As almas que amam fervorosamente a Deus, não raro se veêm opressas pela provação, a ponto de perderem a sensibilidade do amor que, por sua vez, Nosso Senhor tem por elas. Mais: afligem-nas a idéia de haver cometido graves ofensas contra seu Redentor. Tais justos sofrem uma paixão interior, a qual os faz expiar por aqueles que andam fora das vias de Deus.
Como nos mostra Dr. Plinio, é esse o valioso ensinamento que se depreende do Salmo 142, particularmente adequado às reflexões do período quaresmal.
Como os outros Salmos Penitenciais, este se inicia com uma súplica humilde, veemente, dirigida pelo Salmista a Deus. Porém, nota-se uma certa flexão na atitude do pecador: ele não fala apenas como faltoso, dependendo exclusivamente da misericórdia, mas também como homem reto que, segundo a justiça divina, com o auxílio da graça, por sua penitência e virtude, pode esperar o Céu e a visão beatífica. Então diz:
Senhor, ouve a minha oração, presta ouvidos aos meus rogos, segundo a tua verdade; e atende-me na tua justiça.
Lembra, de alguma forma, as palavras de São Paulo, as mais belas — exceção feita do consummatum est de Jesus no alto do Calvário — que uma pessoa tenha pronunciado antes de morrer: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Resta-me agora receber a glória da justiça”, etc. (cf. 2Tm 4, 7-8). Quer dizer, lutou… perseverou…
O refúgio em Deus
E não entres em juízo com o teu servo, porque nenhum vivente será encontrado justo na tua presença.
Ou seja, “pesai, Senhor, minhas faltas para verificar se elas sobrepujam ou não minhas qualidades; porque diante de Vós nenhum vivente será encontrado justo”.
Há uma aparente contradição, pois o Salmista fala da justiça, mas acrescenta: “nenhum vivente será encontrado justo”. Isso, entretanto, é perfeitamente compreensível. Ainda que o homem seja muito bom, se não o secundar o auxílio divino, a assistência da graça, ele sucumbirá às tentações. Tendo devoção, entregando-se a Deus, o Altíssimo penetra nele, tornando-o virtuoso. Então, o Salmista invoca a justiça do Criador, quando Deus está nele. Não estando, temos o que ele diz: “nenhum homem é justo”. A meu ver, um pensamento inteiramente lógico.
Salmo 142
Senhor, ouve a minha oração, presta ouvidos aos meus rogos, segundo a tua verdade; e atende-me na tua justiça.
E não entres em juízo com o teu servo, porque nenhum vivente será encontrado justo na tua presença.
Porque o inimigo perseguiu a minha alma; humilhou a minha vida até o chão.
Colocou-me em lugares obscuros, como a mortos de muito tempo. O meu espírito angustiou-se sobre mim; dentro de mim se turbou o meu coração.
Lembrei-me dos dias antigos, meditei em todas as tuas obras, meditei nas obras das tuas mãos.
Estendi as minhas mãos para Ti; a minha alma diante de Ti é como terra sequiosa.
Atende-me, Senhor, com presteza; o meu espírito desfaleceu.
Não apartes de mim a tua face, para que não seja semelhante aos que descem à cova.
Faz-me sentir desde manhã a tua misericórdia, porque em Ti tenho esperado.
Faz-me conhecer o caminho em que hei de andar, porque a Ti elevei a minha alma.
Livra-me dos meus inimigos, Senhor; junto de Ti me refugio. Ensina-me a fazer a tua vontade, porque Tu és o meu Deus.
O teu bom espírito me conduzirá à Terra da retidão. Por causa do teu nome, Senhor, me darás a vida segundo a tua justiça.
Tirarás a minha alma da tribulação, e pela tua misericórdia dissiparás todos os meus inimigos.
E destruirás todos os que atormentam a minha alma, porque eu sou teu servo.
Porque o inimigo perseguiu a minha alma; humilhou a minha vida até o chão.
Refere-se a um homem provado, que sofre as tentações mais cruéis. Ele é humilhado, pois o demônio quer continuamente o mal para o homem, algo que lhe seja vexatório ao extremo, etc. Donde o Salmista procurar o refúgio em Deus.
A angústia do pecado resseca a alma, como a morte ao cadáver
Colocou-me em lugares obscuros, como a mortos de muito tempo. O meu espírito angustiou-se sobre mim; dentro de mim se turbou o meu coração.
Quanta beleza nessas palavras!
Convém recordarmos como eram as sepulturas daquele tempo, em Israel. Diferentes das de certos cemitérios modernos, nos quais existem apenas cruzes indicando o lugar no solo onde os mortos são enterrados. Na época do Salmista, as famílias de posse tinham propriedade sobre determinada área num rochedo e ali abriam cavidades para nelas depositarem os cadáveres. O corpo do defunto era envolto em faixas de tecido fino, perfumado com fragrâncias especiais, etc. Exceto Nosso Senhor Jesus Cristo — e raríssimas pessoas que ao longo da História tenham ressuscitado — ninguém sai desse rochedo invisível, porém muito mais duro que todas as pedras: a morte. Somente no Juízo Final todos ressuscitarão.
Quer, então, dizer o Salmista: “Devido às tentações, na angústia do pecado, fiquei ressequido, imóvel, inutilizado, como o cadáver de uma pessoa morta há muito tempo.
… dentro de mim se turbou o meu coração.
Ou seja, o seu coração começou a pulsar descompassadamente. É um modo de significar que sua alma, pelo extremo de aflição que se abateu sobre ela, achou-se profundamente perturbada, passando a ter movimentos descontrolados.
Ardente anseio pelo amor divino
Lembrei-me dos dias antigos, meditei em todas as tuas obras, meditei nas obras das tuas mãos.
Provavelmente, ele se recordou dos dias de sua inocência, o que nos faz pensar na Oração da Restauração1…
Estendi as minhas mãos para Ti…
Trata-se, naturalmente, da atitude de quem reza. Não, porém, com as mãos unidas, mas estendidas, como um mendigo que pede auxílio a alguém.
…a minha alma diante de Ti é como terra sequiosa.
Após sofrer terríveis tentações, o Salmista se viu favorecido pela graça, e teve início uma primavera para a alma dele
Crivado de tentações, às vezes horríveis e açuladas pelo demônio, o homem, sob a ação da graça, se defende, resiste e permanece fiel a Deus. Sobressai nele, então, o intenso anseio por se ver atendido e amado por Deus, como a terra seca deseja a água que vai limpá-la, torná-la fecunda, risonha, etc.
Os inocentes sofrem pelos pecadores
Atende-me, Senhor, com presteza; o meu espírito desfaleceu.
Quer dizer, “sofri tanto, meu Deus, que meu espírito perdeu vigor. Tenho medo de, em breve, já não possuir forças para continuar a lutar contra meus defeitos. Vinde logo em meu socorro!”
Às vezes o demônio consegue persuadir uma pessoa de que ela pecou, embora se conserve inocente. Sobrevém-lhe então a tristeza, a sensação de abandono e miséria que assalta o justo quando imagina ter ofendido a Deus. Isso lhe dilacera o coração, aflige-o sobremaneira.
Permitindo essa provação, deseja o Altíssimo que o inocente sofra para fazer bem às almas dos pecadores. Porque christianus alter Christus, o cristão é um outro Cristo.
Em certo sentido, em cada um de nós deve haver “copiosa redenção” (cf. Sl 129, 7), isto é, a exemplo de Jesus precisamos estar dispostos a sofrer abundantemente pelos que não são bons e não amam a Deus, pelos tíbios, por aqueles que são chamados a uma sublime vocação mas não correspondem como deveriam, antes gostariam de obter do Criador um habeas corpus para se afundarem na vida pecaminosa.
Sejam as nossas, as vias de Deus
Não apartes de mim a tua face, para que não seja semelhante aos que descem à cova.
“Cova” aqui significa inferno. Se Deus afastar do homem sua face, este provavelmente cairá na “cova”. Porém, se o Senhor lhe dirigir o olhar, ele floresce, torna-se uma espécie de girassol que sempre procura fitar seu Criador.
Faz-me sentir desde manhã a tua misericórdia, porque em Ti tenho esperado.
O justo, mormente nos períodos de consolação que Nossa Senhora lhe alcança, desperta de manhã e tem impressão de que toda a natureza está glorificando a Deus e para Este o conduz. Sente a presença dos anjos ao seu redor, a alegria do dia que desponta, a feliz disposição para fazer tudo quanto deve a serviço de Deus.
Tal acontece, não porque a pessoa é boa, mas por ter confiado no Senhor. Ela rezou este Salmo, em espírito e em verdade, entendeu e experimentou aquilo que recitava.
O Salmista, sentindo-se como um homem caindo na cova, ou seja, no inferno, estava tão horrorizado com a tentação que, em certas horas, não sabia se era ou não amado por Deus. Num determinado momento pairou sobre ele a graça, e iniciou-se uma primavera para sua alma.
Faz-me conhecer o caminho em que hei de andar, porque a Ti elevei a minha alma.
Então, animado pelo dom celeste, ele no fundo suplica: “Ó, Senhor, quero conhecer as tuas vias, pois estas devem ser as minhas. Desejo apenas saber qual a tua vontade, a fim de que seja o objeto das minhas cogitações!”
(Continua em próximo número.)
1) Oração composta por Dr. Plinio e comentada por ele no número 82 desta revista, em janeiro de 2005.