sábado, noviembre 23, 2024

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Pitorescas aventuras domésticas

Em suas descrições da época em que viveu no interior paulista, Dª Lucilia ressaltava a confiança mútua e a honestidade das pessoas de outrora, e por isso jamais se esquecera dos pormenores do fato narrado a seguir.

Um amigo organiza a fazenda de Dr. Antônio

Certo dia, estando o Barão de Araraquara1 na fazenda de Dr. Antônio — de quem era grande amigo — quase à hora de se despedir, disse com uma confiança oriunda do tempo em que tinham sido colegas na juventude:

— Totó, este seu empreendimento está uma tristeza. Você não entende nada da montagem de uma fazenda. Provavelmente deve ter talento para administrar, mas não para organizar. Por exemplo, a barragem que você construiu deveria ser de outro jeito e aquela plantação, feita noutro tipo de terreno. Creia-me, dá pena ver a sua fazenda.

— Bem, o que você quer? Não sei fazer de outra maneira — respondeu Dr. Antônio.

— Proponho-lhe um negócio. Durante cinco anos você me dá uma boa quantia de dinheiro para eu aplicar em sua fazenda e administrá-la. Nada cobrarei pelo trabalho. Não é preciso passar documentos entre nós. No entanto, exijo como condição que você não ponha os pés aqui enquanto durar o acordo, do contrário você quererá interferir e vai me atrapalhar. Deposite regularmente o dinheiro no banco para que eu o vá utilizando, ao cabo dos cinco anos você encontrará outra fazenda, de maior valor, e nosso negócio estará feito.

O barão nunca prestou contas. Durante os cinco anos combinados, recebia o dinheiro religiosamente em dia e o aplicava sem dar a mínima satisfação. Encontrava-se freqüentemente com Dr. Antônio, conversavam, faziam-se cada vez mais íntimos amigos. Nunca trocavam uma só palavra sobre o assunto. Era como se tal fazenda não existisse.

Um belo dia, passado o prazo estipulado entre ambos, o barão avista-se com Dr. Antônio e lhe diz:

— Totó, você ainda não me disse nada sobre sua fazenda. Quer visitá-la amanhã? De minha parte o negócio está terminado e, de qualquer modo, amanhã lhe entregarei as chaves.

Fazenda Santo Antônio do Amparo, do pai de Dona Lucilia

No dia seguinte ambos viajaram até a fazenda e a encontraram perfeitamente ordenada, deixando Dr. Antônio em extremo contente e agradecido.

Casa de Dona Lucilia, em Pirassununga

A Salve Regina na solidão das matas

Com verdadeiro comprazimento, Dª Lucilia contava que seu pai, ao se deslocar à noite — nas idas e vindas da fazenda, ou em viagens profissionais — pelas adustas e perigosas matas do sertão paulista, sempre acompanhado de dois ou três homens, gostava de cantar a Salve Regina.

Certa feita — dizia ela — o Barão de Araraquara, cavalgando pelas cercanias de Pirassununga, onde ia encontrar-se com Dr. Antônio, distinguiu à distância uma sonora voz a entoar o hino religioso. Virando-se para o capataz que o seguia, comentou:

— Só pode ser o Totó. Não há outro homem nesta região que cante à noite, num lugar desses, a Salve Regina em latim!

A morte do cordeirinho

Seria um erro imaginar que a admiração da jovem Lucilia pelos lados enérgicos do pai, inclusive quando aplicados à sua própria educação, fosse menor do que a tributada por ela às outras qualidades. Assim, narrará, até avançada idade, o que se passou após ganhar do pai o belo presente de um cordeirinho. Lavou-o, secou-o e o adornou com lindos laços de fita. Tratou-o com todo o carinho, até o dia em que um respeitoso escravo lhe confidencia:

— Sinhá pequena, eu queria dizer uma coisa para a Sinhá ficar preparada. Sinhô — o pai dela — vai mandar matar o cordeirinho amanhã. Eu só queria avisar.

Ela então diz:

— Não é possível! Você está mentindo, papai não faria uma barbaridade dessas!

Sorrindo, ele responde:

— Sinhá pequena, é assim que vai ser.

Sem perder um minuto, ela vai correndo ao escritório do pai e lhe diz, banhada em lágrimas:

— Papai!… Então papai vai matar o cordeirinho? O senhor deu mesmo essa ordem? Será possível?

— Minha filha, é verdade.

— Mas, como? Ele é tão bonzinho, tão bonitinho, eu quero tão bem a ele…

— Lucilia, deixe de ser ingênua. É preciso enfrentar as coisas como elas são. Isto será bom para que você perca esse sentimentalismo. Sentimento, sim; sentimentalismo, não.

Foi irredutível. No dia seguinte, lá foi o cordeirinho fazer parte do cardápio.

Dona Lucilia sempre mencionará o fato como prova da bondade do pai, que usou um remédio duro, vencendo o próprio afeto paterno, a fim de curar a tendência para o sentimentalismo de uma menina daqueles tempos românticos.

Após esse passeio à fazenda, retornemos com a pequena Lucilia a Pirassununga.

A capa do cigano-chefe

Como se sabe, outrora era muito difundida uma concepção lendária acerca dos ciganos. Estes percorriam as cidades e o campo, às vezes acompanhando algum espetáculo circense, em geral vistos com certa desconfiança por terem seus costumes e regras peculiares.

Menina ainda, quando os ciganos passavam por Pirassununga, Lucilia observava à distância os movimentos deles, através do buraco de uma fechadura. Aconteceu, porém, que devido à prestação de serviços advocatícios de Dr. Antônio a um chefe de ciganos, este se tornou seu amigo e cabo eleitoral, passando a freqüentar o escritório do pai de Lucilia, contíguo à residência da família.

Num dia de eleições, em que a casa e o escritório de Dr. Antônio formigavam de amigos políticos, Lucilia encontrou sobre o canapé da entrada a capa do referido chefe. Era uma espécie de poncho forrado com tecido vermelho que lhe pareceu muito elegante. Atraída pelo manto, analisou-o, acariciou-o e acabou por vesti-lo, dando uns passeios pelo interior da residência. Qual não foi o espanto de sua mãe, Dª Gabriela, ao vê-la revestida daquele traje: sem demora o retirou dos ombros da filha, aconselhando-lhe nunca mais tocar nos objetos dos visitantes…

Este pequeno mas quão pitoresco episódio é ilustrativo do ambiente de domésticas aventuras que marcaram a vida provinciana e povoavam a infância de Lucilia.

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

1) Estanislau José de Oliveira, influente lavrador de café na região da atual Analândia, interior de São Paulo.

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