À primeira vista, dir-se-ia que veneração e ternura são incompatíveis, mas, na realidade, tais sentimentos se confundem a propósito do carinho: sentindo-se objeto do carinho materno, o filho deseja retribuí-lo.
A veneração é a manifestação do grande respeito que um ser inferior presta a um superior.
Em princípio, o superior tem o direito de julgar e punir o inferior. A mãe, embora anciã e sem forças, continua tendo o poder e o direito de castigar seu filho maior de idade. Para um filho que sabe o que é uma mãe, e uma mãe que entende o significado deste título — portanto é mãe no sentido próprio, direto e pleno da palavra —, uma censura, um conselho, um elogio feito pela mãe tem o peso que poucas coisas humanas possuem. Só um elogio, um conselho ou uma censura da Santa Igreja podem pesar mais sobre um homem.
Essa veneração envolve certo elemento que a Igreja, empregando muito bonita expressão, define como temor reverencial; ou seja, o temor que se tem a uma pessoa não tanto devido à força de que ela dispõe, quanto ao respeito que impõe.
Então, o temor reverencial que o filho tem para com a mãe parece ser o contrário do carinho. Porque o carinho é de modo especial o afeto que o mais velho, mais poderoso, mais pleno dá àquele que é mais fraco, mais débil.
Veneração, ternura e carinho
Pode-se falar, por exemplo, do carinho de uma mãe para com seu filho. É mais difícil falar do carinho de um filho para com sua mãe. O próprio “inho” da palavra “carinho” tem qualquer coisa que soa aos nossos ouvidos como se fosse um diminutivo, o qual vai bem para quem é mais em relação a quem é menos; e não tão bem para aquele que é menos relativamente a quem é mais.
Na realidade, porém, a veneração e a ternura se confundem completamente, a propósito do carinho. Quer dizer, o filho, sentindo-se objeto do carinho da mãe, tem um desejo de retribuí-lo; o carinho da mãe desperta o carinho no coração do filho.
De maneira tal que um homem poderá ser durante toda a sua vida particularmente bom, misericordioso, condescendente — no bom sentido da palavra — se ele teve uma mãe muito carinhosa. Porque nasce no coração dele o carinho e, portanto, todas as formas de bondade. Ele gosta até de se sacrificar, de fazer alguma coisa difícil por quem merece seu carinho.
Então, o carinho materno jorrando sobre o filho é como a água que cai de grande altura sobre uma pedra. Quanto maior a altura, mais a água sobe de novo ao bater na pedra. Assim é o carinho materno: verte-se sobre o filho e deste como que respingam gotas de água, as quais se pudessem voltariam ao alto.
A veneração e a ternura se confundem completamente, a propósito do carinho. O filho, sentindo-se objeto do carinho da mãe, tem um desejo de retribuí-lo; o carinho da mãe desperta o carinho no coração do filho.
O equilíbrio dessas duas coisas faz propriamente o equilíbrio do homem, porque quando ele só quer impor o respeito dos outros, mas não sabe ser afetuoso, fica faltando algo; e quando apenas é afetuoso, porém não sabe impor respeito, ele não é um homem autêntico, porque o próprio do homem é saber se impor.
Equilíbrio semelhante ao do pêndulo de um relógio
Quando o homem impõe respeito e tem carinho, ele possui um equilíbrio semelhante ao do pêndulo de um relógio, que chega a um extremo, vai ao outro extremo, e deste volta para o primeiro, fazendo os ponteiros marcarem a hora certa.
Debaixo de certo ponto de vista, o carinho e a veneração também se equilibram dessa forma: quem chega ao extremo do carinho fica desejoso de venerar; quem atinge o extremo da veneração quer acariciar. Essas duas coisas se completam.
Compreende-se assim que em presença de uma mãe como foi Dona Lucilia, a tendência para a veneração e para o carinho eram enormes.
Para falar da veneração, lembro-me dos pitos que recebi dela e de como eu queria bem a esses pitos.
Ela passava o pito de modo tão respeitável, mas ao mesmo tempo era tão carinhosa que depois da repreensão eu saía meio ofegante de admiração.
Qual é a criança que não merece um pito de vez em quando? Tenho visto muitos filhos receberem pitos de suas mães e saírem furiosos, e também as mães ficarem furiosas quando repreendem os filhos. Furiosa comigo mamãe nunca esteve; ela passava pitos, mas eram pitos bondosos, firmes, e também lógicos, bem raciocinados; às vezes, ela empregava umas fórmulas quase duras, mas ditas com muito carinho.
Lembro-me de uma fórmula usada por ela a propósito de meus boletins.
Boletins do Colégio São Luís
No Colégio São Luís, dos padres jesuítas, as notas dos alunos eram dadas todos os meses. Havia uma caderneta com doze páginas, equivalente aos meses do ano. Em cada página estavam impressas, numa coluna, os nomes das matérias, a primeira das quais era Religião.
Ao lado dessa coluna existia outra na qual se consignavam as notas relativas ao estudo e ao comportamento em sala de aula. Em geral, quem estudava era bem comportado na aula; e quem era bem comportado estudava.
Mas havia alguns alunos de péssimo comportamento; cheguei a ver um padre chorar por causa das atitudes de um aluno.
Às vezes, o padre dizia para algum aluno que estava conversando no fundo da sala de aula:
— Fulano, venha cá e fique de pé, olhando para a parede.
O menino ficava, então, até ao fim da aula nessa posição, o que era uma coisa muito desagradável.
Havia um aluno que possuía um hábito horrível. Ele pegava as pálpebras e as virava pelo avesso; ficavam então aqueles olhões saltados e, como a pálpebra do lado de dentro é vermelha, aquela vermelhidão.
O padre o chamava para ir até a frente. Ele ia e ficava olhando para o lado, enquanto o sacerdote continuava dando aula. De repente o padre percebia uma gargalhada e procurava saber o que havia: era aquele aluno que tinha virado as pálpebras e estava olhando para os colegas de classe. O sacerdote não percebia logo porque, quando parava de falar, o aluno desvirava as pálpebras. O padre olhava para ele e o aluno fitava o padre com uma cara muito natural. Era só o padre recomeçar a aula, que ele novamente virava as pálpebras.
Alunos como esse são verdadeiro tormento para o professor.
Então, havia notas de comportamento e de aproveitamento, para cada matéria.
Dona Lucilia costumava me dizer o seguinte: “Eu faço questão que você tenha notas boas em tudo, mas quero sobretudo em comportamento. Porque se no aproveitamento tiver notas baixas, é sinal de que você é burro. Fico com muita pena de ter um filho burro, mas não se nega alimento nem para os burros, de maneira que você pode ficar vivendo e comendo aqui como burro da casa.”
Naturalmente ela falava isso para me dar brio.
Depois continuava: “Em comportamento, não. O aluno recebe nota má de comportamento porque é ruim, e filho ruim eu não tolero. Ninguém tem culpa de ter nascido burro, e se eu pus no mundo um filho burro, chamado Plinio, paciência. Mas se eu pus no mundo um filho, ele tem que ser bom; não posso tolerar que seja ruim.”
Eu olhava para mamãe e pensava: “Será que ela acha que eu sou burro? De repente sou mesmo, hein! Que coisa desagradável, mas, afinal, o que posso fazer?”
Em Geografia: nota seis de comportamento
No Colégio São Luís, no final de cada mês entrava o bedel na sala de aula com uma pilha de cadernetas e as entregava para cada aluno; chegando a suas casas, os alunos deveriam mostrá-las para os pais.
Os padres, para terem certeza que os pais tinham visto as cadernetas, pediam que eles as assinassem. Todo mês o bedel examinava cada caderneta e, se em alguma não constava a assinatura do pai, mandava-a de volta, pedindo ao progenitor que a assinasse. E se o aluno não a trouxesse, telefonava para o pai. Isso era feito para que o pai exigisse do filho o estudo. Tudo muito bem pensado e muito direito.
Certo dia, quando recebi do bedel minha caderneta, verifiquei que as notas de aproveitamento eram bastante boas. E nota dez de comportamento em todas as disciplinas, exceto em Geografia, cuja nota era seis. Eu fiquei pasmo, pois não fizera nada de errado. Dona Lucilia tolerava até nove, mas nota seis ela não toleraria nunca.
Quanto às aulas de Geografia, eu achava cacete ficar aprendendo os nomes de todos os países. E naquele tempo o estudo era muito severo. O Brasil possuía então vinte e um Estados; hoje tem mais. O aluno precisava saber de cor os limites de cada Estado com outro. Era ponto de exame, por exemplo, saber quais os limites de Goiás com Mato Grosso, dois Estados que naquela época quase não eram habitados.
Então se devia saber de cor: partindo de tal serra, encontra-se um rio, que dá num lago, no qual tem origem tal outro rio, que encontra determinada montanha etc.
Além de achar cacetíssimo isto, eu tinha muita dificuldade de decorar, pois não possuía boa memória. Mas nunca, na aula, eu deixava de me comportar bem. Então como foi possível receber nota seis? E quando eu chegar a minha casa…
Pensei: “Foi uma injustiça que me fez esse professor de Geografia, o qual naturalmente observa que eu acho as aulas dele desagradáveis; ficou indignado comigo e mandou pôr nota seis. Mas já sei como vou me arranjar.”
Peguei uma caneta e escrevi dez em cima do seis. Notando que ficava evidente o seis embaixo do dez, pensei: “Agora piorou a situação, porque mamãe verá que escrevi dez com minha letra grandona, pesadona, e me pedirá explicações.”
Eu ainda estava no colégio e chovia. Disse para comigo: “Vou sair da sala, abrir o boletim e deixar cair água da chuva sobre ele. Com certeza uma gota de água cairá em cima desse dez; e direi à mamãe que a chuva borrou o boletim. Verei se tapeio mamãe de qualquer jeito.” Fui para fora; caía chuva em todo o boletim, mas a nota dez continuava seca…
O Colégio do Caraça era considerado uma prisão
Cheguei a minha casa e encontrei mamãe no quarto de toilette dela — era uma espécie de sala de estar que as senhoras tinham antigamente —, sentada numa cadeira de balanço perto da escrivaninha. Lembro-me perfeitamente da cena. Ela com certeza havia escrito alguma coisa e estava descansando um pouco.
Entrei e disse-lhe:
— Meu bem, aqui está o meu boletim.
Muito afetuosa, ela o abriu e seus olhos caíram imediatamente naquele empastelado.
Perguntou-me, então:
— O que é isto aqui? O que aconteceu?
— Mamãe, recebi esse boletim e, mesmo debaixo da chuva, eu quis ver quais eram as minhas notas e caiu água sobre ele.
— Mas aqui em cima dessa nota seis o que você escreveu? A letra é sua. Por que você anotou uma coisa em cima daquilo que o padre escreveu? Você quer me explicar isso? Vamos, explique!
Não havia explicação, eu estava encostado na parede.
— Mamãe, eu falsifiquei a nota.
— Ah! Você falsificou a nota? Então eu sou mãe de um falsário? Meu filho falsifica a letra dos outros?
Passou-me então um pito, dizendo que todo falsário é ordinário, sem-vergonha, e quem falsifica a letra de outro vai para a cadeia.
— Você merecia ir para a prisão. Sabe de uma coisa? Eu vou mandá-lo para uma cadeia.
Havia em Minas Gerais um colégio, o qual, em São Paulo, tinha a fama de ser severíssimo, verdadeiramente a cadeia de meninos insuportáveis. Toda criança da capital paulista tinha horror a ir para esse colégio. Era uma calúnia que espalharam em São Paulo, porque está provado que tal colégio era muito bom, muito direito. De maneira que eu estava certo de que se tratava de uma cadeia. É o Colégio do Caraça, em Minas Gerais, situado num lugar muito bonito, com montanhas etc.
Mamãe continuou:
— Você irá para o Colégio do Caraça. Eu vou esperar seu pai chegar do escritório — meu pai era advogado e voltava para casa na hora do jantar. Quando ele chegar, vou mostrar-lhe o que você fez, e amanhã ele, levando esse boletim, irá falar com o padre, para perguntar o que você fez. Conforme o que você praticou, eu vou mandá-lo para o Caraça.
Fiquei horrorizado e ela acrescentou:
— Eu vou passar um ano sem vê-lo, e você também vai passar um ano sem me ver. Sofrerei muito mais do que você, porque eu quero mais bem a você do que você quer a mim. Mas, se é para seu bem, eu o mando para lá. Estando no Caraça, lembre-se de que sua mãe está chorando infeliz porque você está na prisão. Mas você vai para a cadeia.
Entrei numa grande depressão, mas não disse nada a ela. Não pedi perdão — o que era malfeito, pois devia ter pedido. Ela não se aproximou de mim para que eu a beijasse; todos os dias, quando eu chegava do colégio eu a beijava várias vezes, e ela me beijava também. Entendi que eu não podia nem me aproximar, porque era um falsário! Como é que um falsário vai se aproximar de uma senhora digna de tal veneração e pela qual eu tinha tanta ternura? Saí e fiquei muito abatido.
Se não me engano, era um sábado e o Colégio São Luís já estava fechado. Então, papai iria ao colégio somente na segunda-feira. Fiquei esperando, portanto, o resto de sábado, domingo e parte da segunda-feira. Mas eu nem ousei perguntar a meu pai a que horas ele iria; fiquei quieto, colocando-me de lado como uma espécie de bicho doente e repugnante.
Imagem de Nossa Senhora Auxiliadora
No domingo de manhã, fui à Missa. A minha casa, naquele tempo, ficava muito próxima da Igreja Coração de Jesus, umas três ou quatro quadras num terreno quase inteiramente plano. Para um menino de onze, doze anos isso não é nada. Chegando à igreja, vi que haveria Missa para os alunos do Colégio Coração de Jesus. Os meninos entravam cantando e iam ocupando os lugares da nave central, enquanto que as pessoas do povo ficavam nas naves laterais. Eu estava na nave direita de quem olha para o altar-mor.
Eu via também à minha frente a linda imagem, em mármore absolutamente branco, de Nossa Senhora Auxiliadora, tendo sobre sua cabeça uma coroa não fechada e com o Menino nos braços.
Há coroas fechadas, quer dizer, têm como que gomos os quais se unem no alto, onde há uma esfera e uma cruz. Significam domínio completo, soberania, e são usadas pelos reis. As abertas, como um círculo em torno da cabeça, tendo alguns ornatos, são para os simples nobres.
A coroa de Maria Santíssima é aberta porque, em comparação com Nosso Senhor, Ela é uma súdita. Jesus é o Homem-Deus, portanto não há ninguém que se iguale a Ele.
A simbologia é muito bonita. Nossa Senhora tem o Menino no braço esquerdo, e no direito Ela segura um cetro, para dar a entender que o mando é d’Ela. O Menino está risonho, como quem está contente de ter dado o cetro para a Mãe, e Ela está olhando para os fiéis.
Salvai-me Rainha…
Em determinado momento, tive uma impressão singular, que não foi nenhum milagre: a imagem não se moveu absolutamente nada, mas pareceu-me que a Santíssima Virgem me olhava com certa pena. E instintivamente comecei a rezar a Salve Rainha, que era a oração da qual me lembrava.
Essa prece começa com “salve”, que é uma palavra latina. Salve Maria, por exemplo, quer dizer “saudada sejas, Maria!”. Para a saudação — como hoje dizemos bom-dia, boa-tarde —, antigamente se dizia “salve”.
Então Salve Regina, Mater misericordiae, quer dizer “Eu Vos saúdo Rainha, Mãe de misericórdia.” Mas eu não entendi isso; achei que “salve” significava “salvai-me”. Pensei: “Preciso de alguém que me salve desse embrulho, e vou pedir para Nossa Senhora, a Qual está como que sorrindo para mim.”
Anteriormente, eu já havia rezado algumas “Salve Rainhas”, mas nunca tinha fixado muita atenção nas palavras. Naquele apuro em que me encontrava, prestei uma atenção profunda nos termos. Então: “Salve Rainha, Mãe de misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, salve…”
À medida que eu ia rezando, pensava: “Estou precisando de Maria Santíssima, porque mamãe me abandonou, merecidamente. Ela é Mãe de misericórdia, mais ainda do que mamãe, porque é Mãe do Menino Jesus. Então Ela é indizivelmente mais perfeita do que mamãe, e onde nem mamãe tem pena — e possui razão para isso — Nossa Senhora tem compaixão. Então vou pedir para Ela.” E assim fui meditando nas palavras dessa prece.
Salve Rainha: “Compreende-se, é Mãe do Menino Jesus.”
Mãe de misericórdia: “Bem pensado, Mãe toda feita de misericórdia. Um falsário como eu precisa de misericórdia, porque se não obtiver misericórdia estou perdido, liquidado.”
Vida doçura, esperança nossa, salve: “Está vendo? Nossa Senhora é nossa vida, nossa doçura, nossa esperança. Que oração bem feita!” Assim eu rezei toda a Salve Rainha com uma emoção interior muito forte. Depois de ter rezado várias vezes, cheguei à conclusão: “Nossa Senhora vai me tirar dessa bagunça.”
Assim “começou a minha devoção a Nossa Senhora”
Na segunda-feira, ao chegar a minha casa, perguntei para o copeiro:
— Dr. João Paulo já voltou do São Luís?
Tinha ele uma voz cantante:
— Já, sim, senhor.
— Onde ele está?
— Com Dona Lucilia.
Estavam no apartamento deles, que era um prolongamento da casa. Fui para lá e encontrei os dois conversando, mas não tinham fisionomia carrancuda. Mamãe muito calma me olhou e disse:
— Filhão, venha cá e dê um abraço e um beijo em sua mãe.
Eu corri em direção a ela.
Mamãe continuou:
— Você está inocente. Seu pai foi falar com o padre, o qual mandou chamar o funcionário que passa a limpo as notas. O próprio funcionário reconheceu que a sua nota era dez e por engano ele anotou seis. Agora, você não faça mais essa bobagem de estar alterando notas; isso é muito feio.
E não falou mais em me mandar para o Caraça.
Na saída, ela me disse:
— Então, mais um beijo para mamãe.
Tirei várias vantagens desse fato. Primeira: aprendi a ter temor reverencial a mamãe. É sempre bom ter medo dos superiores. Segunda vantagem: aprendi a querê-la ainda mais, por causa da perfeição moral que eu notava nela. Terceira, a qual vale todas as vantagens da Terra e mais algumas do Céu: começou aí a minha devoção a Nossa Senhora.
(Extraído de conferência de 9/7/1994)