Na seqüência de seus comentários ao opúsculo de São Luís Grignion de Montfort, Dr. Plinio nos coloca diante desta imperiosa questão: temos retribuído como devemos — isto é, pelo nosso empenho em perseverar na virtude — aos sofrimentos que o Divino Redentor e sua Mãe Santíssima padeceram por nós no caminho do Calvário?
Na exposição anterior sobre a “Carta circular aos Amigos da Cruz” consideramos o pensamento de São Luís Grignion acerca dos dois partidos que se enfrentam na história humana: o de Jesus, constituído pelos que se despojam das coisas terrenas para segui-Lo com sua Cruz, e o do mundo, composto pelos homens que se deixam levar pelas vãs ilusões mundanas.
Pungentes palavras de Nosso Senhor a seus seguidores
Na seqüência, o santo autor assim escreve:
Lembrai-vos, meus caros confrades, que nosso Bom Jesus vos olha neste instante e diz a cada um de vós em particular: “Eis que quase todos me abandonaram no caminho real da Cruz. Os idólatras cegos zombam de minha Cruz como de uma loucura; os judeus obstinados se escandalizam com ela, como se fosse objeto de horror (1Cor 1, 23); os hereges quebram-na e a derrubam como coisa digna de desprezo. Mas, e isto só posso dizer com lágrimas nos olhos e com o coração transpassado de dor, os filhos que criei em meu seio e que instruí em minha escola, os meus membros que animei com meu espírito abandonaram-me e desprezaram, tornando-se inimigos de minha Cruz (Is 1, 2)! Numquid et vos vultis abire (Jo 6, 67)?
A cada um de nós, se formos fiéis, é dado mitigar o peso da Cruz sobre os ombros de Nosso Senhor Jesus Cristo
“Quereis vós também abandonar-me, fugindo de minha Cruz, como os mundanos, que nisto são outros tantos Anticristos: antichristi multi? (1 Jo 2, 18) Quereis, enfim, conformar-vos ao século presente, desprezar a pobreza de minha Cruz para correr após as riquezas? Evitar a dor de minha Cruz para procurar os prazeres? Odiar as humilhações de minha Cruz para ambicionar as honras? Tenho, na aparência, muitos amigos que me fazem protestos de amor, mas no fundo me odeiam, pois não amam a minha Cruz; muitos amigos de minha mesa, e pouquíssimos de minha Cruz.”
A este apelo amoroso de Jesus elevemo-nos acima de nós mesmos; não nos deixemos seduzir pelos nossos sentidos, como Eva; não olhemos senão o autor e consumador de nossa fé, Jesus crucificado. Fujamos da concupiscência do mundo corrompido; amemos Jesus Cristo da melhor maneira, isto é, através de toda sorte de cruzes. Meditemos bem estas admiráveis palavras de nosso amável Mestre, que encerram toda a perfeição da vida cristã: Si quis vult venire post me, abneget semetipsum et tollat crucem suam, et sequatur me! [Se alguém quiser vir após Mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me] (Mt 16, 24).
Sendo fiéis, podemos diminuir as dores de Jesus na Paixão
O que vimos até aqui é, portanto, uma espécie de proêmio do estilo de vida de renúncias que Nosso Senhor Jesus Cristo traçou para seus fiéis seguidores. E essas palavras exortam e preparam a alma a receber bem um programa tão austero.
Façamos uma análise desse trecho.
Lembrai-vos, meus caros confrades, que nosso Bom Jesus vos olha neste instante, e diz a cada um de vós em particular: “Eis que quase todos me abandonaram no caminho real da Cruz.”
Esta imagem tem um fundamento histórico, ou seja, Jesus Cristo, do alto do Céu, vê todas as almas e lamenta que tantas delas O tenham abandonado no caminho da Cruz. Além disso, possui um sentido mais profundo, que sempre devemos tomar em consideração, referente às disposições de Nosso Senhor durante a Paixão.
Na antevisão que ambos tinham dos acontecimentos vindouros, Nosso Senhor e Maria Santíssima se perguntavam como receberíamos as cruzes com as quais nos visitariam
Sabemos que Ele sofreu na previsão do mal que faríamos. E, portanto, de um modo misterioso, mas muito real, podemos diminuir as dores d’Ele na Paixão, de acordo com o bom procedimento que tenhamos. Nosso Senhor, em vários momentos de sua Paixão, se não em todos, teve-nos em vista, considerando as alternativas de nossas almas em seguir o caminho da Cruz, em aceitar ou não os sofrimentos.
Ser-nos-ia possível fazer essa meditação tomando cada passo da Via Sacra. Por exemplo, quando o Redentor caiu três vezes sob o peso da Cruz, poderia ter pensado: “Plinio Corrêa de Oliveira agüentará as cruzes sob as quais deverá cair? Ó Pai Eterno, eu Vos peço por ele, para que tenha força e ânimo, a fim de carregá-las”. Nossa Senhora, acompanhando seu Divino Filho, teve presente Plinio Corrêa de Oliveira e cada um dos que estão aqui, na previdência que ambos tinham dos acontecimentos vindouros, e se perguntavam o que faríamos das cruzes com as quais nos visitariam: se bem as receberíamos ou se as abandonaríamos; que proveito tiraríamos da imensa quantidade de sangue derramado, de seus gemidos, prantos, dores e tudo o mais que estavam sofrendo.
Não é, portanto, despropositado fazermos esse raciocínio, cheio de compunção. Para compreendermos tudo quanto esse pensamento tem de pungente, devemos imaginar um pai que fez tudo por seu filho e, ao chegar o momento de receber uma retribuição, pergunta-se: como meu filho vai me recompensar? Corresponderá ao bem que lhe fiz? Ou, pelo contrário, pagar-me-á com uma injúria, uma blasfêmia, um abandono? Ou, então, com uma dessas friezas que naturalmente enregela a alma de um pai? Essas são algumas considerações — todas elas válidas, e haveria outras — a fazer a propósito desse trecho de São Luís Grignion de Montfort.
A necessidade da graça para compreender essas verdades
A partir da fé essas perguntas são muito coerentes e lógicas. Cumpre dizer, entretanto, que quando temos cogitações como essas, sentimos a necessidade da graça. Porque sabemos que tudo isso é muito razoável, porém muitas vezes nada disso nos fala sensivelmente à alma. Se recebermos uma graça, podemos nos transformar ao calor de raciocínios assim, baseados na fé. Compreendemos, desse modo, como a graça divina é indispensável para avançarmos na vida espiritual.
Alguém poderia indagar: “Por que, então, o senhor perde tempo com esses comentários, se acha que sem a graça não é possível aproveitar isso?”
São feitos na esperança de que Nossa Senhora, em certo momento, faça-os frutificar, concedendo graças que me ajudem, e a cada um dos meus ouvintes, a corresponder a essas verdades. Deve-se agir assim: repetir, repetir, até o momento em que Ela tenha pena de nós e nos obtenha uma grande graça para mover nossas almas. O valor disso, portanto, é exatamente o da repetição, à maneira de um mendigo que, do lado de fora da porta, bate, bate, bate até ela lhe ser aberta. Ou daquele homem importuno, elogiado por Nosso Senhor no Evangelho: para conseguir pão, bateu tanto à porta da casa de seu vizinho que este pensou: “Ainda que seja só nesta ocasião, para acabar com o incômodo, vou abrir e dar-lhe o que pede”. Assim também devemos fazer.
A Cruz: razão mais profunda pela qual se abandona Nosso Senhor
É interessante notar que, por esse trecho, percebe-se ter tido São Luís Grignion uma concepção do agir humano inteiramente de acordo com os princípios que procuramos traçar em nosso livro “Revolução e Contra-Revolução”. Ou seja, para ele, assim como pensamos nós, a razão mais profunda pela qual as pessoas abandonam Nosso Senhor é a Cruz. O Redentor quer que os homens carreguem a Cruz, e muitos não a aceitam. Donde poderem ser classificados de acordo com a atitude que tomam em função do sofrimento. Então diz ele:
Por não quererem compartilhar o peso da Cruz com Nosso Senhor, muitos o abandonam; porém muitos O seguiriam, se Ele lhes oferecesse apenas vantagens terrenas…
Os idólatras cegos zombam de minha Cruz como de uma loucura.
Os idólatras, isto é, os que vivem para os prazeres, vêem a cruz e a consideram uma loucura. O gênero de vida levado pelos católicos coerentes com sua religião é tido como uma demência pelos mundanos.
Os judeus obstinados se escandalizam com ela, como se fosse objeto de horror. Os hereges quebram-na e a derrubam como coisa digna de desprezo.
Ele se refere aos protestantes que, em sua época, estavam ainda, sob certo ponto de vista, no auge de suas iniciativas, e quebravam as cruzes ao longo dos caminhos da Europa inteira. Diziam que venerar a cruz é uma forma de idolatria.
Mas, e isto só posso dizer com lágrimas nos olhos e com o coração transpassado de dor, os filhos que criei em meu seio e que instruí em minha escola, os meus membros, que animei com meu espírito, abandonaram-me e desprezaram, tornando-se inimigos de minha Cruz!
Por “membros” entende-se aqui os integrantes do Corpo Místico de Cristo, ou seja, da Igreja. Muitos abandonaram e desprezaram a Cruz, e não quiseram seguir Nosso Senhor. Vemos, assim, como muitas apostasias que presenciamos ocorrem em função da Cruz. Quer dizer, muitos homens não querem o sofrimento, por isso abandonam o Divino Salvador. Se Ele somente oferecesse vantagens terrenas, muitos O seguiriam.
(Continua em próximo artigo. Extraído de conferência em 8/7/1967)