domingo, noviembre 24, 2024

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São Francisco de Assis e o enlevo pelas coisas divinas

Personalidade admirável que marcou não apenas o seu tempo mas os séculos sucessivos, São Francisco de Assis tanto se identificou com o Divino Mestre que se Lhe tornou semelhante até mesmo no seu semblante físico. Para Dr. Plinio, o Poverello foi uma imagem viva do enlevo pelas coisas divinas exercitado ao último ponto.

Nas veredas de um mundo que caminhava de modo torrencial atrás das riquezas, São Francisco de Assis foi o trovador que entoou o hino do desapego e da pobreza, da doação levada ao mais alto esplendor do amor de Deus e do desejo de se Lhe entregar. Ele foi o santo da caridade e da bondade; o santo que, indo de encontro à Cruz, mereceu a glória de receber os estigmas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Foi, igualmente, o santo entusiasta dos ideais da cavalaria católica, toda voltada para o serviço da Igreja. Por tudo isso, terá sido ele, a meu ver, a personalidade mais contagiante que talvez tenha havido na Cristandade.

A característica de uma alma enlevada

Entre tantos predicados dignos de consideração, creio ser oportuno ressaltar esse aspecto da alma de São Francisco: o seu amor arrebatado pelas coisas divinas, seu enlevo que chegava ao êxtase, diante das maravilhas criadas por Deus e diante da própria perfeição do Criador.

Tenho para mim que ponderável parcela da felicidade que nos é dado ter nesta Terra — vale de lágrimas — consiste em nos enlevarmos com aquilo que merece nosso encanto, amor e admiração, e em fazermos a doação desses sentimentos ao objeto de nosso enlevo. Bem entendido, essa admiração desinteressada e fervorosa deve se dirigir, acima e antes de tudo, ao que representa para nós uma expressão de Deus Nosso Senhor. E, portanto, tal enlevo será, em última análise, a manifestação de nosso amor ao Altíssimo.

Nesse sentido, é ilustrativo o fato narrado por um literato: certa vez, levou um amigo para ver, de longe, uma aldeia por ele já conhecida. Chegaram ao topo de uma colina e, lá do alto, após divisarem o belo cenário de montanhas e campos que envolviam a aldeia, ele começou a indicar: “Aquela é a casa de fulano, aquela outra de beltrano, a outra de sicrano”. O amigo, surpreso, perguntou-lhe:

— Bem, e a sua, qual é?

— Ah, eu não tenho casa. Não tenho nada. Só o panorama…

Compreende-se: quem tem o panorama, tem mais que o casario, porque tem o enlevo e a capacidade de admirar aquela superior beleza como um reflexo de Deus. É o gesto desinteressado de contemplar o cenário pelo cenário, sem vantagem própria.

A necessidade de doar-se

Insisto nessa idéia do amor desinteressado a algo que se ama por se tratar de uma manifestação da grandeza de Deus. E, portanto, uma disposição de alma que devemos cultivar para irrigar e alimentar nossa vida espiritual, para aumentarmos nossa capacidade de enlevo pelas coisas divinas.

Como saber se estamos trilhando esse caminho?

A meu ver, o sintoma de que fomos tocados pelo raio divino do enlevo é precisamente o fato de sentirmos uma necessidade de doar o nosso amor, abnegadamente, ao objeto amado enquanto tal e nada mais. No Glória que se reza na Missa, essa atitude de alma está muito bem expressa, quando se diz: Nós vos damos graças, Senhor, por vossa imensa glória. Ou seja, amo tanto a Deus porque Ele é Deus, e eu O agradeço por ser Deus como se fosse um inestimável favor feito a mim, quando a glória e o benefício é exclusivamente para Ele. Eu, homem, não participo dessa magnitude, a não ser como um adorador pequenino no fundo do santuário, com os olhos fitos no Tabernáculo.

Há, portanto, uma certa forma de enlevo pela qual a pessoa quer dar-se inteiramente e não conservar nada para si. E faz disso o ideal de sua vida, de tal maneira que coloca sua felicidade no ter oferecido tudo a Deus: “Senhor, eu vos trago tudo, não conservo nada para mim, dou-me por completo.”

Alma de fervor contagiante, São Francisco de Assis entoou o hino do desapego, do amor a Deus e do desejo de se entregar a Ele por inteiro

São Francisco tanto se identificou com o Redentor Divino, que se Lhe tornou parecido até no semblante físico

Fotos: S. Hollmann / V. Toniolo
Na página 28: São Francisco de Assis – Museu de Sevilha, Espanha; à direita: Exéquias de São Francisco – Pinacoteca Vaticana, Roma

A perfeita alegria de São Francisco, expressão de enlevo

E, oh! coisa inexplicável, oh! paradoxo: essa é a felicidade mais autêntica que se possa ter. Prova-o o exemplo dos santos, e o exemplo do próprio São Francisco de Assis. Ele o exprimiu de modo perfeito, quando, durante o trajeto entre uma casa e outra de sua ordem, em tempo de rigoroso inverno, seu acompanhante Frei Leão lhe perguntou no que consistia a perfeita alegria, e São Francisco respondeu:

— Imagine que, chegando ao convento no meio da noite, sob neve intensa, com frio e fome, ao batermos à porta, o irmão porteiro nos atenda irritado, nos admoeste com desaforos e não nos deixe entrar. Então permaneceremos ao relento, sofrendo os rigores do frio e o aguilhão da fome, aceitando tudo com serenidade e resignação por amor a Deus: nisto estaria a perfeita alegria.

Penso que não se poderia compreender essa afirmação de São Francisco, a não ser em função do enlevo. Ou seja, é um tal amor e uma tal veneração pela ordem franciscana e tudo quanto ela representa, que um membro dela, após receber toda espécie de maus tratos e injúrias à porta de um dos seus conventos, ainda se deixa tomar de enlevo, como se exclamasse: “Ó moradia do meu Beato Pai Francisco! Ó muros sagrados! Ó paredes! Ó conteúdo sacrossanto! Ó espírito que habita nisto! Com que alegria eu, não podendo entrar, fico contente em estar de fora, imaginando o que está dentro!”. Isso é o enlevo perfeito.

Imagem viva do enlevo exercitado ao último ponto

E por essa atitude de alma se compreende também, que, por exemplo, um franciscano possa dizer: “Não sou eu mais quem vive, mas é meu pai São Francisco que vive em mim”. Claro está, não significa que ele deixou de existir materialmente, mas que o enlevo dele pela pessoa de São Francisco chegou a um tal extremo que, por assim dizer, ele se transformou num outro São Francisco de Assis, assimilou e se identificou com a personalidade de seu fundador. Do mesmo modo como o próprio São Francisco podia dizer: “Não sou eu mais que vivo, mas é Cristo que vive em mim”. Assim aquele religioso exclamaria: “É Francisco que vive em mim e, por meio deste, é Cristo que vive em mim. Eu morri, dando-me por inteiro ao ideal franciscano, transformando-me num filho completo de São Francisco.”

Aliás, creio que uma forma de holocausto das mais sensíveis que houve na História — de propósito não digo que tenha sido a maior, nem a comparo com o exemplo de Nossa Senhora, que está acima de todos os conceitos — foi a realizada por São Francisco de Assis. De fato, o doce Poverello conformou-se tanto à figura de Nosso Senhor Jesus Cristo que chegou a se tornar fisicamente parecido com o Divino Mestre, inclusive recebendo os estigmas da Paixão.

Qual o significado dessa semelhança?

Significa uma tal união que, por todo o jogo das razões naturais, e mais ainda sobrenaturais, ele se transformou num outro Cristo: era a imagem viva do enlevo praticado até o último ponto.

(Extraído de conferências em 10/6/1967 e 10/3/1970)

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