jueves, noviembre 7, 2024

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A Quarta-Feira de Cinzas em seu nascedouro

Dentre as inúmeras luzes irradiadas pela Santa Igreja sobre a Civilização Cristã, encontra-se uma de inigualável valor: a Liturgia católica! Esta, quando vista em função do contexto no qual surgiu, apresenta brilhos e encantos próprios.

Analisando a gênese da Quarta-Feira de Cinzas, Dr. Plinio aponta-nos o verdadeiro estado de espírito com que devemos ingressar na Quaresma.

Para bem se compreender a intenção da Igreja ao instituir o cerimonial da Quarta-Feira de Cinzas, é necessário considerar suas origens, bem como sua repercussão na época em que foi estabelecido.

Portanto, é necessário voltarmos nossa atenção a um longínquo passado, visto que essa prática litúrgica — à semelhança de como quase todas as outras — se constituiu, provavelmente, de modo definitivo na Idade Média. Algo ainda se acrescentou nos primeiros séculos dos tempos modernos, e depois disso quase nada foi acrescido.

A Igreja, centro da vida social

Como eram constituídas as cidades no tempo em que essa prática litúrgica surgiu?

Por aquilo que delas restou, ou pelo que ficou retratado nas iluminuras, vê-se que as cidades medievais eram pequeninas, com ruas estreitas a fim de caber dentro de muralhas, as quais eram necessariamente circunscritas, pois que serviam para defender os habitantes de ataques inimigos.

Fotos: E. Salas; P. Mikio; R. C. Branco; S. Hollmann; O. Melo; S. Miyazaki.

Fotos: E. Salas; P. Mikio; R. C. Branco; S. Hollmann; O. Melo; S. Miyazaki.
Aspectos da cidade de La Brigue, França.

Por isso, as casas eram muito próximas umas das outras; o andar superior se projetava mais para a frente de modo a ficar sobre a rua, a ponto de, estando à janela de uma dessas casas, ao estender o braço, poder-se tocar na casa que estava adiante.

No centro desse emaranhado orgânico de edifícios erguia-se uma torre: o campanário da igreja. Mais próximo à igreja havia, às vezes, uma ou mais abadias ou conventos, em torno dos quais se agrupava a população. Deste modo, tudo quanto se passava na igreja constituía o centro da vida social.

Os pecadores ante a sociedade

Ora, o que se passava na igreja, na quarta-feira que marcava o início da Quaresma?

As pessoas que haviam se tornado claramente pecadores — tendo, por exemplo, matado alguém sem disso ter se arrependido e confessado, portanto, vivendo afastadas dos sacramentos; ou então blasfemado publicamente contra Deus e contra a Igreja, e apesar de repreendidas persistiram em sua obstinação; e até mesmo aquelas que notoriamente se tinham afastado da Igreja, deixando de comparecer à Missa e frequentar os sacramentos — eram chamadas pecadores públicos.

Como eram vistos pela sociedade estes pecadores?

O conceito do homem medieval a respeito deste tipo de gente era o seguinte: “Eles são pecadores, miseráveis e, por isso, altamente censuráveis, deles devemos viver afastados, pois o homem reto não convive com o pecador, e quando tem que tratar com um deles, o faz com distância e frieza, pois, até que se arrependa e faça penitência por seu pecado, sendo inimigo de Deus ele é também inimigo do gênero humano!”

Apesar disso, a centralidade da Igreja na sociedade medieval era tal que até mesmo esses pecadores compareciam à igreja por ocasião da Quarta-Feira de Cinzas, mesmo porque a maior parte deles sabia que estava no mau caminho e pesava-lhes viver naquele estado, apesar de não querer abandoná-lo.

Além desses pecadores, nesta ocasião havia outros que se denunciavam como tais. Às vezes, eram homens tidos como muito virtuosos, mas que nessas cerimônias apareciam entre os pecadores públicos, acusando-se de algum pecado. E, por terem sido objeto de uma honraria e consideração à qual não tinham direito, estando arrependidos queriam receber o desprezo que mereciam.

Ademais, a estes se somavam muitos que, por terem cometido pecados que não eram públicos, mas se julgavam pecadores, juntavam-se àqueles para fazer penitência e assim reparar suas faltas.

Aproximai-vos de onde o perdão vos vem

Assim, quando os sinos começavam a tocar, as pessoas iam saindo de suas casas, e no grupo dos inocentes ou dos pecadores se dirigiam para a igreja. Imaginemos o estado de espírito desses homens pecadores, andando pela rua, ao lado da população inocente, vendo de longe a fachada imponente da igreja, adornada de santos e de anjos, tendo no centro uma imagem do Crucificado, ou de Nosso Senhor Jesus Cristo abençoando, ou então a imagem da Virgem das Virgens, concebida sem pecado original.

Ouvindo ainda o bimbalhar dos sinos, chegam diante da fachada da igreja que se ergue imponente, aparentando severidade, entretanto tão acolhedora que parece dizer: “Vinde, filhos! Vós pecastes, mas aproximai-vos de onde o perdão vos vem, confessai-vos e arrependei-vos.”

No centro do emaranhado orgânico de edifícios erguia-se uma torre: o campanário da igreja. Tudo quanto se passava na igreja constituía o centro da vida social.

Fotos: E. Salas; P. Mikio; R. C. Branco; S. Hollmann; O. Melo; S. Miyazaki.

Fotos: E. Salas; P. Mikio; R. C. Branco; S. Hollmann; O. Melo; S. Miyazaki.
A Virgem e o Menino, Aachen (Alemanha). À esquerda, Catedral de Chartres, França.

Entravam todos e, transcorrida a cerimônia, os pecadores se retiravam para um determinado lugar onde iriam fazer penitência.

Contudo, isto só tinha verdadeira autenticidade porque o homem na Idade Média possuía uma profunda noção da gravidade do pecado.

Alguém que não se toma a sério a si próprio

Como manter firme esta noção que inúmeras circunstâncias procuram desbotar em nós?

Para compreendermos isso, vou levantar uma pergunta um tanto estranha. O que meus ouvintes pensam de um homem, do qual se afirmasse o seguinte: “Você é um tipo leviano, que não se toma a sério a si próprio.” A resposta normal a tal injúria poderia ser uma bofetada! Pois, um homem que não se toma a sério a si próprio não vale nada; é próprio do homem tomar-se a sério, e este é o primeiro passo para ele ser alguma coisa.

Ora, quanto mais descabida, para não dizer blásfema, a seguinte pergunta: Será que Deus se toma a sério a Si próprio?

Evidentemente, Deus Se toma infinitamente a sério, assim como Se ama infinitamente a Si próprio. Donde deflui que, tendo Ele apontado que determinadas atitudes constituem pecado, de tal forma que os homens que as praticam rompem com Deus e tornam-se seus inimigos, isto é tomado realmente a sério por Deus.

Tomando-Se a sério, Deus não diz algo que não produz efeito, não proclama uma inimizade que não é autêntica. Do contrário seria o caso de se perguntar se Deus existe.

A seriedade de tudo diante de Deus

Com esta seriedade, que participa de sua infinita sabedoria e santidade, Deus vê as ações dos homens.

Tudo é imensamente sério diante de Deus. O pecado, portanto, é profundamente sério, execrável e gravíssimo! Quem o comete rompe com Deus, pondo-se na mais miserável das situações.

Por mais rico que alguém possa ser, ao pecar torna-se o mais desafortunado dos homens, pois tendo tudo o que a Terra pode oferecer, não pode merecer o Céu. O pecador deve saber que é ainda pior o fato de ele estar na contingência de, a qualquer momento, advir-lhe a punição divina, seja com penas nesta vida, através de inúmeras e inopinadas desgraças que podem desabar sucessivamente sobre ele, ou então com a pior das punições, que é a do inferno, às quais nada nesta Terra serve como termo de comparação: as trevas eternas, onde o fogo queima e não ilumina, onde os piores tormentos atazanam continuamente os homens, os quais compreendem não haver para eles mais remédio.

O pecador tem a noção viva do mal que fez contra Deus e que não deveria ter feito, por ser Ele infinitamente Santo, Bom e Verdadeiro. Sabe igualmente que é pela infinita Justiça divina que aquela tremenda cólera desaba sobre os pecadores.

Esta noção os pecadores na Idade Média a tinham, e por isso iam à igreja pedir perdão e fazer penitência.

Sentir a gravidade do pecado

O que são essa penitência e esse perdão?

Note-se a bela atitude da Igreja: ao mesmo tempo em que ela estimula o uso dos cilícios, institui uma cerimônia para abençoá-los, como se dissesse: Penitencia-te até o sangue, mas sendo tu meu filho, aproxima-te que vou deitar minha bênção neste instrumento que te tortura!

Fotos: E. Salas; P. Mikio; R. C. Branco; S. Hollmann; O. Melo; S. Miyazaki.

Fotos: E. Salas; P. Mikio; R. C. Branco; S. Hollmann; O. Melo; S. Miyazaki.
Imposição das cinzas.

Em primeiro lugar, o pecador deve reconhecer todo o mal que fez. Para isso a Igreja incita-o a recitar os salmos penitenciais, os quais, de modo magnífico, estimulam o sentir da enorme gravidade e malícia do pecado. Através dos salmos penitenciais nota-se que sendo Deus tão insondavelmente bom, Ele cria o homem com a glória do estado de prova para assim poder adquirir méritos. Contudo, tendo o homem pecado — ao invés de exterminá-lo de imediato conforme a ofensa mereceria —, Deus “cochicha” no ouvido do homem aquilo que o homem deve considerar a fim de medir a gravidade do mal cometido, além de ensiná-lo como pedir perdão, tal como um juiz que recebe o réu com uma majestade indizível, com aparatos de força e severidade tremendos, mas ao mesmo tempo manda alguém entregar ao réu um bilhete que diz: “Se rogares ao juiz na sinceridade de tua alma e pedires com as seguintes palavras que estão neste bilhete, o juiz te manda o recado que te atenderá!”

Assim, o pecador como um réu caminha para o Deus Juiz, com a oração ditada por Ele próprio. Não se pode imaginar maior manifestação de misericórdia do que esta.

Então, do fundo da igreja, vinha o mísero cortejo dos pecadores rezando: “Miserere mei Deus, secundum magnam misericordiam tuam, et secundum multitudinem miserationum tuarum, dele iniquitatem meam — Tende compaixão de mim ó Deus, segundo a vossa grande misericórdia. E segundo a multidão de vossas bondades, apagai a minha falta.”

Sentindo-se esmagados pela grandeza do Juiz e pela infâmia de sua culpa, eles rezam para pedir perdão. Mas, ao mesmo tempo, são alentados pela promessa do Juiz que lhes diz: “Reza desta forma, meu filho, sente isto, que eu me tornarei teu amigo!” Nisso vê-se o magnífico equilíbrio da atitude divina.

Havendo Deus “ditado” a oração que deve ser a Ele dirigida para pedirmos perdão, não poderia ter Ele resumido esta súplica numa jaculatória, com isso adiantando o momento do perdão?

Fotos: E. Salas; P. Mikio; R. C. Branco; S. Hollmann; O. Melo; S. Miyazaki.
Cilícios utilizados por São Geraldo Majella.

De súplica em súplica, até a confiança no perdão

Tal como está constituído, este conjunto de salmos dá a impressão de que, enquanto a pessoa reza, permanece, entretanto, certa dúvida acerca do perdão de Deus. Por isso o penitente repete o pedido com um novo argumento. Por vezes apela-se à bondade de Deus, noutra parte à glória. Porém, cada uma dessas palavras é muito adequada e útil para preparar o espírito à compenetração da gravidade do pecado, mas também para que vá se adquirindo uma confiança inabalável de que Deus o perdoará.

À medida que os salmos se sucedem, tem-se a impressão de que o Salmo da Confiança vai despontando, até chegar à última palavra, a qual opera uma explosão de confiança: “Vós me salvareis ó Deus!”

Quando se chega a esta esperança cheia de alegria pelo fato de Deus ter dito no fundo da alma do pecador que ele será salvo, inicia-se a Quaresma. Movido por esta esperança o pecador quer sofrer para expiar suas faltas.

Então, aproximando-se do padre, o pecador se ajoelha e este lhe traça com cinza uma cruz sobre a fronte, dizendo: “Lembra-te, homem, que és pó e ao pó hás de voltar.” O que naquela ocasião equivalia a dizer: “Cuidado! A morte ronda em torno de ti. Deus, apesar de infinitamente bom, é justo também. Agora vai e faze penitência.”

Ela fere, mas também cuida da ferida

Como eram as penitências?

Antes de tudo tratava-se de jejuar, alguns chegavam a passar os quarenta dias a pão e água. Mas havia também uma cerimônia da bênção dos cilícios, os quais geralmente eram cintos cheios de pequenos ganchos de ferro que arranhavam a carne em torno do tronco, causando dolorosas feridas. Estes eram usados por alguns durante todo o período da Quaresma.

Note-se a bela atitude da Igreja que aqui está contida. Ao mesmo tempo em que ela estimula o uso dos cilícios, institui uma cerimônia para abençoá-los, como se dissesse: Penitencia-te até o sangue, mas sendo tu meu filho, aproxima-te que vou deitar minha bênção neste instrumento que te tortura!

Aí se vê mais uma vez o equilíbrio entre a justiça e a misericórdia. E justamente por dever existir este equilíbrio entre estas, bem como entre as demais virtudes, é que devemos amar a justiça tanto quanto a misericórdia.

De maneira que diante de uma afirmação como a seguinte: “Deus disse ao pecador: Eu te execro!” Nós devemos exclamar, assim como o faríamos diante de uma frase misericordiosa. Pois, quando o pecador compreende o mal de seu pecado, e percebe quanto Deus odeia o pecado, ele compreende também quanto Deus é a Pureza. E diante da Pureza infinita de Deus, como pode alguém não se entusiasmar?

Quem tem horror ao pecado, ama a virtude à qual este se opõe. Portanto, é sumamente necessário ter entusiasmo pela severidade de Deus.

Uma bela oração para se fazer nesta Quaresma é a seguinte: “Ó meu Senhor, como Vós odiais meus pecados! Eu Vos peço: dai-me uma centelha de vosso ódio sagrado em relação a eles!” Porém, logo depois, nós devemos também pedir a misericórdia, pois sem ela quem pode subsistir?

(Extraído de conferência de 2/3/1984)

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