Continuamos a publicação de excertos de algumas conferências de Dr. Plino sobre o “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”, de São Luís Maria Grignion de Montfort, obra que conheceu aos 22 anos e conferiu importante característica à sua espiritualidade: a de ter uma devoção a Nosso Senhor Jesus Cristo colocada nas puríssimas mãos de Nossa Senhora, Onipotência Suplicante.
São Luís Maria Grignion de Montfort escreve o Capítulo I do Tratado da Verdadeira Devoção, intitulado “Necessidade da devoção à Santíssima Virgem”, para demonstrar que a devoção a Nossa Senhora é necessária. Em que sentido?
Procuremos explicar a tese do Santo. Deve-se ler o capítulo com muita atenção para se compreender aonde São Luís deseja chegar. Para tratar da necessidade dessa devoção, ele faz um preâmbulo e depois desenvolve a demonstração.
Nesse prólogo, estabelece qual o alcance da palavra “necessidade”. Não se trata de dizer que Deus precise absolutamente de Nossa Senhora para salvar as almas. Sendo onipotente e perfeito, Ele não precisa de modo absoluto de ninguém. Assim, poderia Ele ter criado uma situação em que Nossa Senhora não existisse e as almas se salvassem, pois Deus está acima de tudo.
A necessidade de Maria na vida espiritual é, pois, de outro gênero. Uma vez que Deus A criou, dando-Lhe, por um ato libérrimo de sua vontade, determinadas perfeições e atribuições, entre as quais a mediação universal, a devoção a Ela é necessária. Em outras palavras, a Igreja Católica não sustenta que Deus precise de Nossa Senhora, mas afirma o seguinte: Deus quis que Ela fosse necessária à nossa salvação, e assim o dispôs por uma determinação de seus superiores desígnios.
Importância da Encarnação
A demonstração que São Luís Grignion faz da necessidade da devoção a Nossa Senhora está baseada no papel que Ela teve na Encarnação. Vamos, antes de tudo, impostar bem o assunto.
A primeira tese que devemos recordar é a da suma importância da Encarnação na obra da Criação. Os teólogos discutem entre si um ponto a este respeito. Dizem alguns que, se o homem não tivesse pecado, o Verbo Eterno não teria tomado a nossa carne; outros afirmam que a Encarnação se teria dado mesmo sem a culpa original. Daí concluem os primeiros que, embora tenha sido um mal, o pecado de Adão importou em uma vantagem para o homem; por isso a Liturgia canta no Sábado Santo: O felix culpa… — “Ó culpa feliz que nos mereceu um tal Redentor!”. Quer dizer, sem o pecado de nossos primeiros pais, não teríamos a felicidade de possuir o Salvador.
De um modo ou de outro, quer se admita esta ou aquela tese, devemos reconhecer que a Encarnação do Verbo não é um episódio entre outros da História da humanidade, mas sim, como a Redenção, um fato culminante.
Sendo Deus Aquele que é, exceção feita da geração do Verbo e da processão do Espírito Santo, nunca se passara nada que, de longe, pudesse ser tão importante como a Encarnação da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Trata-se de um fato relacionado com a própria natureza divina, e tudo o que diz respeito a Deus é incomparavelmente mais importante do que tudo que se refere ao homem. A Encarnação de Deus a tudo transcende em importância, e a ela se liga, de modo íntimo, a Redenção.
Papel de Nossa Senhora na Encarnação
Por esse motivo, o papel de Nossa Senhora na Encarnação situa bem o valor d’Ela em todos os planos divinos, e precisamente no que eles têm de mais importante e fundamental.
Achamos admirável, por exemplo, Nosso Senhor ter escolhido Constantino para tirar a Igreja das catacumbas. Mas, que é isto perto de ter eleito, desde toda a eternidade, Nossa Senhora para n’Ela ser gerado o Salvador? Nada, absolutamente. Admiramos muito Anchieta, porque evangelizou o Brasil. Ora, que é evangelizar um país em comparação com o cooperar na Encarnação do Verbo? Nada!
Digamos que se tratasse de salvar o mundo de sua crise atual e de restabelecer o Reino de Cristo; suponhamos que Nosso Senhor escolhesse um só homem para essa tarefa. Acharíamos esta missão algo de formidável, e com razão. Porém, que seria isto diante da missão de Nossa Senhora? Nada! Ela se situa num plano fora de comparação com o papel histórico de qualquer homem, inclusive com o de São Pedro, apesar de ter sido ele o primeiro Papa.
A respeito de Nossa Senhora, é-se sempre obrigado a repetir a expressão: “fora de comparação”, porque Ela faz estalar todo vocabulário humano. Há uma tal desproporção entre Ela e todas as criaturas, que a única coisa segura a se dizer é — “fora de comparação”…
Lembradas essas noções, devemos concluir que estudar a participação de Nossa Senhora na Encarnação é analisar o seu papel no acontecimento mais importante de todos os tempos, juntamente com a Redenção. E qual foi esse papel?
São Luís Grignion responde, considerando a participação das Três Pessoas da Santíssima Trindade na Encarnação, e depois a cooperação de Nossa Senhora com o Pai, com o Filho e com o Espírito Santo.
Cooperação de Nossa Senhora com o Pai Eterno
Conforme a linguagem das Escrituras, Nosso Senhor foi mandado ao mundo pelo Pai Eterno para salvar os homens. O Antigo Testamento, numa das suas profecias, diz de Nosso Senhor: Eis que Eu venho, como está escrito de Mim no rolo do livro, para fazer a vossa vontade (Sl 39, 8-9). Jesus Cristo fala constantemente de seu Pai Celeste, como sendo Aquele que O enviou, se manifestou n’Ele, considerando-O seu Filho bem amado, a quem Ele invocou quando entregou sua alma dizendo: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito (Lc 23,46). Sendo o Pai Eterno Aquele que nos mandou Jesus Cristo, qual foi o papel de Nossa Senhora neste ato?
a) A oração de Nossa Senhora na vinda do Messias
Em primeiro lugar, devemos considerar que o mundo não era mais digno de receber Nosso Senhor Jesus Cristo. Em conseqüência, o Pai Eterno O enviou, não por causa do mundo, mas de Nossa Senhora. Não só porque foi Ela quem o pediu — e se a Santíssima Virgem não tivesse implorado o advento de Nosso Senhor, Ele não teria vindo — mas Deus Pai O mandou a Ela, porque só Maria era digna de recebê-Lo.
Nessa perspectiva se compreende melhor a queixa contida no Evangelho de São João: veio para o que era seu, e os seus não O receberam (Jo 1, 11). Os seus não O receberiam, mas Nossa Senhora O acolheria de modo sublime, e por isso Ele veio: porque encontrou-A no mundo, caso contrário não teria descido do Céu. O aparecimento d’Ele sobre a Terra é o produto da presença e das orações da Virgem Santíssima.
Dessa forma colaborou Ela com o ato do Pai Eterno pelo qual Jesus Cristo foi mandado ao mundo.
b) A participação de Nossa Senhora na fecundidade do Pai Eterno
A fecundidade de Deus Pai é infinita, a tal ponto que a idéia formada por Ele de si mesmo já é uma Pessoa Divina. Pois bem, essa fecundidade foi transmitida a Nossa Senhora, para que Ela gerasse Jesus e todos os membros do Corpo Místico de Cristo. Nossa Senhora é, pois, Mãe dos fiéis, não apenas no sentido alegórico e metafórico (Ela nos quer bem como se fosse nossa mãe), mas o é verdadeiramente na ordem da graça. E essa maternidade divina existe, porque o Pai Eterno comunicou-Lhe sua fecundidade.
Aplicações para nossa vida espiritual
Podemos tirar lições para nossa vida espiritual tanto do fato de a oração de Nossa Senhora ter apressado a vinda do Messias, quanto de ter Ela recebido do Pai Eterno sua fecundidade.
Ao nos prepararmos para a Comunhão, devemos pedir à Santíssima Virgem que infunda em nossa alma algo dos sentimentos com que Ela acolheu o Verbo Divino no momento da Encarnação
Considerando Nossa Senhora capaz de, com sua prece, apressar a vinda do Messias, que ensinamentos podemos tirar? Devemos primeiramente analisar a Santíssima Virgem no seu zelo pela causa de Deus.
Em sua oração, Ela certamente observava a situação de extrema miséria moral em que caíra o povo eleito. Nessa prece Ela desejava ardentemente, pois, que Israel fosse reerguido à sua antiga condição. Considerava ainda a decadência da humanidade, sabendo melhor que ninguém quantas almas estavam se perdendo naquela era pagã, e vendo Satanás imperar sobre o mundo antigo.
Maria Santíssima fez, então, na Terra, o papel de São Miguel Arcanjo no Céu: sua oração, pedindo que Deus viesse ao mundo, equivale ao Quis ut Deus? — Quem como Deus? — do Arcanjo. É Ela que se levanta contra esse estado de coisas; é só Ela que tem a súplica bastante poderosa para desferir um golpe que tudo transforma.
Então, a plenitude dos tempos se encerra: Nosso Senhor Jesus Cristo nasce, e toda a humanidade é reconstruída, regenerada, elevada e santificada. As almas começam a se salvar em profusão, as portas do Céu se abrem, o inferno é esmagado, a morte é destruída, a Igreja Católica floresce sobre toda a face da Terra. E tudo como efeito da oração de Nossa Senhora.
Não é verdade que Nossa Senhora, também sob este aspecto, se apresenta a nós como um verdadeiro modelo? Não devemos querer em nossos dias a vitória de Nosso Senhor, como Maria Santíssima a desejou em sua época? Não há uma analogia absoluta entre o ardor com que Ela quis a instauração do Reino de Cristo na Terra, e o fervor com que o devemos desejar em nossos dias? Não é verdade que, se a oração d’Ela foi necessária para a realização da Encarnação, é indispensável também para que consigamos em nossa época a vitória de Jesus Cristo no mundo? Quando nos esfalfamos na luta pela vitória de Jesus hoje, lembramo-nos de rezar a Nossa Senhora? Quando rezamos a Ela, nos recordamos de pedir essa graça?
Não seria uma boa prece se, por exemplo, ao contemplarmos o Mistério da Anunciação durante a primeira dezena do Rosário, tivéssemos em mente Nossa Senhora que pede a vinda do Salvador? E rogássemos a Ela que Jesus Cristo novamente triunfe no mundo, com uma futura vitória da Igreja Católica? Não temos aí uma boa aplicação desse Mistério para a vida espiritual? Não é assim que esta última deve ser vista, vivida e conduzida? Isto não é muito mais sólido que um arrastado murmúrio piedoso?
Sem dúvida, é com essas verdades de Fé que se alimentam a piedade e toda a vida espiritual.
Contemplemos Nossa Senhora apressando, com sua oração, a vinda do Messias. Ora, se Nosso Senhor vem a nós também no momento da Comunhão, podemos e devemos pedir à Virgem Maria, quando nos preparamos para receber seu Divino Filho, algo dos sentimentos com que Ela O acolheu no momento da Encarnação.
E se desejamos obter para alguém a graça da comunhão diária, não será útil pedir a Nossa Senhora que consiga para aquela alma a recepção quotidiana de Nosso Senhor, lembrando-A da eficácia da prece com que Ela obteve a vinda de Jesus Cristo para o mundo?
Consideremos, por outro lado, a participação de Nossa Senhora na fecundidade do Padre Eterno para gerar membros do Corpo Místico de Cristo. Todo fiel é um membro deste Corpo Místico. Quando passamos perto de algum batistério, devemos nos lembrar de fazer uma oração à Santíssima Virgem, rogando-Lhe que nos conserve, até o momento da morte, na correspondência à graça do Batismo e nela nos confirme a vida inteira. Foi junto a uma pia batismal que entramos para o seio da Igreja Católica, nascemos para a vida sobrenatural e, pela prece de Nossa Senhora e a fecundidade de Deus Nosso Senhor, fomos gerados membros do Corpo Místico de Cristo, do qual Maria é verdadeira Mãe.
E se nos lembrarmos, ainda, de que nascemos para a vida da graça pela mesma onipotente intercessão da Santíssima Virgem, teremos então que tudo nos permite de pedir a Ela nos conserve nas celestiais dádivas do Batismo, e que as cumule com a virtude do senso católico — coroação dessa união extremamente íntima com Cristo.
A piedade deve consistir em formar disposições de espírito que tenham base nesses princípios ensinados pela Igreja e pela Teologia, e não em meros sentimentos. Tais ensinamentos engendram um amor a Nossa Senhora muito sério e muito sólido. Assim é que se constrói a verdadeira devoção a Maria e se alicerça a autêntica vida espiritual.