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A Carta Circular aos Amigos da Cruz – IX – Práticas da perfeição cristã

Dando continuidade aos seus comentários à “Carta Circular aos Amigos da Cruz”, de São Luís Grignion de Montfort, Dr. Plinio salienta a necessidade de nos compenetrarmos de que nascemos, antes de tudo, para cumprir a missão e o plano de Deus a nosso respeito. E tal desempenho envolve o sofrimento que devemos abraçar, “sem fugas, sem fraudes, sem contrabandos”.

Na segunda parte de seu opúsculo destinado aos Amigos da Cruz, São Luís Grignion de Montfort estabelece o programa de santidade que o próprio Divino Mestre nos deixou. Escreve ele:

Toda a perfeição cristã, com efeito, consiste:

1º) Em querer tornar-se santo: “Se alguém quiser vir após Mim”.

2º) Em abnegar-se: “renuncie a si mesmo”;

3º) Em sofrer: “carregue sua cruz”;

4º) Em agir: “siga-me” (Mt 16, 24; Lc 9, 23).

Portanto, ao interpretar a admirável frase de Nosso Senhor no Evangelho, São Luís demonstra como ela encerra um desejo de santidade, uma renúncia, um padecimento e uma ação. São os elementos fundamentais da conquista da perfeição cristã. A seguir, o autor comentará cada um desses componentes.

Muito poucos querem abraçar a cruz de Cristo

“Se alguém quiser vir comigo” — “Alguém” e não “alguns”, para marcar o pequeno número dos eleitos que querem se identificar com Jesus crucificado, carregando sua cruz. É tão pequeno esse número, tão pequeno, que se o soubéssemos, ficaríamos pasmados de dor.

“Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” — na frase do Divino Mestre, o nosso programa de santidade

É tão pequeno, que há apenas um em cada dez mil, como foi revelado a vários santos — entre outros a São Simão Estilita, segundo narra o Santo abade Nilo, bem como Santo Efrém, São Basílio e alguns outros. É tão pequeno, que se Deus quisesse reuni-los, gritar-lhes-ia, como o fez outrora pela boca de um profeta: reuni-vos um a um, um desta província, outro desse reino (Is 27, 12).

Cumpre notar que São Luís Grignion não se refere apenas ao seu tempo, mas considera todas as épocas, em todos os lugares: assim mesmo, o número de pessoas que verdadeiramente querem tomar a cruz de Nosso Senhor e segui-Lo, é pasmosamente pequeno.

Sem o auxílio da graça não se aceita uma vida de renúncias

São Luís prossegue:

“Se alguém quiser” — se alguém tiver vontade autêntica, firme e determinada, não pela natureza, pelo costume, pelo amor próprio, pelo interesse ou respeito humano, mas por uma graça toda vitoriosa do Espírito Santo, que não se dá a todos. O conhecimento do mistério da cruz, na prática, só é dado a poucas pessoas. Para um homem subir ao Calvário e aí se deixar pregar na cruz, com Jesus, em sua própria pátria, é preciso que seja um corajoso, um herói, um determinado, um homem formado em Deus, que despreze o mundo e o inferno, seu corpo e sua vontade própria; disposto a deixar tudo, a tudo empreender e a tudo sofrer por Jesus Cristo.

Sabei, queridos Amigos da Cruz, que aqueles dentre vós que não têm essa determinação, andam com um pé só, voam com uma asa só e não são dignos de estar no meio de vós, porque não são dignos de serem chamados Amigos da Cruz, à qual devemos amar com Jesus Cristo, corde magno et animo volenti. Basta uma meia vontade nesse caso, para corromper todo o rebanho como uma ovelha negra. Se em vosso aprisco já existe uma delas, vinda pela porta má do mundo, em nome de Jesus Cristo crucificado expulsai-a como a um lobo que se esgueirou entre os cordeiros.

Esse pensamento de São Luís Grignion é muito importante, porque nos revela a necessidade de uma graça especial para determinar os homens a seguirem a cruz de Nosso Senhor.

Quer dizer, se alguém julga que somente fatores humanos são capazes de levar uma pessoa a aceitar uma verdadeira vida de sacrifícios, esse se acha completamente enganado. E igualmente errado estará quem pense que a tal nos inclinará o costume, a natureza ou o “ânimo dedicado”. Não existe ânimo dedicado nessa matéria. Há homens que, às vezes, demonstram certa facilidade para algumas formas menos penosas de dedicação. Mas entregar-se até o sangue nas grandes dificuldades, não se consegue sem o auxílio da graça.

Sabemos, pela experiência pessoal de cada um, como é dura a batalha pela perseverança na virtude: luta e entrega individuais, em que a tradição e o ambiente doméstico podem ajudar um tanto, mas não são fatores determinantes para nos levar à pratica da virtude. É preciso a força da vontade secundada pelo socorro divino.

Se quisermos, como alguns poucos, seguir Nosso Senhor com a cruz às costas, importa suplicarmos por meio de Maria Santíssima o indispensável auxílio da graça

Fotos: G. Kralj
Encontro de Jesus com Nossa Senhora na Via Sacra – Marfim, Museu Metropolitan de Nova York

A graça “toda vitoriosa” do Espírito Santo

Curioso notar como São Luís Grignion se refere também ao interesse e ao respeito humano — tomado aqui no sentido de honras e regalias que se prometem a alguém — como ineficazes para convencer o homem a tomar a Cruz. Ou seja, nenhuma razão natural, nenhum valor terreno e mundano é capaz de determinar uma pessoa a cumprir estavelmente os Mandamentos de Deus. Só mesmo com o amparo do Céu, como o próprio autor insistirá na frase seguinte:

Mas por uma graça toda vitoriosa do Espírito Santo que não se dá a todos.

Agrada-me salientar essa bela expressão de São Luís: “graça toda vitoriosa”.

Com efeito, há certas graças que o Espírito Santo concede aos homens, em geral graças de conversão, que trazem consigo a vitória na vida espiritual. Graças tão ricas, tão eficazes, alcançadas por meio de Maria Santíssima, que nos fazem sentir um desejo quase irresistível de progredir na virtude e de abraçar as vias da santidade de modo mais resoluto.

Certo, mesmo sob o influxo dessa graça poderemos conhecer eclipses, enfrentaremos toda espécie de ventanias, de tropeços, mas, afinal, aquela luz divina nunca se apagará inteiramente no nosso horizonte. E acabaremos por segui-la e por atingir nosso bom porto, conduzidos pela misericórdia de Nossa Senhora.

Prudência sobrenatural

Continua o santo autor:

Basta uma meia vontade nesse caso, para corromper todo o rebanho como uma ovelha negra. Se em vosso aprisco já existe uma delas, vinda pela porta má do mundo, em nome de Jesus Cristo crucificado expulsai-a como a um lobo que se esgueirou entre os cordeiros.

É interessante analisarmos a razão pela qual São Luís Grignion se refere à “má ovelha”. A meu ver, uma razão de prudência sobrenatural, que se explica nesses termos: quando um grupo forma um todo homogêneo, a presença nesse conjunto de um elemento heterogêno pode maculá-lo por inteiro.

Imaginemos, por exemplo, um lindo tecido sobre o qual cai uma gota de tinta. Diríamos: “o pano está manchado”. E estranharíamos se outro objetasse: “Não, desculpe-me, mas apenas um centímetro quadrado desse tecido está sujo; o resto está limpo”. Ora, um centímetro quadrado de mancha num tecido branco, implica em que todo ele está manchado. Se se deseja a alvura inteira do pano, é preciso remover a mancha.

Se aceitarmos a cruz, cumpriremos nossa missão

“Se alguém quiser vir comigo”, que tanto me humilhei e aniquilei, que me tornei mais semelhante a um verme, que a um homem; comigo, que só vim ao mundo para abraçar a cruz, para colocá-la no centro de meu coração, para amá-la desde a minha juventude; para suspirar por ela durante a minha vida; para carregá-la com alegria, preferindo-a a todas as alegrias do céu e da terra, e que, enfim, só me contentei quando morri em seu divino abraço.

Eis um dos sublimes pensamentos de São Luís Grignion de Montfort, pois se refere à posição do homem perante a missão que ele recebeu de Deus; missão que sempre traz uma cruz, à qual deseja carregar. Aqui está, expressa em termos magníficos, a vocação do verdadeiro Amigo da Cruz.

Trata-se, portanto, de termos a compenetração de que viemos ao mundo, não para nos divertir nem para satisfazer caprichos. Viemos, antes de tudo, para cumprir nossa missão, o plano de Deus a respeito de cada um. E o desempenho dessa missão envolve o sofrimento que devemos abraçar, agarrarmo-nos a ele, sem fugas, sem fraudes, sem contrabandos, mas tomá-lo por inteiro. Claro está, suplicando a Nossa Senhora que nos alcance de Deus as forças necessárias para beber o cálice das dores como Ela e seu Divino Filho o fizeram na Paixão, sem deixar escapar uma gota sequer. Seja o que for, por mais duro, mais difícil, mais enigmático e incompreensível aos nossos olhos, aceitarmos.

Ao mundo viemos, antes de tudo, para cumprir o plano de Deus a respeito de cada um, e isto envolve a renúncia de si mesmo e o aceitar a Cruz do Divino Redentor, sob o amparo de Nossa Senhora

Fotos: G. Kralj
O corpo de Nosso Senhor é descido da Cruz – Marfim, Museu Metropolitan de Nova York

E não é apenas aceitar a cruz, mas nos adiantarmos e a agarrarmos, nos prendermos a ela, com todo o amor e toda a força de nossa alma. Amo minha missão e o sofrimento sacrossanto que ela traz consigo. O resto me importa menos ou não me importa nada. Quero a cada uma dessas gotas de sacrifício, com integridade de coração, sem me esquivar de nenhuma. Devo preferi-las “a todas as alegrias do céu e da terra”, e “amá-las desde a minha juventude”.

Outra expressão de extrema beleza. Na verdade, muitos podem dizer que desde a juventude, desde os albores da infância, sentiram o sopro da graça que lhes convidava para sua vocação. E se corresponderem, no momento de deixarem este mundo, poderão olhar para trás e dizer a Deus:

“Senhor meu Pai, ao menos, de um modo ou doutro, amei a vocação que me destes desde o começo de minha vida. E esta não foi outra coisa senão procurar o cumprimento da missão que me confiastes. Agora morro nas vossas mãos e nas de Maria Santíssima; aquilo que me mandastes fazer, eu fiz. Dai-me, pois, Senhor, o prêmio da vossa glória.”

É a missão realizada. Mas, missão aceita é, antes de tudo, a cruz aceita. Abraçada a cruz, está cumprida a missão. E é a graça de tomarmos a cruz que devemos pedir a Deus, de toda a alma e com toda a confiança, por meio de Nossa Senhora.

(Extraído de conferência em 22/7/1967)

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