Desde um grão de poeira até o mais elevado dos anjos, toda a criação saiu das mãos do Onipotente numa esplêndida harmonia que rege o relacionamento entre as criaturas. Separado desse conjunto hierárquico, nada é perfeito no universo. Dr. Plinio nos comenta um belo texto de São Tomás de Aquino, o Doutor Angélico.
Em anterior exposição tratamos da errônea concepção de um universo como algo fechado, do qual estariam ausentes a intervenção divina e a assistência dos anjos.
Ora, São Tomás condena essa visão, que muitos têm de modo subconsciente, ao discorrer sobre o papel dos espíritos angélicos nos planos de Deus. Pergunta ele se os anjos foram criados antes do mundo corpóreo, e responde com argumentos tais que deles se espargem centelhas de luz.
Todos os seres existem em cadeia, numa inter-relação constante, constituindo uma única e bela ordem na qual superiores e inferiores são necessários uns para os outros
O anjo mais elevado se relaciona com a menor coisa na Terra
Assim, afirma:
Sobre o assunto, dupla é a opinião dos santos doutores, sendo mais provável a que ensina terem sido os anjos criados simultaneamente com a natureza corpórea.
Não simultaneamente com o homem, porque este foi criado depois da natureza corpórea. A razão:
Pois os anjos fazem parte do universo.
Quer dizer, há um só universo e não dois, que nunca se tocam e são alheios um ao outro, como o ensino corrente insinua.
Não constituindo um por si, mas concorrendo, com a criatura corpórea, para a composição do mesmo universo.
Portanto, a coisa mais simples na Terra — uma bandeja, por exemplo, como a que se acha ao meu lado durante esta exposição — constitui um só universo com o mais alto dos anjos que está diante de Deus e O contempla face a face.
Que significa “constituir um só universo”?
Os seres existem em cadeia, em inter-relação constante e formam uma única e bela ordem. Por mais admirável que seja o Serafim, a beleza da ordem que há nele é realçada, por exemplo, pela existência da bandeja. Ainda que esta fosse feia, o realce se daria por contraste. Vemos, então, como a idéia da separação dos dois mundos é falsa.
Separado do todo, nada é perfeito no universo
Prossegue São Tomás:
O que bem se verá, considerando a ordem de uma criatura em relação à outra, pois a ordem das coisas entre si é o bem do universo.
Portanto, toda criatura se relaciona com outra, e essa correlação entre todas constitui a beleza e o bem do universo. Ora, a bandeja e o anjo são criaturas; logo, a maior beleza não está nem somente neste, nem apenas naquela, mas na relação anjo-bandeja, que talvez não seja facilmente compreensível por nós, porém o é por Deus, e essa formosura O encanta.
Ora — diz São Tomás — nenhuma parte do universo é perfeita separada do todo.
Há pessoas que consideram o Apolo do Belvedere ou a Vênus de Milo, por exemplo, como tendo rostos perfeitos. Imaginemos o nariz de Apolo ou o de Vênus, esculpido numa parede… Um nariz absoluto é um monstro absoluto. Ele será bonito por causa de sua harmonia com o conjunto da face. Ninguém dirá de um nariz cortado e lançado no chão: “Que lindo nariz!”, nem de um olho que foi arrancado de um semblante: “Que linda cor tinha esse olho!”. Isolados, nariz e olho causam horror, enquanto que podem causar admiração quando vistos no todo de uma face.
O pensamento de São Tomás assim se explica: se todas as coisas estão agora nessa relação, o perfeito é que sempre tenham estado, porque a obra de Deus é perfeita. Logo, Ele criou o mundo angélico e o corpóreo ao mesmo tempo.
A necessária desigualdade entre os seres
Outros argumentos há pelos quais essa sentença se demonstra. Segundo a opinião de São Tomás de Aquino, a direção dos astros, por exemplo, corresponde aos anjos. E tal fato ocorre por uma necessidade que está na ordem das coisas estabelecida por Deus.
Noutra parte, São Tomás explica ser próprio daquele que é mais governar quem é menos. E quando o superior não tem junto de si o inferior, essa ausência lhe é de algum modo prejudicial. Consideremos alguns exemplos.
É próprio de um professor ensinar. Aposentando-se bruscamente, ele sofre por falta de alunos. Não só o mestre é necessário ao discípulo, mas este é necessário àquele.
Um músico se apresenta em concertos, não apenas por interesse financeiro, pois se fosse rico, ficaria em casa, tocando para si mesmo. Ora, é próprio do homem que sente algo, precisar de alguém a quem comunique seu sentimento. E quem sente mais coisas excelentes, deseja transmiti-las aos que sentem menos e de modo menos perfeito. Essa é a ordem adequada das coisas.
Suponhamos que esse músico fosse o único homem a ouvir, numa humanidade que ficou surda. Só ele apreciaria suas melodias. Resultado: o artista começaria a fenecer e morreria vinte anos mais cedo que o normal, porque ninguém compartilharia com ele os sentimentos e os enlevos pelas suas composições.
Ora, diz São Tomás, os anjos inferiores são espíritos excelentes feitos para mandar nos homens. E o universo angélico seria mal construído se não houvesse pessoas sob a direção dele. Portanto, devemos compreender, com alegria, que somos necessários para nossos anjos da guarda, assim como estes o são para nós.
Essa relação se repete entre os seres animados. Os homens precisam dos animais e dos vegetais para exercer seu mando. E faz parte da natureza animal a necessidade — material, instintiva e não espiritual — de vegetais para se alimentar. Os vegetais, por sua vez, precisam dos minerais; e estes não necessitam de outros seres para existirem, pois constituem o andar térreo onde o universo se fecha.
Em tudo isso vemos a sabedoria de Deus, cuja obra criadora pode ser comparada a um belíssimo colar: cada um de nós, sendo fiel à graça, é uma pedra preciosa intermediária nessa jóia.
Sentindo a ordem do universo no ato de pisar
Falamos em pedra, e nosso pensamento, por uma natural associação de imagens, evoca a ação do homem de pisar no solo. Recordo-me de que, certa feita, ao visitar a capela de uma fazenda, senti particular comprazimento em tocar a terra e a vegetação rasteira do campo, o que há tempos não me era possível fazer devido ao desastre de automóvel que me tolheu alguns movimentos. Naquela hora, porém, senti esse gosto em pisar no chão, dizendo para mim mesmo: “Como é razoável e de acordo com a ordem do universo esse prazer meio indefinido que sinto”. Eu caminhava em espírito de meditação, e cada passo que dava me fazia sentir essa ordem, incutindo maior alegria em minha alma ao entrar na capela.
Um hino à boa ordem
Nessa linha, lembro-me ainda de outro fato. Em uma de minhas viagens à Espanha pude acompanhar uma apresentação de sapateado, e admirei de modo especial um artista que dançava e pisava firme no chão. Pensei: “Curioso, mas esse espanhol faz do solo um instrumento de percussão. Assemelha-se a um passarinho saltitando sobre a membrana de um tambor. O chão é o tambor dos sapateadores espanhóis.”
A própria castanhola que ele tocava dava a impressão de ser o barulho do piso multiplicado com as mãos. Era um homem magro e de peito largo, e seu estilo de dançar era muito atraente. Continuei a elucubrar: “Gosto do sapateado desse artista; ele toca música com os pés. Sinto em mim uma consonância agradável como esse talento. Como pode o contato dos pés com o chão produzir essa impressão musical, essa coisa borbulhante, cheia de vida?”
Saí do espetáculo levando em minha mente esse problema. Mais tarde, cogitando sobre o assunto, percebi que o ritmo com o qual ele dançava era agradável de se ouvir, e os instrumentos eram os pés batendo no chão. Se fosse sobre um tambor, não haveria graça. O imprevisto do saltitar era o que conferia aquela sensação de leve, de infatigável, de desafiante: o artista pisa, repisa, salta, com a noção subconsciente de que todas as coisas devem ser ordenadas. Aquela dança, no fundo, é um hino à boa ordem.
Em última análise, como acima consideramos, isso tem uma explicação tomista. Sendo o chão o mais elementar na criação, foi feito para ser calcado. E ao pisá-lo, o homem exerce sua vontade de governar, próprio de todo ser superior em relação ao inferior, por amor à boa ordem.
A alegria de todo ser está em cumprir seu fim último
Para concluir essas reflexões, voltemos nossa atenção para um outro ponto.
Quando eu estudava no Colégio São Luís, um professor jesuíta levantou a seguinte questão, relacionada com o tema aqui abordado. Dizia ele: “Todo mundo tem alegria em realizar sua própria finalidade. Ora, a finalidade de certos animais é servir de alimento para o homem ou para outros animais. Pergunta-se: se uma galinha raciocinasse, na hora de ser morta e deglutida, ela se sentiria feliz?”
Reconheçamos que esse professor apresentava questões sutis… Ele não respondeu, o que, aliás, no bom sentido da palavra, acho muito jesuítico. Parece-me que, às vezes, pode ser pedagógico fazer perguntas que despertem curiosidade no aluno, com nobre apetite de conhecer a solução, dizendo-Lhe: “Leve essa questão para casa e venha me falar disso daqui a um mês, se quiser.”
Seja como for, o assunto da galinha ficou-me na cabeça e resolvi não perguntar ao padre, mas tentar encontrar a resposta. Cheguei à conclusão de que ele havia construído uma hipótese absurda, porque um ser intelectual não pode querer ser comido. E senti que essa resposta causava bem-estar à minha alma.
Segundo o raciocínio normal, haveria duas soluções: ou a ave teria horror ou gostaria de ser tomada como alimento. À primeira, poder-se-ia objetar: ela não está realizando seu fim? E à segunda: então a galinha está radiante de contentamento…?
Percebe-se que qualquer dessas soluções, especialmente a segunda, causa mal-estar. Porém, a partir do absurdo do ente intelectivo ser comido, compreende-se que, sob certo aspecto, ele poderia gostar. Por exemplo, o homem não gosta de morrer, porque a morte é um castigo, mas pode falecer contente pela certeza de obter o Céu. Assim, também o chão, se fosse capaz de pensar, ficaria feliz de ser calcado pelos pés do sapateador espanhol, pois realizaria sua finalidade de ser pisado.
Perguntar-se-ia: o ser intelectivo gosta de ser pisado? Ele foi feito para ser guiado, e isso lhe agrada, não porém para ser pisado, pois seria um domínio com brutalidade, contrário à sua nobreza. Daí se compreende nossa alegria de termos a Igreja que manda em nós, nossa felicidade por existir uma hierarquia que nos governa.
Consideramos, assim, um importante aspecto da ordem do universo, abordando o papel dos anjos como guias dos homens e de outros seres corpóreos. E quero crer que um conhecimento de ciências naturais seria incompleto, nem atingira toda sua beleza e pulcritude, se não chegasse ao ponto em que, de algum modo, se percebesse o “sinal digital” do anjo sobre a matéria.
(Extraído de conferência em 10/8/1979)