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Um feitio de alma, uma forma de bondade

Assumindo uma atitude tranquila e constante diante das dificuldades, Dona Lucilia procurava educar seus filhos de forma a compreenderem qual era a autêntica atitude a ser assumida em face da vida. O que havia de mais importante era servir a Deus. Contudo, para bem servi-Lo era necessário devotar o devido respeito e cuidado pelas obrigações de família.

Evidentemente, não me foi possível conhecer Dona Lucilia quando menina. Entretanto, não seria dificultoso reconstituir seu modo de ser nesse período, fundamentado em seu estado de alma depois de ela haver se tornado adulta.

Desse estado de alma, o que mais a caracterizava era uma admirável retidão, que consistia em sempre analisar todas as coisas em sua realidade inteira. Por mais dolorosa ou, ao contrário, por mais promissora que fosse qualquer situação, ela tomava tudo com objetividade, considerando o sofrimento como era de fato, e todas as amarguras que dele podiam-lhe ser provenientes.

Não obstante, Dona Lucilia considerava também as alegrias sem exagerar, porém, a dimensão das vantagens que estas lhe poderiam proporcionar, recordando-se de que tudo é fortuito nesta terra.

Por essa razão ela tomava uma posição muito calma e estável em face da vida, sem grandes torcidas, nem grandes ansiedades ou depressões. Isso não fazia dela, de modo algum, uma pessoa antipática, pois Dona Lucilia vivia profundamente todos os acontecimentos, mas sempre com certa distância, não permitindo que eles influenciassem seu modo de ser.

Entre os acontecimentos e ela, havia uma camada em que os ruídos dos fatos não conseguiam penetrar ou transpor. E para aquém das coisas concretas, Dona Lucilia conservava sua calma, distância psíquica e estabilidade características.

Recolhimento, tranquilidade e senso do dever

Esse estado de espírito proporcionava a Dona Lucilia recolhimento, tranquilidade e força para todas as dificuldades da vida. Por mais que mudassem as circunstâncias, ela permanecia firme em suas convicções.

O que a motivava a agir de tal forma era um implícito e profundo senso do dever, em virtude do qual ela não considerava a vida como a definira certo literato francês: “Um longo charuto saboroso que se trata de fumar até o fim.”

As mães anseiam que seus filhos desenvolvam qualidades que os tornem ilustres. Também Dona Lucilia almejava que eu fosse um grande advogado, quem sabe de maior renome que seu próprio pai, o Dr. Antônio Ribeiro dos Santos.

Fotos: J. Dias, Anonimo.
Fotos: J. Dias, Anonimo.

Dona Lucilia não entendia que a finalidade da vida era conquistar glórias e prazeres em honras fátuas, pois ela possuía a certeza de que com a morte tudo isso se esmaecia. E para ela a vida se caracterizava por algo diverso: um dever a cumprir e uma excelência de alma a adquirir. Havia prazeres na vida, mas também havia tristezas; tratava-se então de considerar os prazeres com vistas a poder aguentar as tristezas.

Fotos: J. Dias, Anonimo.
À esquerda, Dr. Antonio Ribeiro dos Santos. Acima, Dona Lucilia aos 16 anos, à direita, quando menina.

A finalidade da vida era cumprir uma missão e um dever que Deus havia designado em sua providência.

Disputando a influência com os maus ambientes

No âmbito restrito da vida de família, Dona Lucilia considerava como seu dever proporcionar formação, bem-estar, alegria e elevação de alma ao ambiente doméstico, de modo a que seus filhos viessem a ser perfeitos católicos e cumpridores de seu dever. Ela procurava marcar o lar doméstico com uma afabilidade e com um afeto, procurando torná-lo atraente, como forma de disputar a influência com os ambientes que poderiam ser maléficos aos seus.

Desejava ela habituar seus filhos a este modo de ser, a fim de que eles, por sua vez, formassem seus descendentes nessa escola indefinidamente, pois ela entendia que era esse o verdadeiro modo de viver.

Talvez alguém se perguntasse se com tal tranquilidade Dona Lucilia haveria de preparar seus filhos para as dificuldades da vida, ou lhes dar aspirações e anseios de progredir.

Com efeito, Dona Lucilia apresentava sucessivamente uma meta ou um ideal a ser obtido, mas sempre sob o aspecto de um dever. E esse dever era por ela concebido da seguinte forma:

Fotos: J. Dias, Anonimo.
Palacete Ribeiro dos Santos.

Servir a Deus é mais importante

“Temos uma obrigação de honra para com nossos antepassados, de não nos rebaixarmos, e por essa razão devemos nos esmerar para sustentar a família na altura que corresponde a ela, como à tradição dos maiores que a formaram, pois que as coisas elevadas devem manter sua dignidade.”

Por ser sobrinho do Conselheiro João Alfredo, nossos familiares esperavam que eu me tornasse uma figura à semelhança dele…

Fotos: J. Dias, Anonimo.

Fotos: J. Dias, Anonimo.
À esquerda, Conselheiro João Alfredo; à direita, Dr. Plinio na década de 30.

Isso não deveria ser feito com vistas a fruir uma vantagem ou um gozo da condição social que possuíamos, mas sim por uma reverência ao ideal de nobreza e elevação enquanto um princípio instituído por Deus. Consequentemente, era necessário viver e lutar para manter nosso estado, e caso fosse possível, elevar-se a condições ainda melhores, sem nunca utilizar para este fim manobras indecorosas. Através de um trabalho honesto e gradual desejávamos poder progredir, pela obrigação de sustentar o nome da família, obrigação que existia e que se desejava manter.

Todavia isso não era o que havia de mais importante. Ser verdadeiro católico, apostólico e romano era o principal. Assim, todas as obrigações para com o nome da família, como também para com sua tradição, tornavam-se secundárias. Servir a Deus era o que havia de mais importante. Contudo, para bem servi-Lo, era necessário devotar o devido respeito e cuidado pelas obrigações de família.

Onde está a felicidade?

Tal obrigação não era uma felicidade, mas antes um dever. A felicidade consistia na elevação piedosa e tranquila da alma, considerando os prazeres simples, despretensiosos e normais da existência. Pois a felicidade não está tanto nas grandes festas, quanto na boa ordenação da vida quotidiana; não está tão intensamente nas grandes viagens, quanto no bom aproveitamento dos lazeres comuns; nem mesmo nas grandes fortunas está a felicidade, mas sim em conferir um significado espiritual e moral ao prazer que se obtém.

Essa é, sobretudo, a felicidade da alma temperante, tranquila e modesta. Uma felicidade capaz de ser sentida até no infortúnio quando se conserva o essencial: a consciência limpa diante de Deus, e um equilíbrio de alma que torne a vida digna de ser vivida.

Correspondendo aos anseios da família

Devido ao instinto materno, todas as mães anseiam que seus filhos venham a desenvolver dotes e qualidades que os tornem ilustres e importantes. Em virtude disso, também Dona Lucilia almejava que eu pudesse ser um grande advogado, quem sabe de maior renome que seu próprio pai, o Dr. Antônio Ribeiro dos Santos.

Ademais, por ser sobrinho do Conselheiro João Alfredo, nossos familiares esperavam que eu me tornasse uma figura à semelhança dele.

Anos mais tarde, quando em 1932 fui eleito deputado para a Constituinte, Dona Lucilia reagiu com uma tranquilidade de alma e uma serenidade impressionantes. Lembro-me de que em nenhum momento a vi exultante, muito embora soubesse que esse fato correspondia plenamente ao que ela esperava de seu filho, apenas aos 24 anos de idade.

O dever acima das ebriedades da glória…

Ocorreu então um tocante episódio com Dona Lucilia por ocasião de minha posse como deputado. A cerimônia fora realizada no Rio de Janeiro, e tantos foram os sacrifícios feitos por mamãe que sua presença era mais que merecida. Naturalmente, convidei meu pai e minha irmã para também irem, e rumamos todos para o Rio.

No dia em que a Constituinte seria inaugurada, dirigimo-nos todos para o ato solene. Dona Lucilia, entretanto, possuía um certo incômodo nos pés devido a um reumatismo, o que não lhe permitia permanecer por muito tempo em pé. Por essa razão chegamos bem antes, e levei-a até uma galeria, local privativo do qual os deputados poderiam dispor para seus convidados.

Fotos: J. Dias, Anonimo.

Começaram a soar as campainhas, indicando que a sessão inaugural da Constituinte iria começar. Tive de deixá-la, dirigindo-me apressadamente para o recinto dos deputados.

Ficou-me então a dúvida se ela obtivera ou não o lugar que esperava.

Quando cheguei ao local onde ficavam os deputados, ainda antes de entrar na bancada paulista, que era a primeira à direita da mesa do Presidente, coloquei-me no meio do salão com o intuito de verificar se ela havia conseguido um bom lugar.

Notei enfim que Dona Lucilia havia obtido um bom lugar, e quando a encontrei fiz um sinal para ela e tomei posição na bancada.

Tempos depois Dona Lucilia fez o seguinte comentário:

“Meu filho, sua mãe ficou muito alegre com sua eleição para deputado. Entretanto, significou muito mais para mim sua atenção de acenar com a mão, quando já estava embaixo, pois que naquela hora em que você poderia estar desvairado pela vaidade, lembrar-se de sua mãe e procurar ver se ela estava bem acomodada, indicava um feitio de alma e uma forma de carinho que vale muito mais que uma carreira de deputado.”

Notei que ela assim pensava: “Caso possível, seja deputado, vá para a frente. Porém, esse não é o papel central da vida. Mais importante é ter uma noção do dever que fica acima das ebriedades da glória. E, consequentemente, ter para com sua mãe o grande reconhecimento que bem sei que você tem.”

Creio que esse episódio torna patente qual era o feitio de espírito de Dona Lucilia.

(Extraído de conferência de 24/6/1973)

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