domingo, noviembre 24, 2024

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Viagens à Capital e ao campo

Embora Pirassununga estivesse experimentado um crescimento realmente digno de nota, e já se pudesse encontrar, nas numerosas casas de comércio, todo o necessário para a vida diária, os Ribeiro dos Santos se habituaram a visitar a Capital, não só para rever os parentes, mas também para comprar objetos finos e importados.

Pescarias e passeios de landau

Era encantador o modo como Dª Lucilia, mesmo na extrema ancianidade, narrava com luminosa memória os múltiplos detalhes das viagens da família a São Paulo: “Mamãe planejava com muito cuidado cada ida à capital da província. Tudo era muito bem feito. Havia umas canastras de vime, fechadas, nas quais eram colocados os alimentos, especialmente preparados para o percurso.”

O caminho para a estação, as despedidas, os vagões, muito bem-arrumados, o pitoresco trajeto e, finalmente, a chegada à Capital, tudo nos lábios de Dª Lucilia se tornava como que feérico e legendário. Tudo narrava de modo tão leve e cativante, que o ouvinte se sentia viajando com ela. Era impossível à imaginação se recusar a compor as cenas tão maravilhosamente descritas.

Em São Paulo, Dª Gabriela nunca deixava de visitar o Convento da Luz, levando a filha pequena. As freiras abriam um pouco a cortina do locutório para ver a menina, conversar com ela e dar-lhe doces e outros presentes. Lucilia ficava muito agradecida e, assim como aconteceu com sua mãe, teceram-se entre ela e o convento liames de afeição que perdurariam por toda a vida.

As viagens de Dona Lucilia, quando menina, à capital paulista ficaram gravadas de modo indelével em sua lembrança. Mesmo aos 92 anos, ainda as descrevia com comprazimento e riqueza de detalhes

Acima, a antiga Várzea do Carmo; à direita, o Dr. Clemente Falcão; na página anterior, o Convento da Luz

Também marcaram suas idas a São Paulo as visitas que fazia à casa de um parente, o Dr. Clemente Falcão, no Vale do Anhangabaú. Para quem conhece esse lugar tal como é hoje — todo de concreto e asfalto, perfurado por túneis, atravessado por viadutos, coalhado de edifícios, imerso em poluição, ruídos, correria, multidões — talvez não seja fácil conceber que, há pouco mais de cem anos, ele guardava ainda ares bucólicos. No meio do vale, por entre a verdejante vegetação, serpeava um piscoso riacho, que acolhia em suas margens grupos de lavadeiras.

Para Lucilia, porém, o entretenimento predileto era o de pescar lambaris no riacho, diversão a que podia se entregar quando das visitas ao mencionado parente, cuja vistosa residência ficava junto a uma das extremidades do viaduto do Chá. Não era esta, entretanto, sua única distração ao ar livre.

Os passeios da família, em elegantes e confortáveis carruagens conversíveis, do tipo landau, com a capota abaixada nos dias de tempo bom, levavam-na também a distantes recantos da “São Paulinho”, freqüentados por pessoas da sociedade, curiosas em verificar o crescimento da Capital. Lucilia nunca se esquecerá, por exemplo, das idas às obras do Museu do Ipiranga, que lhe deram ocasião de brincar, muito mocinha ainda, junto aos alicerces da famosa e monumental construção.

Para se avaliar até que ponto o modo de viver em São Paulo era tranqüilo e pitoresco, houve tempo em que — contava Dª Lucilia — de acordo com os caprichos de exótica moda, as damas da sociedade enviavam as criadas, à noite, à Várzea do Carmo, para apanhar vaga-lumes, que iriam enfeitar seus elaborados penteados…

Dentre os fatos ocorridos nessas viagens a São Paulo, destaca-se, por seu inusitado, o que a seguir se narrará.


Tenra menina temida pelo demônio

A inocência de Lucilia, tão zelosamente conservada, incluía não apenas uma bondade sem par, mas a incompatibilidade com o mal, como nos atesta um episódio dos mais interessantes da sua infância, contado por um familiar.

Em fins do século XIX estavam em voga, em determinados círculos da alta sociedade, certas práticas de espiritismo. As pessoas adictas a tal costume reuniam-se em torno de uma mesa para consultar entes do outro mundo. Um dia em que Lucilia fora levada em visita à casa de uns parentes, na Capital, coincidiu realizar-se ali uma dessas sessões.

No salão escolhido para o encontro, achava-se ela por acaso, brincando despreocupadamente num dos cantos. Os participantes do ato presenciavam em torno da mesa aos inúteis esforços de um famoso “médium”, a implorar ao espírito que baixasse. Depois de muita insistência, o demônio resmungou pela voz do esgotado bruxo:

— Tirem a bobinha da Lucilia daqui…

O fato se repetiu várias vezes, noutras circunstâncias. Por sua índole passou ele para a história da família. Ao longo da vida de Dª Lucilia, diversas outras manifestações de desagrado dos espíritos infernais se farão presentes.

Na página anterior e nesta: Casa Principal e Capelinha da Fazenda Santo Antônio das Palmeiras, outrora e nos dias de hoje

Em Santo Antônio das Palmeiras

Além das viagens a São Paulo, algo mais havia que encantava e distraía a pequena Lucilia: os passeios à fazenda de seu pai.

Em 1877 Dr. Antônio separou a parte que possuía, com Dª Gabriela, na fazenda das Taipas do Morro Grande, dando-lhe o nome de Santo Antônio das Palmeiras. Esta área estende-se do alto da Serra do Atalaia — de cujo cimo, a 1042 metros de altitude, pode-se descortinar vasta e lindíssima paisagem — até um vale no qual corre um cristalino riacho. Próximo a este, surde a única fonte de água mineral da região.

Desde criança, Lucilia gostava de admirar os belos panoramas, apreciando muito a vida do campo. Mas, não faltavam ali, a contrastar, aspectos desoladores, que ela não omitirá nas descrições feitas mais tarde. Por exemplo, o triste desfile dos escravos diante do feitor, no fim do dia, junto à escada de acesso à casa principal. Quando Dr. Antônio estava presente, pediam-lhe a bênção, dizendo no seu dialeto peculiar: Sus Cris, que queria dizer “louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”.

O cair da noite sobre a mata cerrada, ao som daquele melancólico Sus Cris e do canto de alguma cigarra, tinha um ar de desolação que, para Lucilia, se acentuava ainda mais quando ela percebia estar algum escravo sendo castigado. Geralmente, aliás, por ele logo intercedia…

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

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