Nos primórdios do século XX faziam ainda seu curso as miragens levantadas pelos romances e poesias de José de Alencar e Casimiro de Abreu. Os perfumes, as sombras de um Lamartine ainda vincavam o ambiente familiar. Nessa atmosfera é que um certo rapaz e uma certa moça chamada Georgina, não só primos entre si, mas também de Lucilia, encantaram-se um pelo outro, resultando daí um compromisso rumo ao casamento. Entretanto… inopinadamente, o jovem resolve sacrificar seus sentimentos em favor do vantajoso noivado com a herdeira de uma grande fazenda.
A jovem defunta vestida de noiva…
A amargura que o rompimento causou à moça preterida provocou uma cena digna de figurar no mais genuíno melodrama. Lucilia, que em relação ao romantismo1 mantivera sua alma incontaminada, acabou participando tangencialmente de um capítulo da “peça”, ocasião em que não poupou demonstrações de afeto à sua desolada parente.
O fato decisivo se deu quando, numa festa de aniversário em casa dos Ribeiro dos Santos, os ex-noivos se encontravam presentes. Eis que a infeliz, possuindo bela voz, foi convidada por Lucilia a cantar, acompanhada por esta ao piano. Georgina escolheu uma melodia, comum naquela época, que delineava com reprovação a maldade de uma pessoa ingrata. Em meio aos acordes que o visavam, o pobre personagem, desconcertado, não encontrou outra saída senão esconder-se atrás de uma cortina… enquanto fumava para abafar a consciência.
Terminada a música, que poderia ele fazer? Descerrar a cortina e reaparecer no “palco”? Não tinha coragem para isso. Opta pela vergonhosa fuga: pula a janela e se esgueira entre ramos e folhagens do jardim em busca da rua!
Passa-se o tempo. Uma bela noite, Lucilia — de férias na fazenda Jaguary — sonha que a desditosa prima, diabética e gravemente enferma, acabara de morrer. Logo de manhã, apressa-se a relatar o sonho a Dr. Antônio, mas este lhe recomenda que não se deixe impressionar pelo fato, no que é prontamente obedecido. Decorridas poucas horas, chega um estafeta trazendo um telegrama que comunica a morte da jovem.
Nunca mais se apagou da memória de Dª Lucilia o cenário “Romeu e Julieta” do velório: a jovem defunta vestida de noiva (como se costumava fazer quando do enterro de moça solteira) e, numa cadeira junto ao caixão, o primo “ingrato”, profundamente abalado.
Mas a virtude de Lucilia tinha amplo campo de aplicação, bem além das fronteiras da própria família. É o que se notará no fato a seguir.
O pensamento voltado para considerações elevadas, a fisionomia ao mesmo tempo doce e séria, de quem compreendeu a fundo a transitoriedade deste “vale de lágrimas”
Respeito pela infelicidade alheia
Um hábito, universalmente aceito no passado, consistia em celebrar com discursos laudatórios todo e qualquer evento. Mas, após um período áureo, a verve autêntica foi dando lugar à insipidez, pois homens tediosos passaram cada vez mais a fazer uso da palavra. Estes corriam à primeira oportunidade que aparecesse, ansiosos por presentear os convivas com a leitura de algum texto, preparado com muita antecedência, e que ficara meses a fio trancado numa gaveta.
Entre os acontecimentos mais bem-vindos a tais oradores figuravam as festas de formatura. Certa ocasião, Lucilia e alguns parentes seu participavam de uma dessas comemorações quando, pelo meio da ceia, um senhor se levantou e disse:
— Fulano de Tal! Quero saudar esta grande data, tão significativa para você, por meio de um discurso!
Bastaram essas palavras para fazer cessar a prosa, estampando-se o desapontamento nas fisionomias. Alheio a tal reação, o homem “deitou o verbo”, a ponto de a refeição terminar e ele ainda prosseguir!…
Um a um, todos os que podiam, escapavam. Quando Dr. Antônio notou o que ocorria, lançou discreto olhar sobre dois filhos. Foi o suficiente para compreenderem a obrigação de não se levantar. Seria uma falta de caridade não tolerada pelos pais. Ao final de tamanha penitência, só restavam a ouvir a arenga os Ribeiro dos Santos e mais três pessoas…
Encerrando a narrativa desse fato, Dª Lucilia comentava:
“Papai era encantador. Sua preocupação não estava voltada só para nós. Ele se aplicava muito a entrar na infelicidade dos outros. Vendo numa situação tão difícil um homem que não se dava conta do que podiam estar pensando dele, ia em seu socorro. E para não ferir ninguém, impunha sobre nós a sua autoridade. Com um olhar penetrante, mantinha-nos fixos em nossos lugares, e nada mais era necessário desde que tivéssemos os olhos postos nos dele.”
Mesmo naqueles tempos era raro encontrar uma pessoa que estivesse na atitude de espírito da jovem Lucilia, de constantemente praticar e admirar a bondade. Era resoluta. Nenhum passo atrás dava nessa matéria. Como se pode confirmar pelas fotografias daquela época, ela estava decidida a caminhar pelas sendas da virtude.
Jovem e já muito sofrida
Uma dessas imagens (ver p. 7) a apresenta no viço da mocidade, em seus últimos anos de solteira, entre sua irmã Yayá e sua prima Anita. Estão num terraço, provavelmente da casa da fazenda Jaguary, em São João da Boa Vista.
O pensamento, voltado para considerações elevadas, é notável no olhar de Lucilia. A fisionomia denota a precoce seriedade de quem, no verdor da existência, já compreendeu até o fundo a vida, que a Salve Rainha qualifica, com bela força de expressão, de “vale de lágrimas”. Apesar disso, não há nela o menor sinal de desânimo, acidez ou amargura. Pelo contrário, acima de tudo, transparecem a doçura, a suavidade e a bondade. Ela demonstra possuir o bem-estar da virtude, da aceitação de um sofrimento vivido em paz. Paz que, sem o perceber, ela irradia de modo discreto em torno de si.
Uma bem-aventurança entre outras, vem à mente de quem analisa Lucilia nesta circunstância: “Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a Terra” (Mt 5, 4).
A ninguém é dado manter-se duravelmente numa vida virtuosa, sem o auxílio da graça divina. Vê-se por esta fotografia, na seqüência das que a antecedem, o quanto vai sendo bem conduzida a vida interior de Lucilia, cada vez mais penetrada por uma terna devoção ao Sagrado Coração de Jesus e à sua Mãe Santíssima.
Desde os verdes anos de sua infância, Dona Lucilia fez do Convento da Luz um dos locais preferidos para exercitar sua piedade
Oásis de paz e de oração
Um dos locais prediletos de Lucilia para os exercícios de piedade, voltados à Santa Mãe de Deus, era o Convento da Luz. Redoma de bênçãos e de graças, nunca cessara de receber suas visitas, desde quando ela, na mais tenra infância, vinha de Pirassununga para a capital paulista. Era naquele lugar que o sobrenatural mais lhe tocava a alma.
Quem, dos Campos Elíseos, se dirigisse de carruagem ao convento, como era então o caso de Lucilia — sempre em companhia de Dª Gabriela — em menos de dez minutos veria erguer-se, pouco além do Jardim da Luz, o edifício branco das freiras concepcionistas.
O fundador do convento, Frei Galvão, fora homem de virtude eminente. Contam as crônicas terem vindo um dia pedir ao servo de Deus orações por um jovem que sofria dores terríveis, provocadas por cálculos na vesícula. Iluminado por súbita inspiração, tomou o frade uma pena e escreveu três vezes, numa tira de papel, este verso do Ofício da Santíssima Virgem: Post partum Virgo inviolata permansisti, Dei Genitrix intercede pro nobis (Depois do parto permanecestes virgem; Mãe de Deus, intercedei por nós). Fez com ele uma bolinha minúscula e ordenou que a dessem ao doente para ingerir. Tendo-a tomado, o rapaz se sentiu curado quase instantaneamente, e desde então tornaram-se célebres as “pílulas” ou “papelinhos” de Frei Galvão, que continuaram a ser distribuídos pelas freiras após a morte do taumaturgo, operando curas e obtendo conversões, até em nossos dias.
Confiante na poderosa intercessão de Frei Galvão para curar os males do fígado e da vesícula, que cada vez mais incomodavam sua filha, Dª Gabriela, de volta a casa, nunca deixava de levar um estoque dos tais “papelinhos”. A jovem Lucilia os tomava todos os dias, depois de rezar a novena a Frei Galvão, pedindo que a sarasse ou pelo menos atenuasse a doença. Por toda a vida continuou a recorrer ao servo de Deus, rogando-lhe diversas graças.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)
1) Movimento artístico e literário que dominou o século XIX, o romantismo, ao lado de péssimos veios filosóficos, apresentava interessantes traços culturais e psicológicos. Razão disso foi o fato de a intelligentsia do movimento ter sido obrigada a contentar uma sociedade a qual, após passar pelas desventuras da Revolução Francesa, tendia a abraçar uma posição melancólica em relação aos infortúnios de que tinha sido vítima, bem como a reagir contra o racionalismo e a frivolidade do classicismo. Se de um lado glorificou-se a tristeza em dramas e óperas trágicas, de outro propiciou-se o aparecimento de estudos históricos que reabilitaram a Idade Média, favorecendo a tendência ao sério e ao maravilhoso.