Um dos salientes aspectos da alma de Dr. Plinio era o amor ao belo — pulchrum, em latim —, a respeito do qual pronunciou diversas conferências, algumas delas dedicadas a comentar o livro de Edgar de Bruyne, professor da Universidade de Gand (Bélgica), intitulado L’esthétique du Moyen Age – A estética da Idade Média. A seguir, transcrevemos a introdução feita por Dr. Plinio àquela série de exposições.
Apropósito da matéria apresentada no livro de Edgar de Bruyne (ver quadro em destaque), cumpre consignar o pressuposto de que nossa noção de estética é um tanto diferente daquela estabelecida pelas opiniões de outros autores que ele, sem tomar partido, apenas compendiou. Explico-me.
A emoção estética redunda num ato religioso
Segundo se infere de ditas opiniões — que não traduzem, saliento, necessariamente a do autor —, a estética não é senão uma matemática encarnada no sensível, enquanto que para nós a emoção estética desencadeia uma série de fenômenos na alma humana, dos quais o último e mais alto é uma sensação de solidariedade, de harmonia entre a coisa observada e o observador. E, por detrás disso, uma experiência interna, inefável, pela qual sentimos como nosso próprio eu é coerente com o ser enquanto ser, que é bom em si mesmo, pois foi criado por Deus.
Na conferência estampada neste número, Dr. Plinio, além de outras considerações, faz referência ao seguinte texto da obra de Edgar de Bruyne:
A estética musical
A estética musical inspira-se numa lenda antiga que a maioria dos musicólogos da Idade Média reproduzem fielmente. Um dia, Pitágoras, passando diante de uma ferraria, se detém, encantado pelos sons harmoniosos produzidos por quatro martelos batendo na bigorna um após outro. Os tons diferentes causados por estes instrumentos fizeram com que Pitágoras tivesse uma iluminação súbita: ele pesou-os e descobriu que seus pesos correspondiam a doze, nove, oito e seis libras. Quando 12 e 6 se seguiam, ele ouvia o intervalo harmonioso da oitava; a sucessão de 12 e de 8 ou de 9 e de 6 fazia ressoar a quinta; a de 8 e de 6 ou de 12 e de 9 engendrava a quarta; enfim, quando 8 e 9 se sucediam, eclodia um som que correspondia ao tom inteiro.
Aos sons fundamentais da gama clássica, que domina toda melodia, correspondem, portanto, números relacionados entre si: a quantidade numérica explica a qualidade musical. Quanto mais a relação é simples, mais o intervalo é harmonioso, porque a razão o compreende mais rapidamente ao mesmo tempo em que o ouvido o capta mais facilmente. A harmonia fundamental resulta, pois, das relações as mais simples em si mesmas, e subjetivamente as mais fáceis de se perceber.
Entre a aritmética, que estuda as relações entre elas próprias, isto é, em seu valor científico e a música sensível que dela desfruta sensorialmente nos movimentos sonoros, há uma relação certa: a estética não é senão uma matemática encarnada no sensível.
O que vale para a música que se ouve, não é menos verdadeiro quanto à plástica que se vê (…).
Boécio, que transmite a estética pitagórica à Idade Média, não hesita em passar da matemática à metafísica. Pois os números ímpares são o princípio da identidade, da indivisibilidade, da simplicidade, da igualdade, da constância, do maciço, do viril; a dualidade e os números pares, que dela decorrem, são o princípio da multiplicidade, da divisibilidade, da composição, da variedade indefinida, da fluidez, da leveza móvel, do que é feminino. Visto nesta perspectiva, onde a quantidade se dissolve na qualidade, uma forma é bela na medida em que, numa justa e simples proporção, nela se misturam e se harmonizam dois caracteres contrários, a estabilidade e o movimento, o igual e o desigual, o uno e o múltiplo, o ímpar e o par, o masculino e o feminino (*).
(*) BRUYNE, Edgar de. L’Esthétique du Moyen Âge. Louvain (Bélgica): Éditions de l’Institut Supérieur de Philosophie, 1947, p. 61 a 64.
Em determinado momento do percurso dessa sensação de harmonia, percebo na coisa observada o que ela tem de objetivamente belo e de afim com algo em mim, um predicado comum pelo qual ela e eu participamos da beleza transcendente de Deus. Nesse instante, o conúbio entre nós dois alcança sua plenitude. Embora continue evidentemente existindo, com toda força, uma alteridade entre ambos, essa noção da participação no Criador representa um ponto de convergência e de transcendência mais alto.
A emoção estética atinge sua plenitude na harmonia entre o observador e o objeto observado, na noção de que ambos participam da infinita beleza do Criador
De maneira que, conforme nosso ponto de vista, a emoção estética bem entendida termina substancialmente num ato de caráter religioso e metafísico, ainda que subconsciente.
Pares homogêneos e ímpares heterogêneos
Já sobre o que de Bruyne registra a respeito dos algarismos pares e ímpares, da correlação entre os conceitos de igualdade e variedade indefinida, bem como sobre a indicação das propriedades dos números, poderíamos tecer outras observações.
Para bem se compreender a teoria dos números, devemos considerar que, ao lado da concepção que toma os ímpares como princípios de igualdade, há também aquela que os entende como símbolos da desigualdade. De maneira que, por exemplo, o algarismo 5 não é apenas a soma 1+1+1+1+1, na qual cada unidade é rigorosamente igual à outra, mas pode ser a união de dois pares de 2 presididos pelo número 1. E dado o caráter indivisível dos ímpares, este 1 será heterogêneo e diverso dos outros “uns”.
Ilustra de modo muito eloqüente essa nossa argumentação a arquitetura do conhecido Castelo de Cheverny, na França. Nele há quatro corpos de edifício laterais e um central, diverso, pequeno, porém mais nobre. Por esse exemplo nos é dado entender melhor o significado que atribuímos aos números. Poder-se-ia dizer que o número do Castelo de Cheverny é 5, e sob este aspecto ele estaria perfeitamente definido.
Combinações com fisionomias e qualidades diferentes
Prosseguindo nessa análise do texto do de Bruyne, poderíamos ainda imaginar combinações em que os vários algarismos integrantes do número global tivessem como que fisionomias e qualidades diferentes. Seriam orgânicos, como membros de um mesmo organismo. O que é distinto de uma concepção estritamente numeral e anorgânica, própria de uma aula de aritmética na qual se distribui a uma criança bolinhas iguais até completar, digamos, o número 5.
A teoria que levantamos é inteiramente diversa da que se deduz apenas da igualdade matemática dos algarismos, sem contudo pretender que tal igualdade seja falsa ou má.
Conjugação de conceitos díspares
Concluindo esses breves comentários, convém ressaltar que os números não possuem apenas expressão quantitativa, mas também qualitativa. Embora entre os conceitos de quantidade e qualidade haja um abismo intransponível, existe a possibilidade de conjugá-los, aceitando-se o que acabamos de considerar.
Para tomarmos o exemplo de outro monumento francês, pensemos no Castelo de Chambord, que nos transmite a idéia do incontável.
Apesar de ele ostentar uma quantidade de torres passível de ser estabelecida, ao vê-las temos a impressão do infindo e incontável.
É outro modo de o número exprimir também qualquer coisa de qualitativo.
Exemplo de índole diversa, a poesia com sua métrica: os versos se compõem de sílabas contáveis, mas possuem também algo de incontável, livre ao indefinido, que nos remete para o infinito e, de certa maneira, nos conduz à idéia de Deus.
(Extraído de conferência em 16/1/1973)