jueves, noviembre 21, 2024

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Secos e molhados…

Desde os meus tempos de menino, percorrendo algumas regiões da capital paulistana, comprouve-me observar o exercício de uma profissão pouco renomada: a de vendeiro. Hoje quase não existem mais aquelas quitandas — em geral de proprietários lusitanos — como as conheci, substituídas por lojas, bares e outros estabelecimentos adaptados às conveniências da vida moderna.

A expressão “secos e molhados” já nos sorri, gotejando realidade, cheirando a bacalhau defumado e a tragos de vinho para acompanhar os petiscos consumidos em animadas rodas de amigos

Fotos: Olavo Barbosa
Vendas e vendeiros da Rua do Arsenal, Baixa Pombalina, em Lisboa

Fotos: Olavo Barbosa
Fotos: Olavo Barbosa

Porém, aqui e ali, sobretudo em nosso Portugal avoengo, pode-se encontrar algo dos antigos comércios de “secos e molhados”, com vestígios do sabor e do pitoresco que tanto atraíam minha curiosidade infantil.

A própria expressão “secos e molhados” já nos sorri, gotejando realidade, cheirando a bacalhau defumado e a tragos de vinho para acompanhar os aperitivos, consumidos em animadas rodas de amigos. Pois a venda era também um lugar com mesas ao ar livre, na calçada, para os fregueses se sentarem e colocar em dia a conversa. Portanto, uma espécie de clube da rua, na rua, para os homens de rua, de categoria social menos favorecida.

Ela tinha, inclusive, algo de instituição bancária. As pessoas de trato, clientes do armazém, se não podiam ou não queriam se dar o trabalho de ir ao banco retirar dinheiro, chamavam a criada e lhe davam a incumbência: “Diga lá ao seu Manuel da venda que vou descontar este cheque com ele”. O “seu” Manuel, bonachão, solícito e seguro de suas economias, satisfazia o freguês. No dia seguinte ele mesmo ia descontar o cheque, e embolsava a quantia dispensada na véspera. Ele havia feito mais uma gentileza ao fazendeiro afidalgado e indolente que morava perto…

A venda não pode ter luxo, mas uma exuberância de produtos, inclusive pendurados no teto, como garrafas de vinhos, queijos, presuntos, lingüiças, pernis, etc. Mal iluminada, sem ornatos nem decorações de estilo. Seu grande adorno é a figura do vendeiro, presidindo a vida que ali dentro se desenrola, sob seu olhar acolhedor e vigilante.

Fotos: Olavo Barbosa

Fotos: Olavo Barbosa
À esquerda, venda na Rua do Arsenal; no centro, vendeiro na Lisboa antiga; na pág. seguinte, a Rua da Alfama, tradicional centro de vendas na capital portuguesa

A sua família reside nos fundos da loja, numa casa comprida em forma de flauta, um corredor extenso, para o qual se abrem todos os quartos. E ele, embora estando no balcão, tem um sexto sentido voltado para o que se passa no lar. De maneira que, verificando-se ali qualquer coisa de anormal, ele sabe e toma providências. É o rei de dois reinos — um “reino unido”, como eram Brasil e Portugal: a casa do vendeiro e a venda.

A antiga caixa registradora, atrás da qual ele se instala, eleva-se sobre o balcão, e o seu Manuel a opera com visível satisfação, contente de ouvir os sons daqueles mecanismos repercutirem pela venda inteira. A manivela roda, a gaveta se abre com ruídos de campainha, as notas roçam umas nas outras, as moedas tilintam, e a conjugação desses ruídos constituem a harmonia do progresso dele. Uma prosperidade plebéia no que o plebeu tem de maior suco de vida, de realidade. É pão, pão, queijo, queijo, mas fecundo.

Com seus bigodes “a la Rei Dom Carlos”, ele supervisiona tudo, conversa pouco, mas sabe da existência de todos, porque não perde um detalhe das conversas à sua volta. Seus diálogos são com a gaveta da registradora: o que entrou, o que vai depositar, o que vai ou não recolher, os investimentos com a quantia acumulada, a outra venda que ele pretende abrir, e já pensando em encaminhar o filho mais velho para assumir e continuar os negócios.

Sim, pois ele não tem ambições de que o seu primogênito se torne um médico, advogado ou engenheiro, como aqueles que andam sempre devendo à quitanda. Não. Basta-lhe o seu status, eminentemente abdominal e saudável a ponto de as bochechas serem pontudas, a bigodeira abundante, a voz estentórica, mãos nas quais se nota o proletariado, mas em cujo dedo anular refulge um anel de brilhante usado por ele no dia do casamento da filha. É tudo o que deseja para si e seu sucessor.

A um canto da loja se vê a imagem da devoção dele, iluminada constantemente por uma pequena luz dourada. Será do seu Santo padroeiro ou de Nossa Senhora, sob alguma invocação venerada na sua aldeia natal. A imagem está lá, intocável como uma preciosa tradição, recebendo de quando em vez um olhar piedoso da velha freguesa, uma súplica dele próprio, quando as preocupações o atormentam.

Em suma, a figura do vendeiro se torna simpática para quem a sabe compreender e admirar no seu peculiar contexto. Foi, aliás, o meu caso. Comecei a freqüentar a venda do “seu Manuel” com certa reticência. Em determinado momento, percebi o papel que desempenhavam numa sociedade organicamente estabelecida. E pensei: “Não, mas essa gente é interessante, tem vitalidade, disposições, pitorescos, funcionalidades que desempenham sua missão benéfica e enriquecedora no ambiente social onde se insere.”

E aí passei a compreender melhor o “meu” Portugal…

Fotos: Olavo Barbosa

“Essa gente é interessante, tem disposições e funcionalidades que desempenham seu papel benéfico e enriquecedor no ambiente social em que vivem…”

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