
Do azul profundo do veludo do sofá e das poltronas, e do azul variado de um autêntico e imaginativo tapete persa, tirou seu nome esse solene e afável local: “Salão Azul”.
Elegante e singela, a escrivaninha de mogno que Dª Lucilia adquirira em Paris nos traz à memória suas eloqüentes cartas. Sobre esse móvel, dois exóticos negrinhos de porcelana, lindamente trajados segundo o gosto veneziano do século XVIII, seguram cada qual uma cúpula de abat-jour, proporcionando agradável e acolhedora iluminação. Dos quadros de antepassados, nenhum caberia melhor, no ambiente de seriedade criado pela imagem do Sagrado Coração de Jesus, do que o da avó paterna de Dª Lucilia, que tão jovem deixou esta vida.
No outro lado do salão, encimada por um grande espelho, uma console dourada com tampo de mármore creme. Sobre este um belo vaso cor-de-rosa, que fazia os encantos de Dr. Plinio já em sua meninice.
Outros objetos, como uma gravura da duquesa de Nemours, mãe do Conde d’Eu, o gracioso bibelot de uma chinezinha e um dos lustres de bronze resgatados por Dª Lucilia ao voltar da Europa, ressaltam a distinção do lugar.
Ao lado do “Salão Azul”, quase como prolongamento dele, mas formando outro ambiente, fica a “Saleta Rosa”. Os mesmos raios de luz que acentuavam a nobreza e gravidade do “Salão Azul”, parecem agora transformar-se em sorriso e intimidade, quando incidem sobre o cor-de-rosa do tapete ou do damasco do sofá. A nota de cerimônia, nunca alheia à família, é dada especialmente pelo quadro da grande matriarca, Dª Gabriela, como também pelo evocativo vaso que fizera parte do mobiliário do Palácio Imperial. Nosso olhar se detém sobre uma peanha onde, dentro de uma redoma de cristal, um pequeno boneco representa o Dr. Gabriel José Rodrigues dos Santos. Trajado com a farda de deputado geral do Império, traz à memória um dos mais ilustres antepassados de Dª Lucilia.
Com o entardecer, os últimos raios de sol repousam sobre a prataria na sala de jantar, após o que, lentamente cedem lugar às penumbras da noite. Se algum convidado de cerimônia é esperado, a gala reluz nos cristais, pratas e porcelanas.
Por fim, ao transpormos a porta de saída, levamos conosco a lembrança da tranqüila, digna e elevada atmosfera que deixamos, tão frontalmente oposta à agitação e vulgaridade da rua…
Embora aquele não seja senão um apartamento, ficamos com a impressão de termos abandonado um nobre palácio. Ao mesmo tempo, somos tomados pela sensação de havermos contemplado mil coloridos cambiantes de vitrais imaginários; ou de termos ouvido inúmeras harmonias que o silêncio e o recolhimento da residência de Dª Lucilia fazem vibrar suavemente na alma, como ressonâncias da personalidade dela…
Mas, reencontremo-la naqueles saudosos tempos.
No ambiente ideal, a dona-de-casa perfeita
A consonância de alma de Dª Lucilia com Dr. Plinio era tal que, tendo seu filho dirigido a mudança da Rua Vieira de Carvalho para o atual apartamento da Rua Alagoas, ela se sentiu atendida em suas preferências, ao ver a ordenação dos móveis e a disposição dos cômodos adequarem-se perfeitamente aos seus próprios pendores. Quanto à decoração, fê-la Dª Rosée, com o seu bem conhecido talento. E, é claro, a gosto de sua mãe.
O governo do lar ficava a cargo de Dª Lucilia, a quem Dr. Plinio considerava de fato a senhora da casa. Muitas vezes, conversando com ela, dizia-lhe afetuosamente que se não fossem suas obrigações de representatividade social, mandaria atender o telefone dizendo:
“Casa de Dona Lucilia Corrêa de Oliveira”.
Dª Lucilia, apesar de sua avançada idade, continuava a exercer de modo exímio as funções de dona-de-casa, orientando diretamente os trabalhos do dia-a-dia. Mantinha o apartamento numa ordem impecável — sem nada de rígido — na qual transpareciam reflexos de sua bela alma.
Aos poucos, o peso dos anos passou a tornar cada vez mais penoso seu esforço, e ela foi deixando de lado o que já não conseguia abarcar. A oração conquistou, então, ainda maior espaço em sua vida.
Entre seus primeiros cuidados figurava sempre o do menu de Dr. Plinio.
Dª Lucilia tinha um modo muito peculiar, melhor diríamos, sapiencial, de tocar os pequenos afazeres domésticos. Hoje em dia é corrente encontrarmos pessoas que se deixam absorver intensamente por suas ocupações. Como não desejam de modo algum ser interrompidas, reagem não raras vezes com acidez para afastar quem as perturbe.
Dª Lucilia era diferente. Por mais que uma tarefa exigisse atenção, nunca se deixava tomar por ela a ponto de perder o fôlego e sobretudo a serenidade. Se alguém a interrompia, não perdia a calma. Conforme o caso, apenas dizia: “Agora não posso parar, espere um pouquinho…”, como quem convida o interlocutor a ficar uns instantes ali, perto dela. Era um modo especial de agir, com uma doçura difícil de ser descrita.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)