A viagem de Dr. Plinio se prolongava naquela Europa de 1952. Embora tivesse de se sujeitar a certa irregularidade do serviço de correios da época, o carteio entre Dª Lucilia e seu filho não obedecia à formalidade de só responder após receber alguma missiva. Sua lei era a do afeto e, por isso, quanto mais as saudades apertavam, mais a pluma daquela carinhosa mãe deslizava suave sobre o papel, traçando palavras impregnadas de amor materno que levavam a seu filho o aroma do lar.
Da parte de Dr. Plinio, as saudades lhe faziam correr os dedos mais decididamente sobre o teclado da máquina de escrever, a fim de manifestar a enorme falta que sentia de sua “Manguinha”.
A morosidade na entrega da correspondência, a ambos deixava perplexos. Assim, em adendo à uma de suas cartas, Dr. Plinio informava a Dª Lucilia:
Acabo de vir da embaixada e consulado: que surpresa! Nem carta sua, nem de Papai, Rosée, Adolphinho e ninguém do 6º andar. (…) Como explicar?
A leitura dessas linhas com certeza afligiu Dª Lucilia. Afinal, enviara ela várias cartas a seu filho e ele não as recebera? Felizmente, dentro de dois ou três dias, nova missiva desfaria sua preocupação:
Maezinha do coração
Recebi afinal cartas suas, de Rosée, Maria Alice, Papai. A todos, muito obrigado. Procurarei nesta carta dar um recado para cada qual, pois, depois de uns dias muito bons em Madrid, devo ir amanhã para San Sebastián, rumo a Lourdes e Paris.
Graças a Deus, a viagem está indo superior, e de muito, à minha expectativa. Conto partir da Europa, rumo à deliciosa e saudosa Rua Alagoas, e à deliciosíssima e saudosíssima companhia de minha incomparavel Lú, em fins de Agosto ou primórdios de Setembro. E assim pode a Sra. ir preparando o vatapá…
Como Papai é o grande técnico na degustação, é bom que se vá preparando!
Sou forçado a interromper esta espécie de telegrama, que é hora de jantar.
Mil milhões de beijos para a Senhora, meu amor, abraços afetuosos a Papai. A ambos peço a bênção. Beijos, saudades, mil coisas para as duas da Rua Uruguai. Abraços para Antônio e Eduardo. Bem entendido, beijos, abraços, saudades para as Tias e demais da família, excetuado o Adolphinho, contra o qual, bem como os do 6º, fulmino uma “excomunhão”!
Plinio
“Egoisticamente estremeci de alegria…”
Em meio ao tom geral alvissareiro dessa carta, algo houve a contristar o coração materno: seu filho demoraria a regressar mais do que ela imaginara. Mas, pensando no bem dele, Dª Lucilia recebeu tal notícia com toda a tranqüilidade de espírito.
Até em relação a pequenos fatos da vida quotidiana que a entristeciam, sua atitude de alma fazia lembrar as belas palavras escritas numa expressiva estampa de Maria Santíssima assistindo à descida de Nosso Senhor da Cruz. Dr. Plinio a ganhara quando menino, no Colégio São Luís: “Ecce in pace, amaritudo mea amarissima”1. “A paz é o açúcar da amargura, para quem tem a consciência tranqüila. É a certeza do amor de Deus e de Nossa Senhora por nós, é coragem e força”. Tendo feito essa reflexão quando estudante, ele a guardou por toda a vida.
Na carta a seguir, como em inúmeras outras vezes, pôde Dr. Plinio contemplar um exemplo vivo dessa paz, na alma de sua mãe.
São Paulo, 6-VIII-52.
Filho querido de meu coração!
Tive esta manhã o grande prazer de receber mais uma carta tua vinda ainda de Madrid, datada de….??! Por que não pões datas em tuas cartas? Depois do telegrama recebido há alguns dias no “sexto” andar, temos todos enviado nossas cartas para Paris — Regina Hotel. Não sei bem porquê, os rapazes deduziram de teu telegrama, que havias antecipado tua vinda para o próximo dia dezesseis. Egoisticamente, estremeci de alegria, mas pela carta de hoje, me armei de nova paciência, pensando que, afinal de contas, és alguma coisa mais, além de uma máquina humana de trabalho.
É forçoso que, antes de recomeçar aqui a luta, te distraias e descanses um pouco. “Assim devia fazer o tamoio”! Percebe-se que a expectativa do Adolphinho pela tua volta é fremente!
Não te esqueceste de mandar dizer a missa no altar de Nossa Senhora de Begoña, conforme te tenho pedido em todas as cartas? Se não o fizeste, escreve daí para que o façam.
Recomenda-me a teus amigos, e com minhas bênçãos, muitos abraços e muitos beijos, recebe o coração saudoso de tua mãe extremosa,
Lucilia.
Quando te vir chegar, creio que não vou pensar que é verdade!
No intuito de poupar a sua mãe qualquer aflição, Dr. Plinio procurava sempre voltar alguns dias antes da data marcada. Dr. João Paulo aprovava esse procedimento do filho, como podemos ver neste trecho de uma carta de 7 de agosto:
Aí vai mais uma carta da Lucilia que, na desconfiança ou melhor na incerteza da tua partida de Paris, resolveu escrevê-la. Aproveitando “a condução”, ou seja o mesmo envelope, também te mando esta.
De minha parte estou a supor que o teu regresso não será nos primórdios de setembro, do que falas, mas no correr deste mês, de modo que Lucilia só saiba [de tua volta] quando chegares ao Rio ou a São Paulo, o que aliás, me pareceria de bom aviso.
“Lourdes, como sempre, uma maravilha… Fiquei horas na gruta, comunguei, ajudei Missa, rezei muito e, evidentemente, não me esqueci da Manguinha do coração…”
Na previsão do regresso, os últimos pedidos
Como na fase final da viagem o programa de Dr. Plinio estava muito preenchido por contatos com pessoas de influência, a contragosto teve de tornar mais raro seu convívio epistolar com Dª Lucilia. Numa carta que seu escasso tempo lhe permitiu escrever, narra ele — em vista do encanto de sua “marquesinha” pela Douce France — a estadia naquele país. Esta última missiva vinda da “Cidade Luz” foi por ela recebida em meados de agosto.
Paris, 9-8-52
Luzinha querida de meu coração,
Há alguns dias já, que estou em Paris, depois de uma ótima viagem pela Espanha, passando depois por Lourdes, Toulouse, Paris. Na carta que hoje enviei aos do 6º andar, dou notícias da Espanha. Para a Senhora, vão as da França.
Lourdes como sempre uma maravilha… (…) Fiquei horas na gruta, comunguei, ajudei Missa, rezei muito, e evidentemente não me esqueci da Manguinha do coração, do meu caro Dr. João Paulo, das nossas “uruguaias” e de toda a família.
Aqui agora sou todo da marinha: janto hoje em casa de um almirante de Pentfentenyo de Kerveguéren, e amanhã deve vir de Toulon o almirante Lafont, diretor da produção de armas da marinha francesa.
Anteontem, a convite do Arquiduque Otto2, almocei no castelo dele em Clairfontaine, a uma hora daqui. Castelo muito bonito, moveis de carvalho encerados, coleções de esmaltes, quadros históricos, boa instalação.
A comida: cinco pratos, inclusive a sobremesa; presentes só o casal e eu; conversa dele brilhante, muito agradável; ela quieta, deslumbrada, viva no olhar, no sorriso, mas prudentona, evitando de dizer de mais ou de menos; e sobretudo sabidona, um pouco à mineira. Visita longa, muito amáveis, ficamos amigos.
Devo estar de volta na deliciosa Rua Alagoas pelo dia 7 ou 8. Já sinto daqui o cheiro do vatapá.
Mil beijos para Rosée, cuja carta estava muito engraçada, e me fez rir. A todo momento faço votos pela vinda dela a esta Paris onde seria delicioso estarmos juntos. Muito obrigado às Tias Zili e Yayá pelas cartas. Sei que elas não estranharão que nesta reta final não lhes responda, mas estou com os minutos contadíssimos. Suas cartas me deram muito prazer. Para elas e para Tio Nestor e Adolphinho, abraços afetuosos.
E agora, Lú querida, volto à Sra: juízo, horário, deitar cedo, cuidado com a saúde de todo o jeito e sob todas as formas. Um milhão de abraços e beijos do filho que a quer até o fundo do coração e lhe pede a bênção
Plinio
Exultante por que o ansiado reencontro se daria em menos de um mês, Dª Lucilia respondeu imediatamente. Dignos de nota, ao longo dessa sucessão de cartas, são suas vistas sobrenaturais e seu grande desprendimento. Para si nada pede, mas somente para os outros, não se esquecendo nem mesmo da boa empregada Olga:
São Paulo, 14-VIII-1952
Filho querido de meu coração.
Depois de dois dias de espera, recebi afinal, e com grande alegria, hoje, tua carta do dia nove, dando-me a grata notícia de que, de amanhã a uns quinze ou dezoito dias, se Deus quiser, terei a imensa felicidade de ver-te de volta, de te abraçar, de te cobrir de beijos, e de ver-te todos os dias, enfim…. Só assim, a nossa casa tornará a ser boa e deliciosa!
Espero que Rosée chegue amanhã, e penso que Antônio ficará ainda alguns dias para fiscalizar a colheita. Espero em Deus, ter dentro em breve, o gosto de ver à minha volta, todos os meus queridos pintainhos, e….. o meu “Pisi” 3 de meu coração!
Meu filho, receio ser importuna, mas lembraste da missa no altar de Nª Senhora da Begoña? Se ainda te for possivel, faze-o — sim?
Estimei muito saber que estivestes em Lourdes, e agradeço-te as orações feitas por mim. Escreva-me logo!
Vê se não te esqueces de trazer qualquer lembrancinha para a Olga e filha. Sentiram-se tão lisongeadas noutra vez, lembras-te?
Com muito sono me despeço, enviando-te muitos beijos e abraços, e mais, o coração saudoso de tua mãe extremosa,
Lucilia.
Desculpa-me as faltas, mas estou pendendo de sono…..
Aproveitando a margem da mesma carta, Dr. João Paulo escreve:
Nada de novo, de importante, a transmitir a você.
Se passar em Pernambuco, não podendo ir ao Uruaé, telegrafe ao Totonio e à Tetê4. Eles cogitam de oferecer a você um prato que não conheço e que não recomendo por tal motivo.
Abraços do pai e amigo,
João Paulo
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)
1) “Eis, na paz de alma, minha amargura muito amarga”. (Is 38, 17).
2) Filho primogênito de Carlos I, Imperador da Áustria-Hungria destituído por pressão das potências vencedoras da Primeira Guerra Mundial.
3) Modo de Dª Lucilia dizer “Plininho”, quando este era bem pequeno.
4) Sr. Antônio e Dona Teresa, irmãos de Dr. João Paulo.