A forma de Dr. Plinio se elevar de píncaro em píncaro, das criaturas até Deus, não o conduzia a raciocinar exageradamente acerca das coisas que observava, nem a fazer uma análise descabida das próprias impressões. Numa conversa informal, explica-nos ele o papel desempenhado pelo senso
comum para alcançar o equilíbrio nesse itinerário.
Nunca será supérfluo ressaltar que a grande felicidade e a principal fonte de equilíbrio interior na vida consiste na apreciação e fruição dos bens espirituais. Como também não é desnecessário fazer notar que um dos maiores enganos da existência moderna é dar a ilusão de que os valores materiais são a nossa finalidade neste mundo, devendo o homem procurar sempre ser dono de algo e se garantir contra as adversidades de qualquer
espécie.
Uma atitude errada, pois na realidade o homem vive para os bens de caráter espiritual. E toda alegria que lhe é proporcionado alcançar nesta Terra, ao mesmo tempo que dispõe sua alma para o Céu, provém do conhecimento e degustação dos ditos bens espirituais.
O primeiro passo: sentir
Como saboreá-los?
Não se trata apenas, ou sempre, de fazer a explicitação das coisas percebidas pelos sentidos. O passo inicial, indispensável, é uma espécie de sentir do qual nascerá mais tarde a explicitação. Esta seria o segundo estágio, menos imprescindível, enquanto o primeiro é o mais precioso, pois dele depende o resto do processo. De fato, o simples olhar e sentir a coisa é o ponto com o qual habitualmente nos contentamos, e só passamos a explicitar em certos casos.
A vivência completa daquilo que os nossos sentidos apreendem nos permite chegar à explicitação
Trata-se, portanto, de perceber o objeto, vivenciá-lo e em seguida — se necessário — entregar-se à explicitação. Porém, não é preciso estar explicitando a todo propósito e a todo momento.
Insisto na importância desse primeiro sentir: sem uma espécie de vivência (palavra perigosa, mas adequada às nossas reflexões) muito rica do objeto ou situação apreendidos pelos sentidos, as etapas posteriores serão nulas. Cumpre termos antes essa vivência completa da coisa percebida, por assim dizer nos “enchermos” com ela, para podermos atingir aquela explicitação que é a mesma vivência considerada numa ordem superior.
Cabe agora, então, sabermos como essa vivência deve ser compreendida.
O senso comum
Em psicologia cuida-se de algo fundamental que se chama “senso comum”, diferente do que na linguagem quotidiana costumamos denominar de “bom senso”.
Para explicá-lo, exemplifico. Digamos que alguém esteja assistindo a uma peça de teatro. Enquanto ele tem notícia da música através dos sons que lhe chegam aos ouvidos, seus olhos discernem o que acontece no palco, a
movimentação dos atores, o desenrolar das cenas, etc. Portanto, audição e visão estão engajadas. Suponhamos, ademais, tratar-se de um teatro freqüentado por pessoas extremamente finas, e que paire na sala o suave aroma dos ótimos perfumes que usam: é a participação do olfato. E suponhamos, ainda, que o nosso expectador se ache muito bem instalado numa confortável poltrona, deliciando-se com um saboroso bombom francês — tato e paladar. Essa pessoa estaria, assim, cercada pela realidade exterior de todas as formas, através dos seus cinco sentidos.
Há, então, um senso — o senso comum — por onde a pessoa estabelece uma correlação de todas essas sensações experimentadas por ela, que lhe dá uma idéia conjunta do ambiente e da cena ali interpretada. Digamos, a representação do banquete oferecido por Luiz XV no Palácio de Versailles, a Maria Antonieta, Arquiduquesa d’Áustria, vinda para se casar com o futuro Luiz XVI.
A impressão que esse banquete nos causaria é uma conjunção de todas essas sensações que nos entraram pelos vários sentidos, as quais, antes mesmo de serem analisadas e explicitadas pela inteligência, encontram uma espécie de harmonia interior, de imbricação que redunda num bem-estar elevado e nobre.
Essa percepção geral favorecida pelo senso comum é sumamente ordenada e, sobretudo, una. Eis o mais precioso alcançado pelo senso comum: essa unidade no entendimento, proveniente das impressões dos cinco sentidos.
Não é difícil provar esse caráter de unicidade. Imagine-se que na cena acima descrita houvesse uma orquestra tocando minueto, música própria daquele ambiente. Acharíamos a melodia muito harmoniosa com o conjunto do quadro. Agora, se interrompessem o minueto e passassem a entoar uma canção assim: “Ai que saudades que eu tenho da minha casinha pequenina, onde meu amor nasceu, tinha um coqueiro ao lado…” — ficaríamos espantados. O que esse canto choroso tem a ver com a alegria leve, de cores claras, saudáveis, graciosa, fina, toda feita de tules e mousselines, daquela sala de Versailles?
Uma pessoa bem constituída sentiria imediatamente estranheza, porque essa dissonância não teria nenhum propósito, contrária que é àquela impressão una, àquela destilação de todas as impressões recebidas pelos seus cinco sentidos.
Do sentir para o compreender
Analisemos, agora, como o indivíduo passa desse sentir aquela cena para a operação intelectiva.
Ele o faz através de um esforço de atenção, ao mesmo tempo fora e dentro de si. Fora, porque capta impressões externas. Dentro, porque começa a observar a atuação do senso comum, e a experimentar no seu íntimo a harmonia resultante da conjugação de todos aqueles dados dos sentidos. Ele aprecia e degusta essa harmonia, quase que contemplativamente, como alguém pode inalar o perfume que se evola de um frasco, para se impregnar dele. Assim também fazemos com o senso comum interior: “sorvemos” a conjugação desses valores harmoniosos, saboreando aquilo que sentimos.
“O mais precioso alcançado pelo senso comum é a unidade no entendimento, proveniente das impressões captadas pelos cinco sentidos”
Em seguida, vem a explicitação. Pois em determinado momento essa degustação é tão clara, tão definida, que a pessoa encontra a palavra, o termo, o vocábulo para explicar o que percebeu. Então, das sensações se passa para algo que, uma vez apreendido, transformou-se em valor de espírito. Caminhou-se do sentir ao compreender. A inteligência e a alma funcionaram: proferiu-se uma análise, fez-se uma crítica intelectiva.
Entretanto, vícios existem pelos quais a pessoa não se consagra a esse trabalho do espírito.
O primeiro deles, muito freqüente em nossos dias, poderia ser chamado de “interiorização”. Diante de algo que conhece, a pessoa sofre uma espécie de trauma, de desequilíbrio interno, e se põe a prestar atenção em si, ao invés de considerar aquilo que lhe foi apresentado. Então surge daí uma interiorização tola, inútil e descabida.
Outro vício é a exteriorização errada.Retornemos à cena no Palácio de Versailles. Digamos que pela sala do banquete passe uma marquesa, revestida de seus mais preciosos adornos. O olhar do nosso expectador recai sobre o penteado dela, no qual se destaca uma flor cor-de-rosa. Ao perceber esse colorido, a pessoa irrompe logo em comentários… Ou imaginemos que ela veja um lacaio superiormente bem vestido, conduzindo um sorvete montado em forma de castelo: sem se conter, aproxima-se e arranca um pedaço da iguaria.
São impressões fragmentárias violentas, desordenadas, excedendo-se tumultuosamente.
Em qualquer dos dois vícios, quer na “interiorização” equivocada, quer na dispersão, está presente a influência pavorosa do egoísmo. E o efeito? Após a introspecção frívola, a “extropecção” bárbara, a mania de aparecer e de se colocar no centro das coisas. E ambas podem
se alternar de modo violento, como um turbilhão. No fim do dia, quando a pessoa retorna ao lar, encontra-se numa desordem
interior extrema, lanhada, excitadíssima, cansadíssima, ao mesmo tempo com prodigiosa vontade de dormir e intenso desejo de não fazê-lo. Resultado, conversas soltas, maçantes, ou brigas fúteis, etc.
“Das impressões percebidas pelo nosso senso comum se depreende a palavra indicadora de um valor que, em Deus, é absoluto”
Surge a verdadeira procura do absoluto
Não. Nada de se entregar a introspecções nem “extropecções” desnecessárias. Não se emocione sem medida. Não há razão para aquele desequilibrado: “Ah! que cor-de-rosa!” ao ver a flor no penteado da marquesa. Sente-se um pouco, observe o quadro à distância. Ponha-se de fora, de longe, para conseguir penetrar naquela realidade.
Procure sentir a harmonia das impressões experimentadas pelos seus sentidos, que é exatamente o rico e esplêndido legado do senso comum. Em seguida, recolha uma compreensão e um ato de amor.
Só então aparecerá uma procura verdadeira do absoluto.
Sim, porque de todos aqueles aspectos percebidos pelo meu senso comum — na cena de Versailles, por exemplo — se desprende uma palavra indicadora de um valor que, em Deus, é absoluto. Assim, os termos “elegância”, “leveza”, “graça”, “charme”, etc., nos fazem conhecer um predicado moral que apreciamos por tê-lo discernido naquelas almas. Ora, essas qualidades são reflexos da infinita perfeição de Deus, que é a Graça, a Leveza, a Elegância. Desse modo, o processo intelectivo que teve início nas operações dos nossos cinco sentidos, termina nos elevando a uma categoria superior de
valores.
Portanto, essa primeira procura do sentir as coisas com distância e ordenação, sem se dissipar, prestando ouvidos ao nosso senso comum, é o que devemos cultivar com especial empenho. Pois as coisas só se vivem ordenadamente, ou, do contrário, é melhor não vivê-las.