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Noções gerais de temperamento – I

Tema de especial interesse para Dr. Plinio era analisar as mais diversas disposições e índoles da alma humana, e como estas a aproximam ou distanciam da excelência moral a que é chamada. Nessas considerações, comprazia-se ele em traçar paralelos pitorescos como o que aqui veremos, entre o beija-flor e o jacaré…

Pediram-me que tratasse sobre temperamento. Matéria árdua, delicada, complexa e extensa.

Não tomarei aqui a palavra em sentido técnico, mas nas suas várias acepções correntes. Aliás, pergunto-me se o termo é de fato comum, pois é bem possível que na linguagem de todos os dias não se fale quase de temperamento, e expressões como “fulano é temperamental” sejam ouvidas apenas em determinados círculos.

No reino animal encontram-se interessantes exemplos que nos fazem entender melhor a noção de temperamento

“Temperamento” e termos correlatos

Entretanto, defendemos os melhores valores da civilização, e um destes é o vocabulário rico e abundante, herança dos tempos em que se empregava grande quantidade de palavras, expressando diferentes matizes e idéias, incentivando o prazer da conversa e o interesse por temas mais elevados.

Assim, falarei de temperamento no sentido corrente da minha época de jovem, semelhante ao significado que possuía há alguns anos.

A palavra bem definida é como um rochedo que ajuda o homem a não cair nas encostas do pensamento

Aproveitarei, então, como que pontos de apoio para erguer uma coluna — a noção de temperamento — para no alto dela colocar o conceito de uma virtude relacionada com este, chamada temperança. Não será difícil perceber que muito me apraz tomar as palavras e manuseá-las como se fossem pedras preciosas de encontro à luz… Cada termo pode ser comparado a uma dessas gemas, ou pelo menos a um bom e sólido pedaço de granito, dignos e próprios de estarem na mão do homem, ou de servir para a construção de sua casa.

Há íntima correlação entre as palavras “temperamento”, “temperamental”, têmpera”, etc. Muitos já ou­viram falar, por exemplo, em têmpera de aço, em clima temperado, na virtude da temperança. Essas várias aplicações têm a mesma raiz, um denominador comum. E este, se examinarmos bem, acha-se presente na linguagem corriqueira, seja a do meu tempo de jovem, seja a dos dias ­atuais. Fixado esse denominador comum, poderemos entender o que é temperamento.

Esse assunto se assemelha a uma montanha em cujas encostas aparecem regatos que se espraiam, árvores floridas que se levantam e penhascos que ajudam a pessoa a não cair. Uma palavra bem definida é como um rochedo que contribui para o homem não rolar nas encostas do pensamento. Quantos se enganam porque, na hora de encontrar uma palavra para exprimir o que pensam, utilizam um termo com dois sentidos! Sem perceberem, logo incorporam um sentido no outro e acabam dizendo algo diverso, e às vezes oposto àquilo que cogitavam. Quiçá esse equívoco não se verificasse nos prólogos do pensamento, mas empregaram um termo ambíguo a fim de explicar sua idéia. E devido a essa ambigüidade, o raciocínio derrapou, caiu no watershoot e se estatelou.

O homem não é um centauro de anjo e bicho, um espírito que penetrou num animal irracional…

L.M.B.Varela
L.M.B.Varela

Vê-se, portanto, como é necessário manusearmos, analisarmos todas as palavras, para que nossas reflexões sejam lógicas.

Passemos então ao temperamento, a respeito do qual darei algumas noções gerais.

Exemplos do reino animal: o colibri e o jacaré

O homem é constituído de dois elementos: a alma e o corpo. Este pertence ao reino animal, enquanto a primeira estaria na ordem angélica. Porém, não somos centauros de anjo e bicho, um espírito angélico que penetrou num animal irracional. Temos uma alma que, por sua natureza, deve estar ligada a um corpo, e vice-versa. Ao corpo do bicho não é próprio estar unido a uma alma, e o anjo, sendo espírito, não lhe é característico estar vinculado à matéria.

Somos, portanto, um composto harmônico de alma e corpo. Mas, a partir do modo de ser de um bicho, podemos fazer reflexões que nos levarão a compreender melhor o papel do temperamento sobre a inteligência, a vontade e a sensibilidade humanas. Assim, do inferior para o superior, nossa análise alcançará o fim almejado.

Consideremos uma lebre e uma tartaruga, ou um elefante e um cervo, ou quaisquer outros animais, posto serem infindos os exemplos. Ocorre-me o paralelo entre o jacaré, acostumado a permanecer à beira de um rio, arfando, espreitando a presa, vivendo, e o colibri, ágil, rápido, que voa de flor em flor, rutilante!

Ambos têm sua índole peculiar, e abordar esse assunto tomando o bicho como exemplo é uma forma preciosa de fazê-lo, pois como o animal possui apenas corpo, podemos entender o que seja temperamento, abstração feita da alma. Veremos em seguida a relação temperamento e espírito. Desta sorte, teremos dado uma certa idéia de conjunto acerca do tema proposto.

Cuidemos, portanto, da comparação entre o jacaré e o beija-flor.

O contraste das duas anatomias não poderia ser mais diferente e chocante. Ao todo de cada um deles — corpo, esqueleto, musculatura, hábitos, tipos de nutrição, regime de repouso e de atividade, de agressão e defesa, etc. — corresponde um princípio vital próprio, pelo qual lhe é deleitável e natural fazer algumas coisas e não outras, executando-as ou omitindo-as de modo igualmente característico.

Tomemos o jacaré. Além do corpo, há nele algo chamado vida, material, não um princípio espiritual, mas uma centelha comunicada por Deus que o torna capaz de agir. Essa comunicação é feita pela sabedoria e onipotência divinas de tal maneira que o princípio vital tende a proceder exatamente de acordo com aquele corpo, o qual, por sua vez, existe para servir àquele princípio. Assim, no momento em que o jacaré — espécie ovípara — é concebido, o princípio vital e os elementos físicos dele se conjugam. Quando gerado, há uma diferenciação entre o corpo materno e o aparecimento de um princípio próprio, distinto do da mãe. O filhote começa a viver. Em determinado instante, quebra-se o ovo e o jacarezinho sai.

E o mesmo pode ser dito do colibri, ele também ovíparo.

O contraste das duas anatomias não pode ser mais diverso, cada qual com um princípio vital peculiar

Reflexos da formosura divina

Vale acrescentar apenas que, se o colibri habitualmente é encantador, em geral o jacaré é hediondo. Contudo, Deus, próvido, não deixou este último sem uma certa beleza. E muito crocodilo que causa nojo ao ser visto na lama, terá seu couro apanhado, lustrado e arranjado para servir de bolsa ou sapato a senhoras, de carteira a homens importantes e a uma série de outras finalidades.

É um pulchrum oculto, distinto da beleza do colibri. Segundo os planos de Deus, cabia ao beija-flor encantar o homem. De maneira que até a pessoa mais mal-humorada e deprimida não consegue se esquivar de considerar com interesse o esvoaçar ligeiro e gracioso do pequeno colibri. Porém, a beleza que o Criador concedeu ao jacaré é oculta, a ser descoberta, lapidada e ressaltada pelo homem. E no couro trabalhado do jacaré há duas belezas: a própria, posta em evidência pelo tratamento a ele dado; e a do engenho e senso artístico do homem o qual, à força de examinar aquele ser naturalmente feio, percebe que deveria ser lindo, e parte à procura dos métodos para fazer com que aquele pulchrum aflorasse.

Uma beleza oculta, a ser descoberta, lapidada e ressaltada pelo engenho humano

Deus se mostra assim o modelo de toda formosura, criando o colibri, o jacaré, mas sobretudo o homem, a cujo serviço estão os animais. Capaz de tecer uma poesia que saliente o pulcro do beija-flor, e também de manusear o couro do jacaré, de modo a tornar evidente sua beleza.

Vê-se, pois, como o plano de Deus se estrutura, semeado de esplendor. E, de passagem, faço notar como é deleitável, atraente e bom considerar esse tipo de assunto.

O jacaré, símbolo da introspecção

Prosseguindo, dir-se-ia que o jacaré possui vários predicados de temperamento. Refiro-me ao bicho na margem de um rio, pois ignoro como será a existência dele dentro da água. Trata-se, portanto, do jacaré do folclore corrente. Aliás, nunca em minha vida pensei tanto nessa espécie da fauna quanto agora, apenas observada por mim, sem simpatias maiores, através de algumas fotografias. Surpreendi-me, em pequeno, quando me dei conta de que carteiras, pastas, bolsas e sapatos bonitos de senhoras eram revestidos com couro de crocodilo, o animal feio com o qual me tinha antipatizado.

L.M.B.Varela

Mas, tomando o jacaré do folclore, como é apresentado para todo o mundo, nas praias fluviais, o que faz ele?

Antes de tudo, é lento. Suas pernas curtas não são para grande curso. Comparem-nas com as de um cervo, e se compreende qual dos dois foi criado para correr ou ficar parado. Porém, está no princípio que o anima e em seu corpo — vemos aí a noção de temperamento se aproximando — a inclinação para andar pouco e habitualmente sem pressa.

Há uma regra que, tanto quanto pude constatar, se verifica amiú­de na natureza, embora possa ser desmentida pelos fatos: todo animal que se move com parcimônia não é feroz para agredir, e sim para se defender. Todas as energias não consumidas andando, emprega-as se protegendo.

A exceção que me ocorre no momento é a tartaruga, porque ela tem uma tal fortaleza natural, que se defende encolhendo: entra no casco e ali se deixa ficar. É símbolo da obstinação, o que também é característico de uma forma de temperamento.

Símbolo da introspecção, o jacaré sente muito mais a si mesmo do que o mundo exterior

Mas, os animais muito estáveis seguem em geral essa regra. É sabido que o jacaré, quando agredido, torna-se feroz, abocanha o inimigo e daí por diante. Porém, em situação normal, obedece às leis comuns da criação, provendo à sua própria sobrevivência. Estável, sem grandes hostilidades, e introspectivo, tanto quanto se possa dizê-lo de um bicho. Permanece quieto, com a bocarra semi- aberta, respirando, sentindo-se a si mesmo e gostando de existir. Daí a sua imutabilidade. Pois o introspectivo não procura no exterior o que possui no seu interior. Ele se encolhe e frui. E compreende-se que sua natureza não lhe peça grandes movimentações, pois não precisa delas: ser-lhe-iam inúteis, um dom desnecessário. Ele tem dentro de si o que os outros buscam fora.

Por que ir como o colibri, de flor em flor? Ele acharia perda de tempo. Fica arfando, ahhh… ahhh… ahhh…, boca aberta, tomando sol, deleitando-se até a hora em que algo lhe indica já ser o bastante, afunda-se nos pântanos, nas águas, e desaparece do olhar humano.

Ponto fundamental de nosso assunto

Percebemos que a noção corrente de temperamento vai assim se enriquecendo de elementos. É um modo de ser presente no princípio vital do bicho, no seu corpo, considerado do ponto de vista da constituição e da inter-relação de seus vários órgãos, das formas e da maneira de funcionar deles, bem como de um certo estilo de sentir a si mesmo e ao mundo exterior.

Eis um ponto fundamental do nosso tema, que devemos frisar: o modo de sentir. O jacaré sente muito mais ele próprio do que o ambiente à sua volta.

Alguém poderia objetar: “Não é assim, pois está provado que o crocodilo tem uma vista fantástica!”

Não me refiro ao grau de visão, mas à importância que ele confere ao que observa. Pouca, pois do contrário se moveria mais freqüentemente. Prefere ficar parado, degustando sua existência pachorrenta. Parece-me o símbolo da hipertrofia da introspecção, verificada em certo tipo de homem. Conheço gente que se compraz em sentar-se, abancar-se, abanar-se e passar o tempo sentindo a si própria. Não precisa de mais nada.

“E se ligarem a televisão?”, perguntará meu objetante.

Prestem atenção na atitude de um desses introspectivos diante do aparelho de TV ligado. Julga que este lhe serve apenas como fundo musical e nem se importa com o que passa na tela. Se a desligarem, ele talvez nem perceba. O que está fazendo? “Jacarezando”…

O que explanei até aqui são elementos, aspectos da índole do jacaré, em que salientei a maneira de sentir-se a si próprio e ao mundo externo. A proporção entre essas duas percepções fornece um fator preciso para se conhecer o temperamento do bicho, bem como o de uma pessoa.

Em próxima oportunidade, consideraremos o exemplo do colibri para, então, desenvolver as noções gerais que propusemos no início dessa exposição.

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