Assim como as pessoas manifestam diferentes graus de facilidade para praticar determinada virtude, assim certas almas demonstram particular desembaraço para se abstraírem da consideração do meramente visível e se elevarem na contemplação das belezas espirituais.
Agora, penso haver outro gênero de indivíduos que possuem certa facilidade, não tanto para a pura abstração, mas para uma percepção, a partir de um fato concreto, de algo que este fato envolve e que sugere a idéia de uma outra vida, de outra ordem de coisas onde tudo se passa de maneira diversa e satisfaz as mais altas aspirações da alma humana.
Nesse sentido, sempre me chamaram a atenção as telas de um pintor francês que, após percorrer alguns ateliers de mestres europeus, mudou-se para Roma e ali permaneceu até o fim dos seus dias. Como nascera na Lorena, chamavam-no de Cláudio, o Loreno. Claude Lorrain1, em francês. Alguns críticos o têm pelo primeiro artista a se especializar em retratar a luz nas suas obras. De maneira tal que, a fim de realçar o elemento luminoso, ele também se aprimorou em pintar paisagens marítimas, nas quais as águas do oceano desempenham seu papel ímpar como espelho para o sol. Este, de acordo com o desejo do pintor, nasce ou se põe muito distante no horizonte, deitando fulgores sobre uma série de aspectos panorâmicos. Por exemplo, um litoral com fortalezas, com árvores, com palácios, ou um porto com navios em posições diversas, além de personagens que se movimentam nas praias.
E Claude Lorrain soube pintar a luz do sol banhando todos esses componentes da paisagem imaginada por ele, sobretudo fazendo essa luz se difundir através de uma certa névoa que às vezes cobre a atmosfera à beira-mar. Tão tênue que parece uma poeirazinha vagando por toda parte e em parte alguma, retendo a luz; um pó dourado, com graus diferentes de intensidade, que paira sobre a água e todo o panorama.
Entretanto, o melhor de Lorrain está no fato de ele pintar tudo de uma terra concebida como se fosse um paraíso terrestre. Quer dizer, a luz saída de sua palheta confere um aspecto paradisíaco ao mundo, à vida terrena e, nessa perspectiva, desperta no homem um certo desejo de uma ordem de coisas que esteja acima desta palpável e temporal que encontramos todos os dias.
Na verdade, assim como Fra Angélico soube dar uma impressão de sobrenatural nas faces de suas personagens, assim Claude Lorrain transmitiu algo de celestial nas suas obras. Compreendia ele o aspecto paradisíaco que uma coisa pode ter, e possuía essa forma de percepção do sobrenatural, do extra-terreno, por onde seus quadros acabam remetendo nosso espírito para o Céu.
Claude Lorrain soube transmitir algo de celestial em suas obras, assim como Fra Angélico logrou conferir uma impressão de sobrenatural nas faces de suas personagens
Há nas pinturas de Lorrain um imponderável que leva o homem a dizer: “Sim, existe em algum lugar uma realidade que transcende a essa vida terrena, que não se confunde com ela e sem a qual nada deste mundo se explica. Não se trata de algo que meu tato possa pegar, mas de que minha alma é sedenta. Sem essa ordem superior — insinuada de modo tão atraente nas pinturas de um gênio que soube percebê-la — o universo seria uma coisa truncada, errada, e eu seria um louco.
“Ora, não sou louco. Logo, essa ordem superior existe.”
(Extraído de conferência em 10/2/1970)
1) De seu verdadeiro nome Claude Gellée, nasceu na cidade de Chamagne, na Lorena, França. Ficou órfão aos 12 anos e, devido a esse fato, mudou-se para Friburgo, onde imediatamente entrou em contato com grandes artistas. Durante sua formação, viajou para a Itália, fixando-se em Roma, onde trabalhou com consagrados mestres. No seu regresso à França, consolidou-se como o grande paisagista do barroco francês. Faleceu em Roma, no dia 23 de novembro de 1682.