O rei encontrou na rua um menino que lhe recordou a fisionomia do príncipe herdeiro, há pouco falecido. Adotado pelo monarca, o rapaz abraça a vocação de pertencer à linhagem real, de viver na dedicação àquele que o trouxe para uma existência árdua, porém gloriosa. A história de todo homem que recebe o chamado divino encontra, nas palavras de Dr. Plinio, uma de suas mais atraentes e formativas descrições.
Em nossa anterior exposição1 sobre o tema da vocação havíamos considerado o chamado de Deus dirigido a cada um de nós para enveredarmos pelos caminhos da virtude e da santidade, ouvindo a voz da graça em nosso interior, rejeitando o mal e nos colocando a serviço da Santa Igreja e da Cristandade.
Deus, a rogos de Maria, nos convidou para como que fazermos parte de sua linhagem neste mundo, assim como o rei hipotético daquela metáfora ofereceu ao menino que encontrou na rua a descendência de seu trono.
Lembrança do momento decisivo
Nesse sentido, cada um pode se lembrar do momento de sua vida em que tudo foi disposto pela Providência para que desse uma resposta afirmativa a um determinado chamado de Deus, convidando-o a participar de nosso apostolado. Passo a passo, a graça o ajudou, mesmo quando hesitava ou se achava tentado a lhe voltar as costas apavorado; o amparo do Céu o confortou. Nessas horas sentia-se afagado por uma bondade especial, uma consolação, após o que caminhou para frente. Porém, não sabia para onde progredia, até que em seu horizonte surgiu nosso movimento. O coração lhe pulsou mais forte no peito, e pensou: “Nunca vi algo assim, pessoas constituindo de tal maneira um todo harmônico na defesa do bem. Que maravilha! Farei parte desse movimento e servirei a Nossa Senhora!”
“Cada um pode se lembrar do momento em que respondeu a um determinado chamado de Deus”
Uma trajetória de lutas, cumulada de glória
Começou a freqüentar nossas sedes, a conhecer mais a fundo a doutrina católica, os Mandamentos da Lei de Deus, e, em certo dia, ouviu pronunciarem uma palavra que exprimia essa virtude que procurava, talvez sem o saber: castidade. Mais alva e rutilante do que uma pérola, mais doce que o mel, mais luminosa que a lua do luar do sertão. Castidade!
Indagou do seu significado e lhe falaram de pureza. O novato logo se encantou: “Oh! A pureza! Desejo-a para a vida inteira!”
Pouco tempo depois, explicaram-lhe o processo revolucionário, a Contra-Revolução, e entendeu a trajetória que se abria para ele, semeada de pugnas e trabalhos pelos interesses da Igreja, mas também semeada de glórias. A beleza da luta nasceu para cada um como um sol. Tudo acompanhado de entusiasmo, alegria, embevecimento, tendo a impressão de que vivia num paraíso.
Segundo a Escritura, ao entardecer no Éden terrestre, quando soprava a brisa, Deus descia para conversar com Adão (cf. Gn 3, 8). Dir-se-ia que, nessa época de consolações, vez por outra Nossa Senhora vinha do Céu e falava a cada um…
A prova que confirma a vocação
Contudo, assim como o rei submeteu o futuro príncipe herdeiro a algumas provas a fim de que este confirmasse o acerto de sua escolha, também Nossa Senhora, que tanto nos prometeu e concedeu, tem o direito de expor nossa alma à provação. Cumpre que esta sobrevenha, e devemos desejá-la. É árdua, dura, mas queremos mostrar nossa gratidão. E não só mostrá-la, mas exercitá-la. Almejamos ser como o filho adotivo do rei.
Donde, às vezes, apagar-se para nós o esplendor da vocação. Não degustamos mais o sabor da fidelidade; as delícias de praticar o bem desaparecem. Entretanto, por detrás das nuvens Nossa Senhora acompanha nossa alma. Mais. Ela se acha dentro de nós, obtendo-nos graças especiais de perseverança, e nos auxilia com sua maternal solicitude. Não o percebemos. Pensamos que andamos sozinhos, e nos perguntamos: “Nesse desamparo em que já não sinto o paraíso de outrora, haverá alguma culpa de minha parte? Ó meu Deus! Fostes tão bom para comigo que sempre confiarei em Vós! Confiança, pois!”
A esse propósito recordo uma frase dos Salmos que muito me agrada: Nam et si ambulavero in valle umbrae mortis, non timebo mala (Sl 23, 4). “Ainda que eu caminhe nas vias sombrias da morte, não temerei os males”, porque Deus é meu Pai e me perdoará, Nossa Senhora é minha Mãe e rezará por mim. Confiança! Confiança! Confiança!
Horas em que o mal empalidece a nossos olhos
Passamos, então, por rudes provações na vida espiritual, progredimos e, de súbito, o demônio começa a nos tentar de forma mais insistente, eclipsa-se o horizonte de consolações na trilha que palmilhávamos, anoitece no paraíso de nossa vocação. O maligno procura fazer apagar em nosso espírito a recordação dos aspectos censuráveis do mundo que deixamos quando aceitamos o chamado de Deus. Perdemos a idéia da iniqüidade da Revolução anticristã e somos levados a achar que os adversários da Igreja não são tão ruins conforme nos dizem.
Aquele que se deixa iludir por esse estado e não quer se levantar, procura abafar a consciência, a qual lhe faz perguntas tais como: “Considere, por exemplo, as leis contrárias aos mandamentos divinos que são aprovadas em tantos países. Não acha que isto seja uma coisa má?”
E o indeciso responde a si mesmo: “É… Mas eu conheço tais e tais pessoas que, embora seguidoras de leis desse gênero, vivem de modo mais caritativo que outros, ditos fiéis aos ensinamentos da Igreja. Dão esmolas, auxiliam instituições filantrópicas, e uma obteve para mim aquele emprego de que tanto necessitava. Se foi boa para mim, não vou dizer que é má…”
Por detrás das nuvens carregadas da provação, Maria Santíssima acompanha nossa alma e nos ampara com sua maternal solicitude
Dessa forma Deus vai sendo posto de lado. Não é mais o ponto de referência de tudo: pois se alguém ofende o Altíssimo, ainda que seja bom para comigo, é uma pessoa ruim, pois foi má para com Deus.
Neste processo de relaxamento em olhar de maneira complacente as coisas ruins do mundo, começa-se a ter saudades delas, das más companhias que nos levavam a pecar: “Eram engraçadas, e até bem-intencionadas…”
Gratidão para com o Rei que um dia nos acolherá no Céu
Algo semelhante pode acontecer a qualquer membro de nosso movimento. É o Pai-Rei que adotou o filho plebeu, cumulou-o de bens, mas, agora, deseja uma prova de gratidão. E no caso concreto de nossa vocação, Deus espera que cada um diga: “A verdade não é o que aparece aos meus olhos turbados por uma prova interior muito grande, e sim o que ensina a Santa Igreja Católica Apostólica Romana à qual quero ser fiel nas mais terríveis aridezes e provações.
“Dela recebi o Batismo, inúmeras vezes o Corpo e o Sangue de Cristo presentes na Sagrada Eucaristia, pelo Sacramento da Penitência recuperei o estado de graça perdido por culpa de minha miséria. Ela me proporcionou a vocação que jamais largarei. Mesmo caminhando nas trevas, sentindo-me abandonado por todos e até por Deus, não morrerá em minha alma a convicção de que o Redentor nunca se esquecerá deste filho. A Mãe d’Ele reza por mim no Céu, e suas preces tudo alcançam a nosso favor, inclusive todos os perdões. Vou para frente!”
Dessa forma o filho cumulado de graças e dons restitui o que recebeu. E torna-se pronto para que Deus lhe envie outras provações nas quais dará novas manifestações de heroísmo. E após a sua morte, pelos rogos misericordiosos de Maria Santíssima, Nosso Senhor o introduzirá no Paraíso, dizendo: “Eis um combatente a mais neste universo de heróis que é o Reino dos Céus!”
1) Cf. “Dr. Plinio” número 96.