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A sociedade medieval, esteio da Civilização Cristã

Em um dos capítulos de seus luminosos comentários às alocuções do Papa Pio XII ao Patriciado e à Nobreza Romana, Dr. Plinio ressalta a harmonia que deve reinar entre as classes sociais com vistas ao bem comum. Consonância esta realizada, notadamente, na civilização medieval, quando clero, nobreza e povo conviviam num “intercâmbio de  compreensão, confiança e afeto”.

Na Idade Média a sociedade constituía-se de três classes — clero, nobreza e povo —, cada qual com encargos, privilégios e honras especiais.

Além desta divisão tripartida existia naquela sociedade uma nítida distinção entre governantes e governados, inerente a todo o grupo social, e máxime a um País. Participavam, entretanto, do seu governo não só o rei, mas também o clero, a nobreza e o povo, cada qual ao seu modo e na sua medida.

Como se sabe, a Igreja e o Estado constituem, ambos, sociedades perfeitas, distintas uma da outra e cada qual soberana no respectivo campo. Ou seja, a Igreja no campo espiritual e o Estado no campo temporal.

O importante papel do clero na sociedade

Tal distinção não obsta, entretanto, a que o clero possa ter no Estado uma participação na função governativa. Para tê-lo claramente em vista, cumpre lembrar em rápidas palavras no que consiste a missão especificamente espiritual e religiosa que primordialmente lhe toca.

Do ponto de vista espiritual, o clero é o conjunto de pessoas às quais incumbe, na Igreja de Deus, ensinar, governar e santificar. Enquanto aos simples fiéis cabe serem ensinados, governados e santificados. Tal é a ordenação hierárquica da Igreja.

Numerosos são os documentos do Magistério eclesiástico que estabelecem esta distinção entre Igreja docente e Igreja discente. Assim, por exemplo, afirma São Pio X na Encíclica Vehementer Nos:

Na Igreja de Deus, ao clero cabe ensinar, governar e santificar; e aos fiéis, serem ensinados, governados e santificados

“A Escritura nos ensina e a Tradição dos Padres no-lo confirma que a Igreja é o Corpo Místico de Cristo, corpo dirigido por Pastores e Doutores — sociedade, portanto, de homens, na qual alguns presidem aos outros com pleno e perfeito poder de governar, de ensinar e julgar. É, pois, esta sociedade por sua natureza, desigual; isto é, compreende uma dupla ordem de pessoas: os pastores e a grei, ou seja, aqueles que estão colocados nos vários graus da hierarquia e a multidão dos fiéis. E estas duas ordens são de tal maneira distintas que só na hierarquia reside o direito e a autoridade de orientar e dirigir os associados ao fim da sociedade, ao passo que o dever da multidão é deixar-se governar e seguir com obediência a direção dos que regem.”1

Esta distinção entre hierarcas e fiéis, governantes e governados, na Santa Igreja, também é afirmada em mais de um documento do Concílio Vaticano II:

“Se, pois, os leigos, por designação divina, têm Jesus Cristo por irmão …. assim também têm por irmãos aqueles que, constituídos no Sagrado Ministério, ensinando, santificando e governando, com a autoridade de Cristo apascentam a família de Deus” (Lumem Gentium, 32).

“Procurem os leigos, como os demais fiéis …. aceitar com prontidão e cristã obediência tudo o que os Sagrados Pastores, como representantes de Cristo, estabelecem na Igreja atuando como mestres e governantes” (Lumem Gentium, 37).

A excelsa missão do clero de prover à salvação das almas, produz na sociedade temporal um efeito sobremaneira benéfico

Detalhe da fachada da Catedral de Amiens, França

“Cada um dos Bispos, aos quais foi confiado o cuidado de cada igreja particular, sob a autoridade do Sumo Pontífice, como os seus pastores próprios, ordinários e imediatos, apascentam as suas ovelhas em nome do Senhor, exercendo nelas o seu ofício de ensinar, de santificar e de reger” (Christus Dominus, 11).”

Pelo exercício do ministério sagrado, cabe ao clero antes de tudo a missão excelsa e especificamente religiosa de prover à salvação e santificação das almas. Tal missão produz na sociedade temporal — como sempre produziu e produzirá, até à consumação dos séculos — um efeito sumamente benéfico. Pois santificar as almas importa em imbuí-las dos princípios da moral cristã, e guiá-las na observância da Lei de Deus. Ora, um povo receptivo a esta influência da Igreja acha-se ipso facto disposto de maneira ideal para ordenar as suas atividades temporais, de modo que estas cheguem com segurança a um alto grau de acerto, de eficácia e de florescimento.

É célebre a imagem, traçada por Santo Agostinho, de uma sociedade em que todos os membros fossem bons católicos.

Imagine-se — diz ele — “um exército constituído de soldados como os forma a doutrina de Jesus Cristo, governadores, maridos, cônjuges, pais, filhos, senhores, servos, reis, juízes, contribuintes e cobradores de impostos como os quer a doutrina cristã! E ousem [os pagãos] ainda dizer que essa doutrina é oposta aos interesses do Estado! Pelo contrário, cumpre-lhes reconhecer sem hesitação que ela é uma grande salvaguarda para o Estado, quando fielmente observada.”2

Nesta perspectiva, cabia ao clero assentar e manter firmes os próprios fundamentos morais da civilização perfeita, que é a cristã. Por natural conexão, o ensino, bem como as obras de assistência e caridade, estavam a cargo da Igreja, que desempenhava assim, sem ónus para os cofres públicos, os serviços habitualmente afetos, nos Estados laicos contemporâneos, aos Ministérios da Educação e Saúde Pública.

Compreende-se que pelo próprio caráter sobrenatural e sagrado da sua missão espiritual, bem como pelo que têm de básico e essencial os efeitos do reto exercício dessa missão sobre a sociedade temporal, o clero tenha sido reconhecido como a primeira classe da sociedade.

Permuta de confiança e afeto entre o clero e a nação

Por outro lado, o clero, que no exercício da sua altíssima missão independe de qualquer poder temporal e terreno, é um fator ativo na formação do espírito, da mentalidade da Nação. Entre clero e Nação existe normalmente um intercâmbio de compreensão, de confiança e de afeto, que proporciona ao primeiro possibilidades inigualáveis de conhecer e orientar os anseios, as preocupações, os sofrimentos, em suma, os assuntos de alma da população. E não só os assuntos de alma, como também os aspectos da sua vida temporal que são inseparáveis destes últimos. Reconhecer ao clero voz e voto nas grandes e decisivas assembléias nacionais é, pois, para o Estado, um meio precioso de lhe auscultar as pulsações de coração.

Compreende-se assim que, mantendo embora a sua alteridade perante a vida política do País, elementos do clero tenham sido freqüentemente, ao longo da História, para o poder público, conselheiros ouvidos e respeitados, partícipes valiosos na elaboração de certas matérias legislativas e na fixação de certos rumos do governo.

Mas o quadro das relações do clero com o poder público não se limita a isto.

A nobreza tinha um caráter militar e guerreiro: defendia o país contra as agressões externas, e zelava pela ordem política e social

Figuras de nobres na fachada da Catedral de Notre-Dame de Paris, França

O clero não é um conjunto de anjos vivendo no Céu, mas um conjunto de homens que, como ministros de Deus, existem e atuam in concreto nesta Terra. Isto posto, o clero faz parte da população do País; perante este, os seus membros têm direitos e deveres específicos. A proteção desses direitos, o reto cumprimento desses deveres é da maior importância para ambas as sociedades perfeitas, isto é, para a Igreja e para o Estado. Di-lo com eloquência Leão XIII na Encíclica Immortale Dei:

“Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados. Nessa época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil. Então a Religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de dignidade que lhe é devido, em toda a parte era florescente, graças ao favor dos príncipes e à proteção legítima dos magistrados. Então o Sacerdócio e o Império estavam ligados entre si por uma feliz concórdia e pela permuta amistosa de bons ofícios.

Organizada assim, a sociedade civil deu frutos superiores a qualquer expectativa, cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está em inúmeros documentos que artifício algum dos adversários poderá corromper ou obscurecer.”3

Tudo isto faz ver, que o clero se distingue dos restantes membros da Nação como uma classe social perfeitamente definida, a qual é parte viva do conjunto do País e, enquanto tal, tem direito a voz e vez na vida pública deste.

A nobreza e sua missão ordenada ao bem comum

Ao clero seguia-se, como segunda classe, a nobreza. Esta tinha essencialmente um caráter militar e guerreiro. Tocava-lhe a defesa do País contra as agressões externas e também a defesa da ordem política e social. Além disso, nas suas respectivas terras, os senhores feudais exerciam cumulativamente, sem despesas para a Coroa, funções algum tanto análogas às dos presidentes das Câmaras, juízes e comissários de polícia hodiernos.

Como se vê, estas duas classes eram basicamente ordenadas para o bem comum e, em compensação dos seus graves e específicos encargos, faziam jus a honras e vantagens correspondentes. Entre estas a isenção de impostos.

O povo e os interesses particulares

Por sua vez, o povo era a classe votada de modo particular ao trabalho produtivo. Eram privilégios seus ter na guerra uma participação muito menor do que a da nobreza, e, quase sempre, a exclusividade no exercício das profissões mais rendosas, como o comércio e a indústria. Os seus membros não tinham normalmente para com o Estado qualquer obrigação especial. Trabalhavam para o bem comum apenas na medida em que cada qual favorecia os seus legítimos interesses pessoais e familiares. De onde ser a classe não favorecida por honrarias especiais, e sobre a qual recaía em consequência o ônus dos impostos.

O povo se dedicava ao trabalho produtivo, atuando para o bem comum na medida em que cada qual favorecia os seus interesses pessoais

Detalhe da fachada da Catedral de Amiens, França

“Clero, nobreza e povo”. A trilogia lembra naturalmente as assembléias representativas, que caracterizaram o funcionamento de muitas monarquias do período medieval e do Antigo Regime: as Cortes em Portugal e em Espanha, os Estados Gerais em França, o Parlamento na Inglaterra, etc.

Nestas assembléias havia uma representação nacional autêntica que espelhava fielmente a organicidade social.

Na Época das Luzes, outras doutrinas de filosofia política e social começaram a conquistar certos setores dirigentes dos países europeus. Então, sob o efeito de uma mal compreendida noção de liberdade, o velho Continente começou a caminhar para a destruição dos corpos intermediários, a inteira laicização do Estado e da Nação, e a formação de sociedades anorgânicas, representadas por um critério unicamente quantitativo: o número de votos.

Esta transformação, que se estendeu das últimas décadas do século XVIII até aos nossos dias, facilitou perigosamente o fenômeno de degenerescência povo-massa, tão sabiamente apontado por Pio XII: “Da exuberância de vida de um verdadeiro povo, a vida difunde-se abundante, rica, no Estado e em todos os seus órgãos, infundindo-lhes, com vigor constantemente renovado, a consciência da sua própria responsabilidade, o verdadeiro sentido do bem comum. Da força elementar da massa, habilmente manejada e utilizada, pode também servir-se o Estado; nas mãos ambiciosas de um só, ou de vários, que as tendências egoísticas tenham artificialmente coligado, o próprio Estado pode, com o apoio da massa reduzida a não ser mais do que uma simples máquina, impor o seu arbítrio à parte melhor do verdadeiro povo. O interesse comum recebe daí um golpe grave e durável, e a ferida torna-se rapidamente muito difícil de ser curada.”4

(Extraído de “Nobreza e elites tradicionais análogas, nas alocuções de Pio XII ao Praticiado e à Nobreza Romana”, Livraria Editora Civilização, pp. 53-58. Título e subtítulos nossos.)

1) Acta Sanctae Sedis, Romae, 1906, vol. XXXIX, pp. 8-9.

2) Epist. 138 ad Marcellinum, cap. II, nº 15, Opera omnia, tomo II, Migne, col. 532.

3) Acta Sanctae Sedis, Typis Polyglottae Officinae, Romae, 1885, vol. XVIII, p. 169.

4) Rádio-mensagem de Natal, de 1944

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