Na introdução de uma série de palestras para jovens que se preparavam para fazer a consagração a Nossa Senhora, segundo o método de São Luís de Montfort, Dr. Plinio teceu interessantes considerações sobre o espírito do mundo, e a formação da psicologia dos povos e nações. Nas páginas a seguir, o leitor poderá degustar alguns excertos desses comentários.
O que é o mundo?
Na primeira parte de sua preparação para a Consagração, São Luís Maria Grignion de Montfort deseja que as pessoas façam uma operação de esvaziamento do espírito do mundo.
Para esvaziar-se do espírito do mundo, devemos começar por saber como ele é.
O mundo é a sociedade temporal na qual o indivíduo vive. Em todo país católico, como o Brasil, existem duas sociedades: a espiritual e a temporal. Num certo sentido, a sociedade temporal vive na espiritual e, em certo outro sentido, a espiritual vive na temporal.
Habitualmente, o mundo tem um determinado modo de pensar, de agir e de viver, que todos os seus habitantes — ou pelo menos uma boa parcela deles — reputa verdadeiro, exato, conforme a suas tradições, a seus costumes, a seu modo de ser, a sua cultura, etc., e querem conservá-lo.
O mundo considerado assim, ou é definidamente católico, e neste caso é um colaborador da Igreja, ou não é inteiramente católico mas, em parte ou no todo de sua mentalidade, é construído de um modo oposto ao que a Igreja ensina e, neste segundo caso, é adversário da Igreja.
Isso supõe o princípio de que cada sociedade temporal tem uma mentalidade, ou seja, um conjunto de princípios, de modos de viver e de sentir, uma cultura, uns costumes, uma tradição, esperanças, preferências, etc., e esse conjunto representa as aspirações de todos os seus integrantes.
O indivíduo que tem a mentalidade do mundo vive muito bem nesse ambiente no qual ele tem o consenso geral, pois ele está de acordo com esse consenso. Acontece que se esse consenso não é inteiramente católico, o homem que vive nesse ambiente sofre uma solicitação contínua para deixar a mentalidade da Igreja e tomar a do mundo. E, nesse sentido, o mundo, então, é o grande inimigo da alma.
Nesse caso, a Igreja adverte seus filhos: “Não tomem a mentalidade do mundo, que é má!”
Ter uma idéia bem clara do espírito do mundo
Nossa defesa contra o espírito do mundo, então, tem de ser termos uma idéia bem clara do que é esse espírito, como ele se estrutura, qual é a sua força e como se pode produzir a sua derrota.
Alguém dirá: “Isso é impossível”.
Eu lhe perguntaria: “Você examinou? Você tem sequer idéia de qual é o adversário que estamos combatendo? Como é que você diz ser impossível uma coisa que você não conhece?”
É claro que todas as coisas que não conhecemos podem nos parecer impossíveis. Mas, na realidade, são francamente possíveis se as conhecermos bem.
Derrotar o espírito do mundo é possível em duas dimensões: individual e coletiva. Individualmente, apontando a um indivíduo bem precisamente o que é o espírito do mundo, para ele o combater em si. Pois se ele não sabe o que é, não poderá combatê-lo; no máximo, fará uns combates esporádicos contra um aspecto ou outro, mas não arrancará o monstro inteiro de dentro de si.
No início, a Igreja tinha diante de si “mundos” diferentes
Se tomarmos a História da Igreja nos primeiros séculos — em face dos povos do Mediterrâneo, onde ela se desenvolveu inicialmente, e do Oriente Próximo — veremos que ela encontrava mundos diferentes, porque as estradas eram muito pouco transitáveis, as comunicações eram difíceis, e por isso cada país tinha sua mentalidade, sua cultura, e formava um “mundo” próprio. Ora podia um determinado “mundo” — neste sentido da palavra — estar mais próximo da Igreja, ora podia estar mais longínquo dela.
Por exemplo, os romanos eram muito primitivos quando a Grécia estava no seu apogeu. Por sua vez, quando Roma chegou a seu apogeu, a Grécia era um conjunto de decadentes, mas a cultura grega tinha sido inteiramente assimilada pelos romanos, os quais passaram a viver segundo a mentalidade dos gregos.
A cultura grega tinha-se espalhado por um “mundo” que abrangia, além da Grécia propriamente dita, parte da Península Balcânica, Bizâncio, e parte da Península Itálica, inclusive Roma. Mas uma parte desse mundo era bárbara ainda.
Do outro lado do Mediterrâneo estava o Egito, com uma cultura sensivelmente diferente da cultura grega.
Em cada país a Igreja tinha uma posição diferente perante o mundo.
Como a mentalidade gera o estilo
Antigamente, via-se como uma nação era diferente da outra considerando os monumentos, a literatura, e tudo o que havia sido legado pela tradição. Isso foi assim desde o antigo Egito até a Revolução Francesa e as grandes invenções. Até o século XIX, as nações ainda eram muito diferenciadas umas das outras; cada uma com sua mentalidade, com seu modo de ser, com sua filosofia, constituía um mundo à parte.
A simplicidade aliada à beleza tornou célebre o estilo clássico grego, reflexo da mentalidade de um grande povo
Por exemplo, o estilo arquitetônico clássico grego, superconhecido, superlouvado, como é que se formou? Houve tempo em que os gregos viviam em choupanas. Em certo momento, eles começam a construir, e começam a aparecer obras monumentais, extraordinárias, não pelo tamanho, mas pelo gosto, pela harmonia, pela simetria.
Como se chegou da barraca de um povo de pescadores mais ou menos ignorantes, ao Parthenon de Atenas, por exemplo?
Alguém me dirá: “Dr. Plinio, é muito simples. Um belo dia, apareceu um homem com talento, e havia outro homem que queria construir um templo e lhe deu o dinheiro necessário. Aquele, então, o construiu. Pronto.”
Não é assim. O estilo clássico grego, quando apareceu, encontrou o apoio entusiástico de toda a população, porque um estilo apresenta sempre a imagem de uma mentalidade. Era preciso, pois, que essa mentalidade já estivesse meio incubada nos atenienses para que, quando aparecesse o estilo, eles exclamassem: “É isto!” Quer dizer, houve, em primeiro lugar, uma elaboração do estilo no subconsciente dos atenienses.
Não é que eles estivessem o tempo inteiro à sua procura, pois há certas coisas que o homem só encontra quando não pensa muito nelas.
O conjunto dos habitantes de Atenas tinha uma espécie de avidez daquele estilo. Quando apareceu um homem especialmente capaz de sentir em si — por ser um ateniense muito típico — aquela avidez coletiva, e dotado dos meios artísticos para dar expressão arquitetônica a esses sentimentos, ele fez o Parthenon. Mas quando o fez, ele agiu como um porta-voz de todos os moradores da cidade, de tal maneira que houve uma aclamação geral por sua obra.
Estilo, aqui, não é só o estilo arquitetônico. No caso grego, é toda uma mentalidade ateniense, todo um espírito que, em alguma medida — sem exagerar nada — os filósofos de Atenas e seus grandes intelectuais exprimiram.
Duas mentalidades refletidas num pequeno episódio
Por exemplo. Conta uma lenda que houve um concurso de escultura em Atenas, para o qual se admitiu toda espécie de escultores que quisessem concorrer. E as duas estátuas mais avaliadas foram uma deusa esculpida por um grego e uma rainha esculpida por um persa.
O escultor persa talhou sua estátua com um vestido riquíssimo, à maneira dos potentados persas. A Pérsia, sendo um rico império, tinha todo o luxo, todo o esplendor da corte imperial. Por isso, aparecia neles a preocupação de apresentar nas esculturas o esplendor da corte, como um elemento integrante da mentalidade nacional.
Por sua vez, os gregos em Atenas constituíam uma república que se tornou célebre. O fato concreto é que o grego esculpiu uma deusa muito bonita, mas vestida de uma túnica simplicísima.
O juri, constituído por gregos, fez uma apreciação entre as duas obras de arte e deu a vitória à estátua grega. O escultor persa, naturalmente, ficou indignado — é clássica a oposição entre os dois povos — e protestou:
— Por que é que a minha escultura não ganhou? Ela está tão ricamente adornada!
Os membros do juri lhe responderam:
— Tu a esculpiste rica porque não a soubeste esculpir bela.
Os senhores estão vendo que, num pequeno episódio, são duas filosofias e duas mentalidades que se deixam ver.
A consonância atrai, a dissonância repele
Numa cidade antiga havia bairros, havia estrangeiros, havia tudo o que há nas cidades de hoje. Nas cidades, hoje como antigamente, os vários bairros entram numa espécie de contato mudo uns com os outros, muito mais pelo olhar e pela convivência do que pela conversa. E o modo pelo qual um bairro influencia outro, cria nele uma mentalidade de conjunto que é propriamente a sua “filosofia”.
Desta maneira, cada bairro tem sua filosofiazinha própria e acaba tendo um certo contato — mais próximo ou mais remoto — com outro bairro. Forma-se, assim, uma espécie de “bolsa de filosofias”. Essas filosofias são afins, por causa da vizinhança. E, postas numa mesma bolsa, engendram uma “filosofia comum”, a qual é uma filosofia ampla, abrangendo todos os aspectos da vida, e constituem uma mentalidade total.
Em geral, quando um indivíduo é político e quer ser esperto, ele percebe que quanto mais suas opiniões forem características de um certo ambiente, mais ele atrairá esse ambiente em torno de si. E que quanto mais, em vez de características, suas opiniões forem dissonantes, mais ele repelirá o ambiente que o rodeia.
Qual é o resultado disso?
É que o ser humano, desde menino, vai instintivamente procurando ficar parecido com os outros e tomar a mentalidade dos outros, para ter um convívio agradável com eles. Percebe, às vezes, as dissonâncias de um modo muito vivo, e aceita algumas coisas, mas recusa outras. A maior parte das pessoas aceita tudo, e forma esse “bolo” que, no seu conjunto, se chama “opinião pública”.
Portanto, se alguém quiser ter um rumo na vida, precisa perceber que efeito está causando e julgá-lo: se for um efeito razoável, aceitar; se for de acordo com a fé, aceitar; se for bom, aceitar ainda muito mais. Se for contrário em algo ao espírito, sobretudo, à doutrina da Igreja, recusar. E fazê-lo a qualquer preço. Se a pessoa assim não proceder, se ela não exercer uma vigilância contínua sobre si mesma nesse ponto, acabará se tornando peteca nas mãos dos circunstantes.