Em mais uma exposição da série autobiográfica de Dr. Plinio, externa ele o profundo amor pela fé católica apostólica romana que o pervadiu desde menino, e cresceu ininterruptamente na sua alma ao longo de quase nove décadas.
Como anteriormente assinalei, a condição para que eu perseverasse no bom caminho e na procura do ótimo, era não pactuar com o meio-termo nem com a mediocridade que seduziam a muitos naqueles idos dos anos 20. Tratava-se de uma rejeição imperiosa, se eu quisesse, como queria, progredir na prática da virtude, pois um ambiente medíocre (como o que então me rodeava) tolera o mal, sorri para as manifestações veladas ou encobertas deste, e não se alarma desde que o mal progrida devagar, permitindo uma vida despreocupada.
A mediocridade abre a porta para a infâmia
Esse estado de espírito não pode deixar de conduzir a um ponto em que as pessoas capitulam completamente
diante da maldade. Conhecemos a triste situação moral de nossa sociedade moderna. Ora, essa decadência começou com coisas na aparência inócuas. Por exemplo, uma cançãozinha alegre, engraçada, cuja letra entretanto se prestava a interpretações imorais. Em todo caso, uma música que, comparada com as de hoje, seria tida como quase pura. Assim entrou o
veneno; o resto foi conseqüência.
A primeira atitude tomada pela infâmia foi expulsar a mediocridade
Outro exemplo significativo. Pouco antes de eu nascer, deu-se um fato que
amargurou os dias de São Pio X: rapazes e moças passaram a dançar a valsa, estreitando-se pela cintura. Até aquele momento, um rapaz jamais teria ousado agarrar uma moça de família pela cintura, em nenhuma circunstância da vida quotidiana. Mas, os jovens começaram a fazê-lo num salão, à vista de numeroso público. Tomada essa atitude pela primeira vez, num recinto fechado, dentro de pouco tempo há de vir um agarra-agarra fora do salão. E chegará o dia em que o pudor desapareça por completo e a imoralidade se instale. Porque, dado o passo inicial, o resto
é conseqüência.
Não houve reação. As pessoas diziam: “Não tem nada de mal! Os dois estão apenas dançando, nem pensam em imoralidade! É para o movimento ficar mais leve e elegante”.
Minha resposta: “Eu sei que isso não é verdade. Trata-se da mediocridade que começa com ares inocentes”.
Entretanto, posso atestar que durante muitos anos nada de imoral se verificou nos salões de valsa, além dessa postura dos dançadores. Mas algo tinha começado. Era a mediocridade se instalando e reinando. Depois de se tornar soberana e
dominar o ambiente inteiro, ela trouxe de lado sua cúmplice, a infâmia, e lhe disse: “Agora pode entrar!”
Uma vez dentro, a primeira ação da infâmia foi expulsar a mediocridade. “Sua velharona! Sua tradicional! Para fora!”
A mediocridade se esvaiu. E, de tal maneira ela é cúmplice da infâmia, que esta a injuria e ela nem sequer passa pela porta para sair: evapora-se, desaparece. A infâmia toma conta de tudo. É este o caminho.
Em tantas e tantas situações eu ia percebendo a mediocridade que se escondia atrás das virtudes, e depois abria a porta para a infâmia. Esta não se fazia de rogada, e entrava sem demora.
“Católico apostólico romano”
O horror que eu tinha à infâmia me obrigava à seguinte conclusão: ou me decido pelo ótimo, ou sou um cúmplice. Cúmplice, não quero ser! E por mais que eu não sinta uma especial apetência por esta ou por aquela virtude, hei de praticá-las otimamente, porque todas as virtudes são irmãs.
Contudo, há algumas virtudes para as quais caminhamos, não pelo terror do abismo, mas pela vontade de voarmos no céu. Quantos de nós já não pensamos em como seria agradável passear nesse azul que admiramos lá no alto! Assim também é o enlevo que sentimos, sob uma ação da graça, por certas qualidades morais, levando-nos a desejá-las de todos os modos. Então queremos ser ótimos, pela melhor das disposições de alma. É porque a virtude é tão bela, tão boa, que somos insaciáveis dela e almejamos ardentemente possuí-la.
Qual foi, na minha vida, a virtude que mais me entusiasmou, aquela que mais procurei seguir e pela qual tive maior ardor?
A pureza era apenas um degrau no meu entusiasmo pelo conjunto das virtudes
Uma havia que despertava em mim essa fervorosa adesão, concomitante com o horror ao vício oposto: era a pureza. Porém, não levei tempo em perceber que esta representava apenas um degrau, e que o meu
arrebatamento era por um conjunto, uma constelação de virtudes.
Tais virtudes se consubstanciavam em atos de intelecção e de vontade, em estados de espírito, num feitio de alma ou num modo de ser. Para mim, esse conjunto de
qualidades se podia definir por uma palavra que, graças a Nossa Senhora, nunca fui capaz de pronunciar sem me entusiasmar: “católico”!
Vê-se bem que, se formos especificar o assunto teologicamente, tratava-se da virtude da Fé. Porém, não era o mero crer. Era o amar aquilo em que se acredita. Portanto, incluía a Caridade. Como era também o esperar alcançar o ideal para onde se tende. Logo, a Esperança. É o anel das três virtudes teologais que constitui o modo de fazer, de pensar, de sentir e de
ser católico.
Eu me lembro de mim em pequeno, sozinho, pensando: “Curioso… A palavra católico parece uma música”. Eu não sabia que era um vocábulo grego, e menos ainda que significava “universal”, mas analisava sua sonoridade: “Que linda palavra! Ca-tó-li-co! Quatro notas, que beleza!”
Em seguida, pensava: “O forte desse “a”: Católico! Começa rompendo e proclamando. Depois o “ó” que exclama e está no píncaro. E o “i”, terminando com delicadeza. Que palavra a meu gosto!”
E continuava a refletir: “Mas eu já tenho ouvido falar de católico apostólico romano. Essas três palavras constituem um todo. O que são esse apostólico e esse romano que se juntam com o católico? Bem, estou sozinho, não tenho a quem perguntar. Vou analisar a musicalidade da expressão…”
Eu partia do pressuposto de que as palavras, às vezes, musicam o próprio conceito. Ao ouvir dizer: “católico apostólico”, esse apostólico soava como uma reedição do católico, apresentado de outra forma, como uma guirlanda que desce, se engrossa e depois
sobe. “Que bonito! Fica bem!”
“Romano”! Essa palavra tem um porte sério, uma sonoridade sólida. Dá a impressão de um rio que corre sob um arco robusto — eu ainda não ouvira falar do Tibre —, em que as águas passam fluidas e o arco da ponte continua estável. “R-o-m-a-n-o! Que bonito. Eu vou perguntar o que significa”. E procurava mamãe, para que ela me esclarecesse, oferecendo-me uma explicação adequada à mentalidade de uma criança.
O mesmo se poderia dizer do meu entusiasmo pela infabilidade papal e pelo Pontífice Romano. Quando ouvi pela primeira vez esse título que é dado ao Sucessor de Pedro, pensei: “Mas que belas palavras! E como compõem outra melodia: Pon-tí-fi-ce Ro-ma-no!”. Está no alto, e é infalível. Ele manda e todos obedecem. Ser católico é uma dádiva impressionante. Não há igual, é o summum!
Nossa Senhora me deu graças para compreender que o crer era indispensável e admirável, mas não bastava. Cumpria possuir um certo estado de espírito, para o qual eu tendia com todos os meus melhores anseios.
Essa postura de alma consistia propriamente num misto de seriedade, de visão de longo alcance, de força calma, compassada, positiva, capaz de remover qualquer obstáculo, vencer qualquer distância e chegar até onde se deve. Estado de espírito ao mesmo tempo afável, gentil, mas disposto a qualquer implacabilidade, caso seja o momento.
A procura do ótimo nasceu com a Fé
Assim, eu entraria numa bárbara contradição comigo mesmo se estabelecesse — para usar a linguagem da Escritura — os meus tabernáculos, as minhas tendas na terra da condescendência, do equívoco e do meio-termo, uma vez que o estado de espírito que eu quero ter, o único que eu amo por definição, é o oposto desse meio-termo.
Amo-o, porque é imensamente sério, conseqüente, e não trata nada com superficialidade, porque nada pode ser tomado de maneira
leviana, quanto mais algo que diga respeito à moral.
A partir do meu Batismo, a Fé começou a me modelar e conduzir para a adesão ao ótimo
É fácil compreender como esse entusiasmo pela religão católica apostólica romana, entendida como o deve ser, logicamente teria de levar ao ótimo. E se me perguntam como surgiu o desejo do ótimo em mim, não tenho dificuldades em responder: nasceu com a Fé.
Quando recebi com o Batismo a graça da Fé, esta começou a me modelar e a me conduzir para essa adesão ao ótimo, conforme os desígnios da Providência a meu respeito. E neste amor eu espero exalar meu último suspiro, quando chegar a hora determinada por Nossa Senhora. De tal
maneira que minhas derradeiras palavras sejam ao mesmo tempo um hino de devoção a Jesus Cristo, à Santíssima Virgem e à Igreja. Ainda que sejam só essas palavras: católico apostólico romano, escravo de Maria. Mais nada. Minha vida estará justificada até o último termo.
A Fé amplia nossos dons naturais
Não me custa discernir que esta atração especial pela virtude da Fé tenha sido dada a mim, por misericordiosa disposição de Deus, na previsão das batalhas que eu travaria ao longo de minha vida, em favor dessa virtude.
À Fé católica devemos consagrar o nosso denodado serviço. É ela um tesouro incalculável, pelo qual jamais seremos suficientemente agradecidos. Eu sustento que — como prêmio quão secundário, mas quão verdadeiro — a Fé inclusive torna as pessoas mais inteligentes. Um homem que tenha Fé autêntica, pode multiplicar por duas ou três vezes a inteligência com que nasceu: esta então brilha, corusca, cintila com luzes internas inimagináveis!
Fala-se, por exemplo, dos povos do Oriente com seus dons artísticos maravilhosos: Grécia, Índia, Egito, China, Japão, etc. Ora, não se pode fazer idéia do que teriam sido esses povos se tivessem abraçado inteiramente a Fé católica. As pirâmides são lindas? Lindos são os obeliscos? Mas, que é a beleza deles, quando passava perto o Menino Jesus com Nossa Senhora e São José? Não há palavras que o digam!
Então, por todas as razões possíveis, procuremos ter a Fé e esse estado de espírito, essa mentalidade que dela decorre. Assim desejaremos e obteremos o ótimo.
Amor que já é uma bem-aventurança
Por mais que me estenda sobre esse tema, nunca terei falado suficientemente a
respeito dele.
Quanto eu desejo comunicar esse amor, esse enlevo pela Santa Igreja Católica, pela doutrina católica, pelo estado de espírito católico: numa palavra, por aquilo que é católico apostólico romano! Esse amor, bem levado, orienta a alma, esclarece tudo, põe em ordem tudo, dá facilidade para tudo, atrai para tudo quanto é bom e afasta de tudo quanto é mau.
Em todas as igrejas que eu freqüentava em menino, agradava-me analisá-las, procurando os traços da catolicidade nos imponderáveis do ambiente interno, numa imagem, em um ou outro elemento. E os encontrava
sempre presentes, como em sua sede própria, na fonte de onde emanam, diante da qual sou uma célula que recebe a vida, um discípulo que recebe o ensinamento, com enlevo, com entusiasmo.
E sempre que nossa mão tocar em algo que saibamos pertencer à Igreja, osculemos esse algo! Amemo-lo do fundo da alma, porque ali está o caminho que leva a Nossa Senhora e ao Céu.
Para não fugir das reminiscências pessoais, lembro-me de que mamãe tinha um livro francês de orações, muito corrente entre as senhoras de meia-idade. O autor, Goffiné, era um compilador de preces bem sério e piedoso. A obra se chamava “Manual do cristão”. Às vezes eu me apoderava dele e o levava à igreja, para recitar uma oração muito bonita ao Sagrado Coração de Jesus, reconhecendo a Nosso Senhor como Rei do Universo: “Sois autor da criação, sobre mim tendes todos os direitos…”, etc., terminando com um ato de fidelidade ao Divino Redentor.
“Eu adaptava a oração ao Sagrado Coração de Jesus para rezá-la ao Sucessor de Pedro”
Mas, eu adaptei as palavras dessa oração para rezá-la ao Pontífice reinante. De maneira que, após tê-la dirigido a Nosso Senhor, eu a dizia para Nossa Senhora e para o Papa. Desde
então continuo a rezá-la diariamente. Porque uma vez que existe o Papa, eu sou dele. Assim se é católico.
E gostaria de terminar exprimindo um entranhado desejo: pratiquemos essa forma
de adesão à Fé. Para isso, amemos do fundo da alma o estado de espírito definido por essas três palavras: católico apostólico romano. Amá-lo é já uma bem-aventurança.
Que Nossa Senhora nos conceda esse amor.