Nada de belo, bom e verdadeiro escapava ao senso de observação de Dª Lucilia, sempre admirativo, fosse um botão de rosa ou uma simples fruta, um lindo bordado, ou o pôr-do-sol. Com retidão de alma e perfeito critério, procurava relacionar todas as coisas com seus modelos ideais ou arquétipos, contemplando-as como sendo reflexos de um universo superior, destinado por Deus para o eterno gáudio dos bem-aventurados.
Contemplando uma rosa
O encanto de Dª Lucilia pelas flores continuou o mesmo até os últimos dias de sua vida. As atraentes cores da natureza vegetal, cuja beleza o engenho humano jamais conseguiu superar, facilmente cativavam seu espírito, sempre pronto a se pôr em harmonia com o menor resquício de maravilhoso.
Um jovem, sabendo que ela apreciava rosas, em especial as de tom coral, passou certo dia por uma floricultura a fim de lhe comprar a mais bela que encontrasse. Ao entregar a Dª Lucilia, manifestou ela o contentamento de quem estivesse recebendo um significativo presente. Tomou-a com delicadeza, afastou-a um tanto e, fitando-a detidamente, teceu alguns comentários enlevados. Entremeava suas palavras com instantes de silêncio, nos quais contemplava um pouco mais aquelas belas pétalas. A profundidade do que dizia não estava tanto no sentido literal das palavras, mas na impostação de seu espírito, na serenidade com que se exprimia, nos matizes de sua voz e em sua reação fisionômica.
Nunca a bondade luciliana vinha desacompanhada das luzes da virtude da gratidão. Desse modo, naquele dia — que se enchera com aquela simples rosa — mencionou várias vezes a singela lembrança, comentando com enlevo as pétalas, a cor, o formato, o cabo…
Tal rosa bem poderia ser tomada como um símbolo ou um reflexo da harmoniosa temperança de suas qualidades, e da generosidade de sua benquerença.
Um comentário perfeito
O senso psicológico de Dª Lucilia crescera com os anos, tornando-se singularmente penetrante ao aproximar-se do limiar da eternidade. Ela aplicava esse admirável senso com a mesma calma com que praticava todas as ações, tão logo se lhe apresentavam pessoas, figuras ou objetos. Olhava-os atentamente, nada indicando em sua fisionomia que estivesse fazendo grande esforço, e depois de uma certa reflexão, emitia seu juízo, invariavelmente sábio, ponderado e justo.
Numa ocasião, ao lhe serem mostradas fotografias de uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, Dr. Plinio aproveitou para perguntar que impressão esta lhe causava. Depois de fitar detidamente os belos traços da Virgem de Fátima, respondeu:
— Muito aflita, muito grave, muito séria… mas muito maternal…
Os que ali estavam ficaram pasmos por notarem o acerto do comentário de Dª Lucilia. O próprio Dr. Plinio não resistiu e afirmou, num volume de voz que ela não pudesse ouvir:
— É o comentário perfeito!
A cena foi muito tocante. Sua análise, sem nada de doutoral ou de científico, parecia descer de muito alto, como ocorre com quem tem o espírito posto continuamente em certa paragem iluminada por Deus. Percebia-se que ela, de algum modo, estava em constante oração.
Contentamento com a “Marcha dos Dragões de Noailles”
A música sempre representou considerável papel nos horizontes de Dª Lucilia. Também nesta matéria, o tempo não fez senão apurar seu gosto, como será fácil perceber pela seguinte narração de alguém que se encantou com ela naquela ocasião:
“Lembro-me como se fosse hoje. Estando por uma razão fortuita no apartamento de Dr. Plinio, vi entrar um jovem com aparelhagem de som e uns discos. Dr. Plinio queria escolher uma melodia adequada para dar realce a um lance de sua obra. Após cumprimentar o recém-chegado, disse-lhe:
“— Você faria a caridade de me aguardar? É que, por recomendação médica, preciso descansar algum tanto. Logo que eu estiver pronto, chamo mamãe para o escritório, e assim, enquanto escolhemos a música, ela se entretém um pouco.
“Terminado seu repouso, Dr. Plinio, recostado no sofá do escritório, pediu que chamassem Dª Lucilia. Serena e muito distinta, ela entrou em sua cadeira de rodas, conduzida pela empregada, sendo colocada bem junto de seu filho. Este a tratava com muita ternura, acariciando-lhe a mão e lhe dirigindo com afeto algum leve gracejo.
“Voltando-se então para quem trouxera os discos, Dr. Plinio lhe disse:
“— Você poderia fazer o favor de começar a apresentação das músicas? Vamos deixar mamãe escolher!
“Foram colocadas marchas militares alemãs, brasileiras, espanholas e francesas. Entre estas, a Marche des Dragons du Duc de Noailles. Tão logo começou a ouvir seus solenes acordes, Dª Lucilia se manifestou comprazida, sorrindo para Dr. Plinio e dizendo:
“— Direita, não é, meu filho?
“Terminada a audição, Dr. Plinio afirmou:
“— Essa música agradou muito a mamãe.
“A Marche de Noailles foi então ouvida novamente. Dr. Plinio perguntou ainda uma vez a Dª Lucilia se ela havia gostado, ao que ela, com um leve e distinto sinal de cabeça, respondeu afirmativamente.
“Dr. Plinio, em seguida, gracejando afetuosamente, disse:
“— Está escolhida a música para o nosso lance…
“Foi para Dª Lucilia uma tarde aprazível. E para os outros, feliz ocasião de presenciar uma cena de temperança, harmonia e paz” — conclui a testemunha daqueles inesquecíveis momentos.
Apesar de indisposta, um trato impregnado de bondade
Até onde lhe chegaram as forças, Dª Lucilia exerceu na perfeição as funções sociais de dona-de-casa. Pudemos observar isso de modo especial quando ela fazia suas orações vespertinas. Aquela sua preocupação, quando notava ter sido o telefone atendido por vozes não familiares, em saber de sua empregada quem estaria esperando seu filho, repetia-se incansavelmente.
— Mirene! Quem está aí? — perguntava, já inteiramente disposta a receber o inesperado visitante.
Um belo fato relacionado com esse seu exímio modo de ser, foi presenciado por certo jovem, que até hoje dá testemunho a esse respeito, e é prova da elevada virtude dessa insigne dama paulista:
“Dona Lucilia me fez entrar na sala de jantar, assim que terminou a piedosa recitação do Rosário, e depois de dar-me as explicações costumeiras do porquê da demora de Dr. Plinio em me atender, fez-me sentar para tomar o chá da tarde em sua companhia.”
Quase três horas de conversa se passaram como se fossem minutos. Vinte e sete anos depois, esse jovem ainda se lembrava com emoção da extrema gentileza e do afeto envolvente de Dª Lucilia para com ele na ocasião: “O tempo inteiro ela procurou me entreter, discorrendo sobre os temas que mais me agradavam, sempre num clima de serenidade e benquerença. Recordo-me ter saído tão alegre e feliz daquela conversa que me parecia ter estado mais com um anjo do que propriamente com uma criatura humana. Recebi uma tal comunicação de bem-estar, que cheguei a pensar ser Dª Lucilia uma senhora que nunca sofrera o menor incômodo na vida, pois em nenhum momento deixou transparecer uma só fímbria de enfado ou de cansaço, disposta a fazer bem à minha alma, até os limites permitidos pelo relógio”.
E continuava sua narração, descrevendo os jogos de fisionomia de Dª Lucilia, os pequenos e elegantes gestos, a voz, o olhar, as mãos.
Naquele mesmo dia, após essa conversa, Dr. Plinio o chamou a seu escritório a fim de providenciar uma ligação telefônica para o médico de Dª Lucilia. Eram 21h 30min de um sábado.
O jovem ficou abismado ao ouvir Dr. Plinio dizer ao médico que Dª Lucilia passara o dia todo muito indisposta, e com tal mal-estar que isto certamente a impediria de conciliar o sono. Após relatar ao clínico todos os sintomas, em pormenor, Dr. Plinio pediu a seu auxiliar que anotasse o nome da injeção receitada. Tendo o referido jovem um certo conhecimento do remédio em questão, deu-se conta de qual deveria ser o real estado físico de Dª Lucilia, que com tanta normalidade o entretivera por tão longo tempo.
“Em Dª Lucilia — recorda ele — a bondade era uma segunda natureza. Tornava-se ainda mais patente para mim, por este fato, que ela passara a vida fazendo bem aos outros.”
Não havendo quem fosse comprar a injeção, o mesmo jovem se ofereceu para fazê-lo. Depois, devido à ausência do enfermeiro de plantão, foi ele próprio convidado por Dr. Plinio a aplicá-la em Dª Lucilia, uma vez que tinha prática nisso. Ocorreu então outro episódio que marcou a história desse feliz jovem. Ao ser introduzido no quarto de Dª Lucilia, tomou-se de encanto e de emoção ao vê-la tão dignamente recostada no leito.
— Dona Lucilia, estou aqui para lhe aplicar uma injeção receitada por seu médico — disse ao cumprimentá-la.
Segundo narra essa testemunha, “era extraordinária a instintiva preocupação de Dª Lucilia com os outros, ainda que estivesse se sentindo indisposta, como naquela circunstância. Além do momentâneo distúrbio pelo qual passava, ela estava a bem poucos meses da morte e, não obstante, sua atenção se voltava para os demais.
“Naquele ambiente de compostura e recato, à luz de um abat-jour, sua primeira atitude foi olhar-me atentamente e dizer:
“— Ora, mas justamente nesta noite de sábado, eu estou dando esta amolação ao senhor! Perdão por estar atrapalhando seu programa.
“Sem demonstrar o menor desagrado ao lhe ser aplicada a injeção, que provocou certa dor, Dª Lucilia disse logo a seguir:
“— Entristeceu-me muito ter causado esse transtorno ao programa do senhor.
“— Em nada, Dª Lucilia. Pelo contrário, eu é que me entristeço por vê-la sofrer com essa injeção.
“— Ora essa. Então eu lhe agradeço muito — concluiu Dª Lucilia, com sua insuperável doçura de trato…”
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)