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O verdadeiro sentido da vida

Para Dona Lucilia, o convívio harmonioso, em função de Deus, representava uma condição indispensável para a felicidade. Considerar um futuro onde isso não estivesse presente seria como olhar para o horizonte em que o Sol declina e se vai fazendo noite.

Os presentes neste auditório conhecem aquela frase de Dona Lucilia para comigo: “Viver é estar juntos, olhar-se e querer-se bem.” Quando uma pessoa tem certo número de circunstantes com os quais convive habitualmente e todos se querem bem, isto é a vida. Não havendo essa benquerença, a vida fica sem nenhuma espécie de valor.

Por detrás dessa ideia existe a compreensão de que o mais importante na existência é honrar, amar a Deus e cumprir a sua vontade. Depois disso vem o amar ao próximo por amor de Deus, como Nosso Senhor ensinou.

Devemos, sobretudo, amar aqueles próximos que mais nos conduzem ao Criador; são caminhos para que nós, querendo-os bem, amemos a Deus. E o sofrer é uma condição para de fato realizarmos isso, conforme irei explicar.

Mamãe queria muito bem os seus pais. Não presenciei as relações pessoais dela com o pai1, porque este morreu quando eu tinha um ano de idade. Mas vi-a conviver com a mãe dela durante muitos anos e notei como Dona Lucilia a queria bem; era uma coisa extraordinária. E assim ela era com o marido, com a filha e também com o filho.

Dr. Antônio Ribeiro dos Santos e Dona Gabriela Rodrigues dos Santos, pais de Dona Lucilia.

Nessas condições pude também perceber quais as coisas que ela temia na vida, e que sacrifícios, holocaustos, ela fazia para estar em ordem com Deus nessa matéria. E assim compreendi qual o sentido da vida dela.

Infância na pequena Pirassununga

Mamãe era uma pessoa que tinha sido formada, num ambiente muito antigo, pelos seus pais, que moravam em São Paulo, mas logo que se casaram mudaram-se para Pirassununga. Naquele tempo Pirassununga era uma aldeola, na qual tudo estava de tal maneira começando que a casa deles foi a primeira a ter vidraça e, se não me engano, assoalho. Antigamente o piso das residências era de terra batida.

O pai dela, ou a mãe, havia herdado terras em Pirassununga — que mais tarde se valorizariam muito —, as quais não valiam nada naquele tempo, porque tudo era mato não explorado e, portanto, não constituía fonte de renda.

Meu avô era um advogado muito competente, sobretudo em matéria de contratos. Num contrato elaborado por ele não havia perigo de seu cliente ser roubado ou ludibriado; e o outro contratante não era defraudado, mas apertado de tal maneira que ficava com seu lucro o mais reduzido possível, em benefício do cliente dele.

Todos sabem que isso atrai muitos clientes para os advogados. E ele tinha, portanto, grande clientela que foi crescendo até o fim de sua vida. Quando se tornou um pouco mais maduro — talvez com uns trinta anos de idade, e começou a ter reputação —, ele vivia muito bem, com muitos móveis bons e outros objetos que ele mandava levar para Pirassununga. Posteriormente toda a família mudou-se para São Paulo.

Ela me falava especialmente do pai, porque a mãe dela ainda estava viva. Tinha por ele um entusiasmo, um respeito e uma veneração únicos. Mas parece-me que ela não previu a hipótese de o pai morrer.

Dr. Antônio prevê sua própria morte

Naquele tempo a Medicina era muito atrasada e seu pai fazia cálculos e coisas por onde, não se sabe bem porque, ele previa o ano de sua morte.

No início do ano em que morreu, 1909 — sua saúde estava bastante gasta porque tinha trabalhado muito —, ele comprou uma folhinha, ou seja, um calendário novo, para pôr em sua casa; naquela época colocava-se numa parede das residências um calendário bonito, impresso na Europa. Todo ano meu avô comprava um calendário e ele mesmo o pregava numa parede do quarto de dormir de sua casa.

Após ter prendido o calendário, ele fez, em voz alta, um cálculo chamado dos noves fora — uma operação matemática pequena, mas que nunca cheguei a entender; jamais tive entusiasmo pela Matemática — e disse para sua esposa:

— Sinhara — era um modo antigo de dizer senhora — este ano eu vou morrer.

Ela zangou-se com ele:

— Você está forte e cheio de vida, não pense nisso.

Era um casal muito unido e ela não queria que ele morresse.

Meu avô acrescentou:

— Isso é assim e você vai ver como eu vou morrer mesmo.

Mamãe me falava especialmente a respeito de seu pai; tinha por ele um entusiasmo, um respeito e uma veneração únicos.

Algum tempo depois ele estava conversando junto à mesa de refeições; olhou para uma de suas mãos e notou que uma das veias do pulso aumentava e diminuía de volume à medida das pancadas do coração. Pôs sobre a veia a lâmina de uma faca, mostrou para minha avó e lhe disse:

— Sinhara, veja como está oscilando minha veia!

Minha avó, que não sabia qual era o alcance médico daquilo, respondeu:

— Ah! Sim.

Ele afirmou:

— Isso quer dizer o seguinte: Quanto mais lateja esta veia, mais o homem está perto da morte.

Mais uma vez ela zangou-se com ele, dizendo-lhe que não era nada.

De vez em quando, meu avô falava dessa história de que iria morrer. Mas ele parecia estar forte, vivo, era trabalhador e ninguém ligava muito para isso.

Andando pelo centro de Santos, Dr. Antônio tem um derrame cerebral

Havia em Santos um hotel magnífico chamado Parque Balneário, situado bem em frente ao mar, e com um jardim muito bonito. Nesse hotel a família de meus avós passava frequentemente temporadas.

Bom número de clientes de meu avô residia em Santos, porque eram fazendeiros que vendiam café para a Europa. Por isso, muitas vezes ele precisava descer àquela cidade, para elaborar os contratos muito complicados.

Um belo dia, meu avô estava andando no centro velho de Santos quando de repente sofreu um derrame cerebral e caiu. Foi então levado para uma casa de comércio e colocaram-no sobre um balcão, à espera do socorro médico, que tardou em chegar.

Depois de certo tempo, passou por lá um homem que, ao vê-lo sobre o balcão da loja, disse:

— Mas esse aqui é Dr. Antônio Ribeiro dos Santos! É preciso chamar a sua família que está no Hotel Parque Balneário! Vou avisar alguém da firma da qual ele é advogado.

As pessoas da família bem como seus amigos se dirigiram para lá, e o local foi se enchendo de gente, porque se espalhou no mundo de negociantes de café que ele estava nessas condições.

Ele estava num quarto sozinho para repousar, enquanto os amigos e parentes ficavam conversando numa sala ao lado.

Em certo momento ele chamou um de seus filhos:

— Antônio! Antônio!

O filho entrou depressa:

— Papai, o senhor quer alguma coisa?

Tendo ele feito sinal de que estava passando muitíssimo mal, o filho chamou o médico que estava na sala. Quando este entrou no quarto, meu avô caiu morto.

Acima, Dr. Antônio Ribeiro dos Santos; abaixo, Dona Lucilia aos 16 anos.

Terrível golpe sentido por Dona Lucilia ao receber a notícia da morte de seu pai

Mamãe estava em São Paulo, não tinha ainda descido para Santos. Quando recebeu a notícia da morte do pai dela, mamãe sentiu um choque tão forte, que quase desmaiou. Teve que se deitar na cama — já era alto dia, entre duas e três horas da tarde — e ficou aguentando o golpe horrível que recebera.

No dia seguinte, houve o enterro em São Paulo. Mamãe queria ver o cadáver do pai que estava na residência dele, a dois passos da casa dela. Apoiada de um lado por meu pai e de outro por um tio dela, mamãe foi andando. Porém, de tal maneira suas pernas estavam enfraquecidas, que ela caía constantemente e quase precisava ser arrastada. À medida que dava os passos, avivava-se a ideia de que se aproximava o momento de ver o cadáver do pai e estava chegando a hora do enterro…

Aliás, naquele tempo o enterro era muito impressionante. Não se fazia com automóvel, mas em carruagem dourada e preta, com plumas, e funcionários do serviço funerário com uma espécie de chapéu de dois ou três bicos, também com plumas. Eram mais ou menos os trajes do Ancien Régime. E depois vinham vários carros com coroas de flores, que os parentes e amigos mandavam. E tudo puxado a cavalo.

Eu ainda assisti alguns enterros assim. Tornava muito enervante ver aqueles cavalos parados em frente à casa do morto, e a todo o momento batendo com as patas no chão. Às vezes, eram dez carros desses, cada um com quatro cavalos; pode-se imaginar quarenta cavalos batendo com as patas, durante uma hora ou duas…

Dona Lucilia foi chegando perto daquela pancadaria e, ao vê-la sem forças, o tio dela disse para meu pai:

— Ela não consegue andar. É melhor a levarmos para a casa de vocês.

Mamãe estava num tal estado de espírito que não sabia mais se lhe convinha ver o cadáver do pai, ou voltar para casa e deitar-se na cama. Afinal, os dois resolveram carregá-la e conduziram-na ao quarto dela; depois eles foram para o enterro.

O hábito de prever o que pode acontecer

Esses fatos ela os contava com pormenores extraordinários, revivendo o que ela sentia de um modo tal que — tinha eu doze ou treze anos de idade; havia, portanto, treze ou quatorze anos que o fato havia se dado — os narrava com toda a pulsação e vitalidade como se tivessem ocorrido na véspera. E eu até ficava com pena de mamãe quando ela contava, mas percebia que, ao fazer as narrações, ela ainda sentia certo alívio. E às vezes eu perguntava:

— Mamãe, como foi bem exatamente a morte de vovô?

Ela contava tudo novamente. E, enquanto ela narrava, eu a agradava, e esse agrado diminuía sua dor, seu isolamento.

Dona Lucilia não dava importância às previsões de seu pai quanto à morte dele. Ela não previu que isso poderia suceder, e o baque sofrido por ela com o falecimento do pai foi muito maior do que se o tivesse previsto.

Ela era ainda muito moça, não tinha tido essa escola da vida que é o hábito da previsão. Nessa ocasião ela ficou compreendendo quanto teria valido a pena imaginar que o pai poderia morrer, e como seria sua vida quando ele falecesse. Prever tudo teria sido para ela de uma utilidade colossal.

Depois disso, ela ficou inteiramente outra e adquiriu o hábito de prever e calcular tudo como iria acontecer. E mais ou menos previa qual seria o futuro dela.

Hábitos antimodernos

Como seria esse futuro?

Mamãe era, de certo modo, incompreendida por todo mundo com quem ela tratava. Era muito contrarrevolucionária, com os hábitos, um modo de ser e de tratar as pessoas muito antimodernos. No tempo em que era menino, eu já notava a diferença existente entre ela e os outros. Dou alguns exemplos.

Ela possuía um modo de ser profundamente europeu, sobretudo francês. Tinha um entusiasmo único pela França, sua segunda pátria, que, aliás, ela me ensinou a ter e considero um dos inúmeros benefícios colossais que mamãe me fez.

O Brasil estava se modificando, porque os costumes dos norte-americanos aqui penetravam. Havia muita simpatia por eles, porque os povos do continente americano — ingleses, franceses, portugueses e espanhóis —, que residiam nas respectivas colônias, tinham um ressentimento profundo com as pátrias europeias, porque achavam que estas sugavam a eles, sendo, portanto, preciso acabar com isso e proclamar a independência. Mas, proclamando a independência, o Brasil teve que depender moralmente, psicologicamente, de alguém; assim, ficou dependendo dos Estados Unidos.

Alma profundamente contemplativa

O cinema de Hollywood aqui penetrou profundamente. Os costumes americanos e a mentalidade de Hollywood eram completamente diferentes dos que mamãe possuía.

Por exemplo, para ela a tranquilidade, a seriedade, uma visão analítica, meditativa da vida, as alegrias e os sofrimentos da existência faziam parte do seu modo de ser. E ela era muito contemplativa. Pode-se verificar isso pelas suas fotografias, nas quais ela está em geral com vestido de gala, quer dizer, traje de cerimônias importantes, de festa, mas com a fisionomia profundamente preocupada, reflexiva.

Na fotografia em que ela está sentada num banco, com uma das mãos junto ao rosto, percebe-se que é uma senhora vestida para uma festa, entretanto pensando em coisas muito graves e sérias.

Se fosse abordada por alguém da festa, ela o trataria muito bem, seria amável, diria coisas agradáveis, como, aliás, era bom costume naquele tempo. Porém, se a deixassem fazer como queria, ela pensaria nas coisas da vida.

Através de Dona Lucilia, recebi a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, a Nossa Senhora; e a levei profundamente a sério.

Isolada em meio aos seus…

E essas coisas da vida faziam com que, em geral, ela percebesse que as pessoas se tornavam cada vez mais diferentes dela e iam se afastando de seu convívio; e o futuro que ela teria diante de si era que seus parentes mais próximos, irmãos, cunhados, ficariam cada vez mais diferentes dela.

E os filhos como seriam? Sobretudo o filho homem, que era então um menino, como seria? Os homens eram mais americanizados, penetrados pelo espírito de Hollywood, do que as mulheres; portanto, o filho estaria mais distante dela do que a filha. Naquela época era o extremo de sua descendência e seria o extremo do afastamento. O normal seria que eu não tivesse religião, porque os homens do meu tempo não frequentavam os Sacramentos, não tinham respeito nenhum para com a Fé e debicavam da Religião.

M. Shinoda
Igreja do Sagrado Coração de Jesus (São Paulo); em destaque, Dona Lucilia em 1912.

Tal perspectiva representava para ela uma vida de isolamento, que aumentaria mais ainda quando meu pai morresse. Provavelmente a filha e o filho seriam como os outros: tratá-la-iam bem, com respeito, apenas porque era mãe, mas como a uma pessoa cacete, que não interessa, e ela teria que passar a vida inteira num isolamento tremendo.

E para mamãe o querer-se bem, estar juntos, eram as condições de felicidade da vida. De maneira que considerar um futuro onde não houvesse essas condições, seria como olhar para o horizonte em que o Sol declina e se vai fazendo noite. A marcha para o futuro era uma marcha para um anoitecer. Tudo isso ela via e sabia que precisaria enfrentar.

Últimos membros de um mundo que estava morrendo

Essa previsão se verificou de modo quase completo. Quer dizer, à medida que ela foi envelhecendo as pessoas se distanciaram dela. E aquele que mais provavelmente se distanciaria dela, não se distanciou: esse fui eu.

Pelo contrário, recebi através dela a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, a Nossa Senhora, a Fé católica, apostólica e romana. E as levei profundamente a sério. Daí veio a minha vida como, graças a Deus, a conduzi até este momento.

Mas eu também me sentia muito afastado do mundo norte-americano. E no transcorrer dos anos percebia que os meus colegas iam ficando mais afastados de mim. Éramos os dois últimos restantes de um mundo que estava morrendo. Ela desejando salvar-me para não cair no mundo novo que aparecia, e eu querendo apoiar-me no exemplo dela, nutrir-me da mentalidade e dos sentimentos dela, para ser como ela, a quem eu queria enormissimamente bem, porque via que ela merecia, e era a minha mãe.

Ela notava que quem resistisse ao mundo de Hollywood ficava como um tronco no meio de uma maré baixa, em que tudo vai puxando para o mar; o tronco permanece rolando pela terra ou é sugado pelo mar. Assim também, ou a levava a maré norte-americana, ou ela ficava; se ficasse tornar-se-ia como um desses pedaços de pau que a maré deixa na praia, depois que as águas vão embora, é um resto inútil.

Prevendo o que poderia acontecer

Nisso que Dona Lucilia via com tanta clareza havia para ela um lenitivo. Esse lenitivo era o filho que ela começava a tratar de filhão. Ela era um pouco pequena e eu já um homenzarrão. Para a minha geração, sou um homem bem alto; não o sou para a geração dos que estão neste auditório. Era menino alto, portanto. Ela percebia que, na perseverança desse menino com tal mentalidade, havia a promessa de uma companhia até os últimos dias. Promessa que, com o favor de Nossa Senhora, mantive ao pé da letra até o momento de ela expirar.

Ela agiu bem ou não ao prever tudo que ia acontecer?

Fez muito bem.

Em primeiro lugar porque era um sofrimento o qual Deus queria que ela tivesse, a fim de preparar a sua alma para não se acovardar.

De outro lado, prevendo tudo isso, ela adquiria a força de alma necessária para resistir. E eu entendia que, sendo ela uma senhora — e uma senhora tem uma sensibilidade muito mais débil do que a de um homem —, nas ocasiões em que a vida se lhe tornasse muito difícil, deveria redobrar de carinho, porque o meu papel era representar a força dentro de um ambiente onde ela representava o afeto.

E isso fez com que, talvez uns dois ou três anos antes de sua morte, tendo se encontrado comigo ocasionalmente num corredor um pouco comprido, existente em meu apartamento, ela parou — percebi que ela vinha pensando em algo — perto de mim, me segurou por um ombro, e disse: “Filhão, você é o único que eu tenho” e logo acrescentou: “Mas a você tenho inteiramente”

Posso dizer tranquilamente que ela me tinha inteiramente mesmo. Estive junto dela até o último momento de sua vida.

(Extraído de conferência de 9/4/1994)

1) Dr. Antônio Ribeiro dos Santos.

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