Como vimos na edição anterior, em meados de 1952 Dr. Plinio deixara uma vez mais a companhia de Dª Lucilia para fazer uma viagem à Europa, onde trataria de importantes assuntos da causa católica. Dez dias haviam se passado desde o último encontro, no momento da despedida, sem ela saber que o destino do “filhão” seria novamente as distantes terras européias. As saudades cresciam, amenizadas apenas pela correspondência que trocavam.
Assim, na manhã de 17 de junho, com grande alegria recebeu ela um cartão de Dr. Plinio, vindo de Madri. Aproveitando uma escala do avião na capital espanhola, ele não perdeu a oportunidade de enviar à sua mãe algumas palavras de carinho. Com seu transbordante afeto, Dª Lucilia não demorou em lhe responder por meio de uma extensa carta.
São Paulo, 18-6-952
Filho querido do meu coração!
Tivemos no dia quinze — “graças a Deus” — excelentes notícias tuas por Helena Alves de Lima, que telefonou para Rosée. Recebi ontem teu postal de Madrid.
Estou ansiosa por receber uma longa carta tua, e bem pormenorizada!….
É hoje dia de anos de tua tia Yayá. Ela fez saber aos Lindenbergs, que iria para Santos e veio almoçar em casa com o filho e Rosée, e pretende ir jantar com a filha. Está hoje fazendo tanto, tanto frio, que estamos temendo geada, do que, peço a Deus e a São Judas Tadeu, queiram livrar-nos! amém!…
Escreve-me sempre e contando-me tudo que te for possivel, para amenizar as saudades! Já te chegaram às mãos as cartas que escrevemos, Rosée, Zili, teu pai e eu? Quando sento-me para escrever-te, parece-me ouvir os nossos bonitos negrinhos¹ me perguntarem — quando volta Dr. Plinio? Rosée tem sido ótima; seguindo à risca tuas instruções, levou-me e a Maria Alice dar uma longa volta de automóvel, levou-me de automóvel até a Pça Patriarca para incorporar-me à procissão, e depois, mandou-me buscar. Fez-me ir ao concerto do Gulda, maior pianista da época, que apreciei muitíssimo, tem jantado algumas vezes, e quando possível vem duas vezes por dia, e trazendo sempre uma porção de cousas gostosas do Gerbaux². Quanto ao dormir cedo….. “piano, pianino”, vou entrando nos eixos.
Como vais de saúde? Se te fosse possível passar uns quinze dias em Monte Cattini, para substituir o famoso São Lourenço, te seria de muito proveito.
De volta de um chá que ela foi tomar em companhia de Maria Helena Ramos, Rosée passou por aqui um instante para ver-me outra vez, e mostrar-me sua linda toilette de inverno, e sua bela écharpe moderníssima de pele. Ela estava tão chic, tão elegante, que poderia rivalizar com qualquer parisiense, não importa qual!
Porque não levaste teu frack; está tão bonito, e não vai fazer-te falta? Preciso saber se te sentes bem, e se estás te sentindo satisfeito. Que passeios já fizeram? Recomenda-me a teus amigos.
Bem, meu querido, que o Divino Espírito Santo te guie e te inspire, e que o Sagrado Coração e a Virgem Santíssima e teu bom anjo da guarda te abençoem e te protejam!
Com o coração cheio de saudades envio-te minhas bênçãos, muitos abraços e muitos beijos.
De tua velha manguinha,
Lú.
“A Paris falta só uma coisa…”
Depois dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria, dois eram os principais pontos de referência de Dª Lucilia: antes de tudo, seu “filhão” querido; e, no mundo da cultura, Paris. Assim, apesar do imenso desejo de tê-lo junto a si, consolava-se com o fato de o saber na “Cidade Luz”.
Envolta em cogitações que por essa razão lhe traziam um misto de tristeza e contentamento, abriu um envelope chegado naquele instante da capital do charme.
Paris, 12-6-1952
Manguinha querida do meu coração.
Com um milhão de beijos, e mil milhões de saudades (parece-me que desta vez tenho ainda mais saudades suas!), espero a todo o momento um minuto para lhe escrever, que só agora encontro.
Mande-me dizer COM URGÊNCIA como vai a senhora, se está com juízo em materia de orações e horários, se tem procurado distrair-se, se tem tomado água Prata, e… se se tem lembrado de mim! Quero um relato minucioso.
De minha parte vou muito bem, e achando Paris muito mais movimentada e convalescente do que da outra vez, em que estava mortiça e ainda sangrando da guerra. E quanto mais aqui estou, tanto mais vejo e sinto que este é o povo-rei, eleito e preferido de Deus.
A Paris falta só uma coisa: a Lú.
Com muitas saudades, pede-lhe a bênção, e beija-a com afeto imenso o filho respeitoso
Plinio.
Essa missiva — como outras que Dr. Plinio ia enviando ao longo de sua ausência — davam a Dª Lucilia quase o gosto de um encontro com seu filho querido. Já ao ler as palavras iniciais “Manguinha querida do meu coração”, parecia-lhe vê-lo sentado no sofá de jacarandá, pronto a iniciar com ela uma prosinha. Supérfluo dizer que esse convívio à distância se estabelecia não apenas por meio de cartas. De modo mais intenso e profundo, dava-se espiritualmente no Sagrado Coração de Jesus.
Embora Dª Lucilia prezasse tanto o estar junto de seu filho, seu desprendimento a fazia ter ainda maior empenho em que ele conseguisse atingir os objetivos da viagem.
S.Paulo, 24-6-1952
Filho querido do meu coração!
Com quanta alegria e saudades recebi tua carta… ou por outra, recebemos todos quatro, tuas cartas! só entregues no dia vinte e um!
Chegou hoje o teu postal para Yayá, que vai ficar muito satisfeita, quando lhe for entregue.
Dora vai passar um mês em Campos do Jordão e no dia sete, pouco mais ou menos, de Agosto, seguirá para aí.
Rosée tem vindo todos os dias, e tem mesmo com freqüência jantado aqui. Levou-me anteontem ao ballet do Marquês de Cuevas, que é, no gênero, tudo o que já tenho visto de mais bonito. Nas peças de Ignez de Castro, e do prisioneiro do Caucaso, lembrei-me demais de você. Antônio ainda não voltou da fazenda!… Os pobres fazendeiros passaram uns maus bocados, temendo a geada, pois o frio foi intenso, tendo em Santa Catarina a temperatura caído a dez abaixo de zero! Felizmente, graças a Deus, na Santa Alice³, tudo vai bem.
E você, querido meu, o que tem feito? Já se sabe…. sempre a trabalhar…e mais trabalhar… Mas pela minha fé, amor, orações e comunhões, tenho fé, os Sagrados Corações de Jesus e da Virgem Mãe Santíssima, e mais do Divino Espírito Santo, hás de ser muito, muito feliz, poderás de novo receber a bênção e proteção do Santo Papa, e voltarás feliz para os braços da mãe que tem o filho melhor e mais querido do mundo!
Fui hoje, dia de São João, comungar por tua intenção, na [Igreja de] Santa Terezinha. Quando penso que de Paris partirás de avião para Lourdes, Roma, Espanha e sei mais para onde…! sempre de avião, fico sem respiração!
Tenho interrompido tantas vezes esta carta, que até já não tenho bem noção do que tenho escrito. Uma destas interrupções foi feita por Rosée e Maria Alice que me levaram para dar uma volta enorme por Pacaembu, Jardim América, Indianópolis, e caminho do aeroporto. Cheguei um pouco tonta e cansada.
Peço-te filho querido que me escrevas sempre. As que me escreveste de São Lourenço e a daí, são lidas todos os dias, “para enganar o tempo”. Consola-me o ver que todos os que têm vindo aqui acham muita falta em ti, e falam com saudades.
Acabam de entrar para jantar Yayá e Adolphinho e Rosée já está, mas falta você, meu filho.
Que sejas muito feliz, que te divirtas muito nesta bela terra de Lourdes e de Paray-le-Monial. Como se vê, é privilegiada e abençoada…. …e, maravilhosa!
Aproveita o melhor possível e volta, permita-o Deus, descansado, forte e satisfeito.
Com muitas bênçãos e abraços, beija-te afetuosamente, tua manguinha,
Lucilia.
Para apaziguar as saudades, prosinhas por escrito
São Paulo, uma fria tarde de julho de 1952. Os últimos raios de sol, após brincarem com a ramagem das árvores da Praça Buenos Aires, acabam de se retirar, cedendo lugar a uma espessa neblina que vai lentamente ocupando as ruas do bairro de Higienópolis. Em seu apartamento, uma distinta dama reza seu rosário e pensa no “filhão” que está do outro lado do oceano. Concluídas as orações, toca a sineta e pede à empregada que lhe traga um xale lilás. Após tê-lo colocado sobre os ombros, resolve escrever a seu filho. Calmamente se dirige ao “Salão Azul”, abre o tampo da escrivaninha, toma a pena e inicia:
S.Paulo, II – VII – 952
Filho querido de meu coração!
Quantas saudades meu filho! É para apaziguá-las um pouco que venho dar-te uma prosa por escrito. Releio com freqüência a única carta que me escreveste, bem como as de Rosée e Maria Alice que retive comigo. Li também a que foi recebida com grande regozijo no sexto andar. (…)
Rosée tem sido muito dedicada e atenciosa. Tem vindo todos os dias ver-me, e jantado com freqüência. Maria Alice também tem aparecido, me trazendo sempre alguma cousa. Depois de tua partida, já me levou Rosée a dois espetáculos de ballet, e a um concerto de piano, para me distrairem um pouco.
Não sei quando, nem onde, receberás esta carta, se ainda na Itália, ou se já na Espanha… fico tão apreensiva com estas viagens de avião, e…. com tudo mais que te possa suceder ou aborrecer! Vê se podes falar-me um pouco mais em ti, e em tudo que te diz respeito. Quanto a restaurants, é bom que não te excedas. Deste modo adoecerás, e perderás este prazer da mesa por farto, ou por privações, o que é por vezes penoso, que o diga eu!
Estamos passando por nova onda fria, e com teu pai, estamos os dois agasalhadinhos na nossa “casa gostosa” que o filho querido preparou para consolo de nossa velhice.
Tenho rezado, comungado e assistido missas por tua intensão, e creio em Deus, Nossa Senhora e o Divino Espírito Santo, que não te deixarão um momento, e te protegerão sempre, fazendo-te muito feliz em tudo, como tanto mereces.
Zili recebeu teu cartão no dia 30, e mostrou-se muito emocionada e satisfeita. “Mille grazie”!
Já te caceteei demais? Cansada, termino enviando-te com minhas bênçãos, muitos e muitos beijos e abraços.
De tua mamãe extremosa,
Lucilia.
Peço-te não esqueceres de satisfazer o meu pedido na última carta, de mandar dizer uma missa e acender uma vela, no altar de Nossa Senhora da Begoña, por intenção de Rosée; sim? Mais um beijo, e “uma cruzinha”, de mamãe.
Essas últimas palavras de Dª Lucilia, mais uma vez exprimem aquele incomparável desvelo de uma mãe católica, que nunca deixava de ter como preocupação primordial seus próprios filhos. Era especialmente para eles que vivia, rezava e se sacrificava, sem descurar o dever de incluir em suas orações todos os familiares.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)
1 ) Os dois “abat-jours” de porcelana que ficavam em cima da escrivaninha do “Salão Azul”.
2 ) Casa de doces de muita reputação em São Paulo.
3 ) Fazenda do genro, Sr. Antônio de Castro Magalhães, no município de Cambará, no norte do Paraná.