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O menino e o mar

Na primeira narração auto-biográfica de Dr. Plinio sobre sua meninice, publicada no número passado, deixamo-lo numa praia de Santos, contemplando o mar. Dr. Plinio continua aqui suas lembranças de como foi discernindo e optando pelo bem, perante as coisas que observava na infância. E como daí surgia o combate ao mal que via em si.

Visitando o mar de Santos — a praia do José Menino ou o Boqueirão — lembro-me da impressão que me causavam as ondas quando eu as olhava quebrarem-se a certa altura. Vinham aquelas toalhas de água que se estendiam sobre superfícies mais ou menos amplas, e depois, como por uma força misteriosa, eram atraídas de volta e refluíam, refluíam, refluíam.

Em meu espírito elas evocavam dois outros movimentos que afetavam a sociedade em que eu vivia: o da onda enorme da influência e dos estilos de vida hollywoodianos da década de 30 que avançavam, e o da onda da influência européia que retrocedia. Era a velha Europa da qual eu conservava na retina, na imaginação e no coração alguns aspectos fugazes do tempo em que, com quatro anos, eu a visitara. Era a velha Europa da qual ouvia falar sempre, nas conversas caseiras; a velha Europa que eu admirava num livro que papai trouxe da Alemanha, quando lá estivemos em 1913.

Esplendores da Alemanha militar

Esse livro intitulava-se “L’Alemagne Moderne”. Obra de um autor francês que escrevia sobre a Alemanha do tempo do Kaiser Guilherme II, fartamente ilustrado com cenas da Alemanha daquele tempo. Havia fotografias das regiões industriais e da vida econômica e capitalista da Alemanha que não me interessavam. Mas havia também fotografias dos panoramas alemães e da Alemanha artística — que maravilha! Também da Alemanha de corte — que esplendores! Eu folheava o livro longamente, embevecidamente, dez vezes, vinte vezes…

Depois vinha a Alemanha militar. Eu não posso me esquecer de uma fotografia, colorida com os recursos gráficos do tempo, mas que me encantava. Retratava uma parada militar na Berlim kaiseriana, no campo chamado “Tempelhof” (o “Pátio do Templo”), nos arredores de Berlim. Era uma grande planície à maneira de tabuleiro onde as tropas do Kaiser evoluíam. O Kaiser montava um bonito cavalo, portava um capacete de aço com a águia imperial e passava o bastão de comando a um general, porque ele devia partir.

Os exércitos do tempo tinham cavalarias magníficas. Não posso me esquecer de uma fotografia um pouco menor, que retratava o “hurrah” da cavalaria: o momento em que todos gritam “hurrah” e os cavalos avançam contra o adversário de parada, o adversário imaginário. Sabia-se bem que, na mente dos alemães, eram os franceses que estavam do lado oposto. Mas, com certeza, na tribuna dos diplomatas o embaixador francês assistia aquilo imprevidente, impávido, cético, fingindo achar que esse desfile nada tinha a ver com ele.

“Un hurrah de chevalerie”, lia-se na legenda da foto, na qual a gente via avançar a cavalaria com todos os soldados empunhando espadas. Quanto eu me entusiasmava com essas perspectivas!

Alemanha tradicional X Alemanha industrial

Havia no livro fotografias da indústria alemã que tinha aquele quê de metálico, de mecânico, de material, de inanimado no sentido próprio da palavra, isto é, sem alma, inerente a todo ambiente industrial, ainda em nossos dias, e talvez principalmente em nossos dias.

E eu analisava o contraste daquelas fotografias com as cenas de Corte e os retratos do “Kaiser”. Lembro-me de uma fotografia muito bonita: o “Kaiser” e a “Kaiserin” (a Imperatriz) recebendo as homenagens de seus pajens, numa sala esplendidamente iluminada. A “Kaiserin” era uma dama simpática, cheia de bondade e distinção. Os dois estavam em pé e os pajens belamente vestidos, em trajes de “Ancien Régime”, formando um quadrilátero diante do Kaiser.

Olhava aquilo e achava lindo. Mas havia alguma coisa de que eu não gostava; “algo que já cheirava a indústria”: de repente, viro uma página e vejo uma fotografia do Kaiser, não mais vestido de uniforme, como se vestiam os reis daquele tempo, mas em civil, com ar galante e com uma flor no peito. Pouco depois, uma outra fotografia, da célebre, famosa, histórica catedral de Colônia, uma das mais bonitas do mundo, que foi terminada no tempo do Kaiser e que trazia, do lado de fora, entre as estátuas próprias ao edifício gótico, o Kaiser esculpido como profeta do Antigo Testamento. Ficava completamente ridículo! Era indústria de um lado, ridículo de outro, tradição no meio, formando um conjunto objetável.

Quando um pouco depois disso assisti, no cinema, a cena do enterro do Imperador Francisco José, da Áustria-Hungria, fiquei deslumbrado. Tudo era como devia ser, exceto num ponto: faltava a força e o empenho que eu admirava no estilo prussiano. Eu me perguntava: “Não há jeito de juntar essas duas coisas? Quão belas, quão nobres são as coisas austríacas! Aqueles uniformes, que coisa esplêndida! Francisco José, que coisa magnífica! Mas essa gente toda, colocada em cima de cavalos, em seu “hurrah” de cavalaria não é capaz de enfrentar o “hurrah” do Kaiser.

Ora, essas coisas bonitas só são verdadeiramente bonitas quando vitoriosas; e só são vitoriosas quando heróicas; e só são heróicas quando profundamente sérias. Eu percebia que era preciso filtrar, era preciso tamisar o que me vinha dessas nações. Eu não podia aceitar aquilo como um bloco. De outro lado, que critério usar para filtrar? Que critério para tamisar?

As outras nações da Europa

Extasiava-me também com as outras nações da Europa, cujos produtos me chegavam em abundância, porque ainda não havia as grossas travas de alfândega que depois vieram. Por todo lado éramos penetrados pela substância européia, enquanto soprava o vento norte-americano.

Nessa contradição, tomando contato com ares franceses, ao mesmo tempo que eu me maravilhava, dizia de mim para comigo: “mas falta seriedade nisso! Em todo esse mimo, em toda essa graça, falta algo”. Eu vejo que essa nação descende de cruzados, mas eu não vejo que cruzados descenderiam dessa nação. Santa Joana d’Arc, que admirável! Godofredo de Bouillon, nem sei o que dizer!

Olhava Versailles cujas carruagens me tinham entusiasmado tanto; olhava o Trianon, olhava o Petit Trianon, Fontainebleau, as florestas… Como tudo ria e sorria de modo encantador! Mas eu pensava: “isto é o sorriso. Eu quero ver agora a carranca, eu quero ver a força!”

Um trabalho de seleção, com base no critério católico

Era preciso selecionar, era preciso tamisar; não bastava dizer “não” à influência hollywoodiana, mas era preciso rejeitar também a frivolidade francesa e recolher da Europa a pura seiva da Civilização Cristã com base no critério católico.

Eu não via que as pessoas de minha época fizessem isso. Notava que, mesmo pessoas de posição na Igreja, pactuavam indolentemente com a influência yankee que entrava e olhavam sem saudades para a influência européia que recuava.

Mas quando eu estava sozinho, ao lado da reflexão sobre qualquer coisa — uma concha, um caramujo… —, vinham de modo natural à tona essas considerações que eram longamente analisadas por mim. Eu pesava, comparava, admirava, censurava, e a cada passo que via algo admirável, fazia uma comparação com a Revolução anticristã que entrava e compreendia melhor como esta era rejeitável.

Lembro-me que me sentava sozinho naquelas amuradas de canais que entram pelo mar de Santos. Meu pretexto, para poder me isolar, era pescar siri. Arrumava uma pedra, atava-a de um lado a um pedaço de carne crua que me davam na cozinha da casa de meus tios, e de outro lado a um barbante, e partia com um baldezinho. Era o pretexto para ficar sozinho, pensando. Voltava depois para casa com três, quatro, cinco siris, que eram jogados fora.

Pensava eu como seria magnífico se fosse possível unir a beleza das coisas austríacas, a nobreza de Francisco José  com o «hurrah» de cavalaria das tropas do Kaiser!

Acima: desfile militar diante do Imperador Francisco José (também no detalhe); na página anterior: o Kaiser (detalhe) e um treinamento de carga de cavalaria prussiana

Naquela amurada de pedras que invadia o mar, eu ficava cercado de ondas que vinham e voltavam. Às vezes andava pela praia vazia, ao longo da qual havia casas de família ainda dignas e antigas, e que me pareciam bonitos palacetes agradáveis de serem vistos de longe. E as reflexões começavam a me subir ao espírito.

Contemplava o mar de Santos, que a meus olhos parecia grandioso. Naquela época, o mar conservava algo de ameaçador; os que navegavam pelo oceano ainda tinham medo de alguma coisa. E o medo do mar dava-lhe prestígio…

A alguma distância de mim, do lado do Guarujá, havia uma ilha com uma nota de tragédia, quase colada ao continente. Uma ilha de um granito vagamente rosado, não especialmente bonita, mas agradável de se olhar. Era a ilha das Palmas, onde se dizia que havia um hospital de doenças contagiosas. Eu pensava no infortúnio daqueles que eram colocados fora do convívio humano: “fiquem longe, não queremos contato!”

No extremo da terra, isolados, somente ouvindo as ondas do mar… Esse infortúnio naquele ambiente se me afigurava impressionante. Eu tinha muito medo do contágio, mas considerava fascinantes as meditações que ali se pudessem fazer.

As grandezas do mar, os sorrisos do mar, o rumor do mar… O mar brilhando à luz das quatro horas da tarde, no crepúsculo das cinco ou das seis horas da tarde, e por fim, no ponto último onde no horizonte se encontrava com o céu: olhar aquilo me deixava como que intrigado.

Tudo isso me parecia muito belo. E eu refletia: como isso é diferente da coisa americana! Como isso convida a pensar! Como, debaixo de vários pontos de vista, pode-se dizer que isso é profundo, é grandioso, é infatigável, é incessante, é carinhoso, é jeitoso, é discreto. Mas, também, como é solene! Oh, o mar!

Como minha alma que comporta tudo isso é diferente da alma comprimida, achatada, passada na plaina pela Revolução, tão rasa, tão lisa, tão banal, tão corriqueira de tantos daqueles que eu conheço de minha idade! Que mundo está sendo preparado?! Que banalidade!

Combate à tendência para o romantismo

Essa constatação levava-me a deter o olhar não mais na formosura do mar e nas transcendentes belezas a que o mar conduzia, mas a me perguntar: “mas então, como sou eu? Vou me descrever para mim mesmo”.

E na hora de me descrever para mim mesmo, o próprio enlevo pela tradição que eu amava, e pela Igreja que eu quase diria adorava, levava-me a perceber o reflexo dessas coisas na minha alma e a ser tentado de enlevar-me comigo. Era a hora exata em que os estampidos sonoros de Wagner, ou melodias ultra-melosas de Chopin me passavam pela memória.

“Preciso ter a serviço dos meus ideais o ímpeto do “hurrah” de cavalaria, e renunciar a tudo que me afasta deles. Nunca mais Chopin, Schumann, Brahms…”

Carga de cavalaria francesa, e bustos de Schumann e Chopin

Eu tinha tendência a identificar minha pessoa com a tradição — não por minhas próprias qualidades, mas porque em mim se refletia aquela tradição que eu amava. Ora, nessa identificação, havia o convite para uma posição admirativa e lânguida a respeito de mim mesmo.

Era a tentação para o romantismo: a ilusão de ótica por onde a pessoa se põe no centro de tudo, põe-se como foco da tradição, põe-se como o modelo da Contra-Revolução e já não tem interesse em olhar para o mar a não ser na medida em que o mar se reflete nela. Já não tem interesse em olhar para a História, a não ser na medida em que se sente encaixado ou relacionado, ao menos pela fantasia, com a História. Pelo peso do pecado original, a pessoa acaba considerando secundário o que antes admirava e tornando principal aquilo que o pecado original vulnerou, que é o próprio homem.

O mau efeito dessa tentação era como algo lânguido que eu sentia dentro de mim, e pensava: “Não posso consentir nesses pensamentos porque neles há alguma coisa de mau. O que seja, eu saberei depois. Mas o fruto é ruim. Eu preciso ter a serviço dos meus ideais o ímpeto dos ‘hurrah’ de cavalaria. E tudo o que me afastar desse ímpeto é mau. Tais pensamentos podem ter coisas boas misturadas, mas fundamentalmente têm algo ruim dentro. Não e não!” Nunca mais ouvi as músicas que eram conexas com esse estado de espírito: nunca mais Chopin, Wagner, Liszt, para não falar de Mendelsohn e Brahms.

A igrejinha do Embaré e uma vista do litoral de Santos, no início do século XX (Fotos: cortesia do jornal «Novo Milênio»)

Essa introspecção langorosa e derretida de si próprio é a substância do romantismo. Schumann tem uma música chamada “Revêrie”. “Revêrie” quer dizer sonho. A gente vai ver, o tema do sonho é ele, enquanto se admirando e tendo entusiasmo consigo.

O romantismo desnorteou as melhores almas

O homem reto nunca se admira a si mesmo, nunca se contempla, nunca se compara, porque sabe que isso é um poço envenenado, do qual uma gota de água que beba o intoxica.

A perfeição nessa matéria, quando se contempla o mar, consiste em evitar ver o reflexos do mar em si, mas pelo contrário procurar vê-lo como simbolizando Deus Nosso Senhor, a Igreja Católica e todas as grandezas.

Ah, se isso tivesse sido feito pelos românticos, quantas almas se teriam salvo e teriam dado resultados esplendorosos! Como teriam sido outras as gerações!

O romantismo tomava as melhores almas daquele tempo, isto é, as que estavam ainda sujeitas à influência européia decadente, e as enleava nessas malhas da auto-contemplação. Enquanto que o dito americanismo hollywoodiano perdia os que eram menos bons. Diante de meus passos, exagerando algum tanto, eu poderia dizer que os caminhos que se abriam eram sendas de perdição.

As frivolidades dos pseudo-tradicionalistas românticos

Nossa Senhora me ajudou a fazer a escolha de tal maneira que do romantismo não ficasse nada e, espero eu, que algo tenha ficado do “hurrah” da cavalaria, da fidelidade à tradição.

Aqui se tem, portanto, o que era essa batalha interna, e cada um pode fazer a si mesmo uma aplicação. Eu conheci pessoas bem apreciáveis apaixonadas pela tradição. Com elas acontecia por exemplo que começavam a estudar história e de repente um inventava que era conde, começava a se vestir de conde, com roupinhas, gravatinhas, colarinhos, anéis — dois, três, quatro ou mesmo cinco anéis diferentes para serem usados conforme o dia — , e adotava modos de falar em que procurava representar um papel histórico. No fundo, tratava-se do egocentrismo. Eram pessoas das quais se ria e que ninguém tomava a sério, que não atraíam ninguém, que não impressionavam ninguém, não arrastavam ninguém. Porque não era a História, não era um ideal, não era um absoluto, não era Deus que estava presente nelas.

Quantas e quantas coisas desse gênero torciam os melhores. Ia-se conversar às vezes com um que tinha o ar mais tradicional, e ouvia-se só bobagens.

Eu procurava em vão descobrir a que doutrina, a que pensamento, a que princípio queriam chegar. Nada: o interesse era o anelzinho. Ora, anelzinho não convence!

Havia uma deformação análoga a essa, que era o efeito do romantismo na esfera religiosa.

O que era o romantismo religioso?

Era uma sentimentalidade religiosa que desvirilizava, que afrouxava e debilitava a vontade, que não formava fiéis combativos, mas propunha um ideal de caridade mal concebido, que dava no tipo humano do carola, do beato ou da beata, tão caricatos.

Voltemos à praia de Santos. Em meio às reflexões naturais de um menino que se retira sob o pretexto de pescar siri, intervém a Providência.

O Santuário do Embaré começava a ser construído. Uma igreja de um gótico muito provinciano, mas ainda gótico. Da praia, eu olhava para aquela construção e dizia: “Oh, Santa Igreja Católica que não mudas! Tu és fiel ao gótico, que é a morada de minha alma! Tudo muda em torno de ti. Mas tu aqui, diante do mar, em meio à tempestade hollywoodiana, tu ergues as tuas torres góticas aos olhos de Deus e do sol que vai nascer.”

Contemplá-la ajudava-me a discernir entre o bem e o mal, e me enchia de entusiasmo.

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