jueves, noviembre 21, 2024

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Amor à perfeição

Para Dr. Plinio, uma feliz harmonia entre o amor ao elevado e o apreço pelo comum revelava a bela variedade da alma de sua querida mãe, Dona Lucilia, bem como a capacidade de ela se adaptar a todas as circunstâncias, procurando sempre considerar os aspectos simbólicos e morais das coisas que a cercavam.

Ao se analisar o modo pelo qual as certezas se apresentavam ao espírito de mamãe, percebe-se que constituía traço dominante da alma dela uma seriedade ao mesmo tempo profunda e muito suave. Dona Lucilia era uma pessoa, como se diz, “pão-pão, queijo-queijo”, isto é, bastante segura quanto ao que via e julgava, sobretudo no tocante às matérias mais elevadas.

Nas grandes, assim como nas pequenas coisas da vida diária — um “menu” para o jantar do filho, por exemplo — Dona Lucilia se esmerava, a fim de tudo fazer do modo mais perfeito

Fotos: Arquivo revista
Fotos: Arquivo revista

Fazer o melhor, até nas menores coisas

Já a respeito das matérias pequenas, vez ou outra ela se mostrava um pouco hesitante. Por exemplo, como ornar um bolo, como fazer um bordado ou como resolver o problema de um empregado, a decisão não lhe vinha prontamente. Dava-se isso pelo fato de mamãe procurar fazer tudo do modo mais perfeito e, portanto, operativamente, não encontrava de imediato o procedimento correspondente ao que ela julgava ser a perfeição naquele ponto. Então, pedia a opinião de terceiros, considerava outras alternativas, etc., até tomar sua resolução.

Fotos: Arquivo revista

Fotos: Arquivo revista
Na página 8, Dona Lucilia ao completar 80 anos

Um cardápio para o jantar…

Nesse sentido, recordo-me de ter presenciado, certo dia, a seguinte cena. Eu trabalhava fora e, antes de sair, passei pelo corredor de nosso apartamento e percebi que mamãe e papai conversavam numa espécie de living, mais especialmente usado por eles. A porta estava entreaberta, razão pela qual me era possível escutar o que os dois diziam. Detive-me um pouco, sabendo que os dois não haviam notado minha presença, e me deliciei com o diálogo deles.

Dona Lucilia, em pé diante de Dr. João Paulo sentado muito à vontade numa poltrona, perguntava-lhe:

— João Paulo, você acha que tal menu estaria bem para o jantar? O Plinio gostaria de comer tal prato?

Ela o inquiria quase com uma sorte de minúscula aflição para determinar o cardápio de minha preferência. Ou seja, tratava-se de acertar naquilo que eu poderia querer.

Meu pai, sempre amável e de bom gênio, ouviu a pergunta e respondeu, sem maior reflexão:

— Acho que está bom, sim.

Mamãe, ainda não convencida, insistiu:

— Mas, e tal coisa, ou tal outra? Qual delas agradaria mais ao Plinio?

A resposta dele:

— Olha: é preciso não complicar as coisas. Esse negócio de menu… Se fosse comigo eu diria a ele: “Rapaz (um modo aliás muito pernambucano de se dirigir ao filho), o que tem aqui para comer é isto e isto. Se você quiser, está à sua disposição; se não, vá comer num restaurante.”

Ora, dar ensejo a que eu comesse fora de casa era exatamente o que mamãe não queria! Ela desejava ter-me ao lado dela, à mesa. Então acabou optando por um prato qualquer, típico de nossa culinária brasileira. Logo depois eu saía para trabalhar, levando comigo este pensamento: “Bem se vê que pai é pai, mas mãe é mãe!”.

Para mim importava pouco o conteúdo do cardápio, pois eu me regalaria com qualquer coisa que mamãe me fizesse. Porém, aquele fato me fez compreender como, nela, cada ponto era pensado e refletido até os últimos pormenores. E era a propósito destes que Dona Lucilia às vezes se mostrava hesitante.

Certezas calmas, inflexibilidade suave

Mas, nas grandes linhas gerais da vida, nas convicções, nos princípios, ela não tinha um pingo de dúvida. Era feita de certezas: certezas calmas, lúcidas, de quem via logo à primeira vista e com muita nitidez o que era verdade e o que era o erro; o que era o bem e o que era mal; o que era o feio e o que era bonito. E aderia inteiramente, do fundo de sua alma, ao verum, bonum, pulchrum, com honestidade, limpidez e sinceridade tais que ela se fazia uma só com a verdade, com o bem e a beleza, não querendo senão a eles. Com o mesmo espírito do pão-pão, queijo-queijo: a aceitação era aceitação, a rejeição era rejeição; a convicção era convicção, a negação era negação. Sem tergiversações.

Com honestidade e limpidez de alma, Dona Lucilia se fazia uma só com a verdade, com o bem e a beleza, desejando considerar as coisas pelo seu mais elevado aspecto

Fotos: Arquivo revista
Na página 6, Dona Lucilia em 1959; à esquerda, algumas de suas deliciosas receitas, cuidadosamente reunidas por ela num caderno

Não se pense, porém, que essa atitude resoluta era tomada por ela com dureza. Dava-se, antes, numa espécie de inflexibilidade inabalável, mas suave. De maneira que, ao externar uma afirmação, fazia-o com muita gentileza. Se a apertassem, ela reafirmava demonstradamente e, se fosse preciso, terminava afirmando quase proclamadamente. Eram intensidades sucessivas de reação, nas quais a última podia chegar a ser bem categórica. A tal ponto que meu pai, algumas vezes surpreso com a postura categórica de mamãe, cochichava-me (aludindo à remota ascendência dela): “Ih! Essa senhora espanhola…”

Tendência a ver o mais alto aspecto das coisas

Agora, deve-se acrescentar a essas disposições de alma uma tendência de espírito a sempre ver as coisas pelo seu mais alto aspecto e através do prisma do maravilhoso. Nesse sentido, especialmente, Dona Lucilia tinha o espírito muito elevado. Quando se conversava com ela sobre determinado tema, mamãe tendia logo a situar suas reflexões no mais alto que o feitio intelectual dela, de senhora não universitária, compreendia.

Eu achava, aliás, um encanto especial no fato de ela não ser universitária. Sentir-me-ia mal à vontade tendo uma mãe carregando uma série de diplomas debaixo do braço e que me respondesse com uma citação de determinado autor que ela leu. Dona Lucilia não citava. Ela dizia o que tinha na sua alma, o que ela havia visto. Era uma senhora e mãe de família, e lhe bastava inteiramente ser isso e mais nada. Embora houvesse lido, sobretudo em moça, o seu tanto em inglês, um pouco mais em francês, ela jamais começaria um pensamento ou uma resposta assim: “Como disse Shakespeare”… Não. Como disse a alma, o coração dela, o seu modo de ser e de comunicar suas idéias, posta na suavidade da vida de família da São Paulinho de então.

Cumpre salientar que tal disposição não era calculada, mas normal, instintiva; era o impulso — eu diria, um pouco sentimentalmente — do coração que a conduzia a isso. E note-se: ao lado de um espírito tão elevado, um espírito capaz de descer aos últimos pormenores e se entreter com a forma da pétala de uma flor, com o ruído de um homem que está vendendo tecidos na rua, com uma doméstica que teve um dito jocoso, assim como em contar recordações dela em Paris, na Alemanha, no Rio de Janeiro, lembrando episódios da sociedade no seu tempo de solteira.

Essa feliz harmonia entre o amor ao elevado e o apreço pelo comum revelava a bela variedade da alma de Dona Lucilia, a sua adaptabilidade a todas as circunstâncias, e como procurava ela considerar o aspecto simbólico, o aspecto moral e um certo fundo religioso presentes nas coisas que a cercavam.

(Extraído de conferência em 12/8/1988)

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