Capaz de dar um caráter de vil banalidade até mesmo às coisas mais sublimes, a rotina cobre as vistas do homem com uma pátina, tirando o brilho e desgastando tudo quanto lhe cerca. Entretanto, poderá ela trazer-nos algum proveito?
Caso passássemos quinze dias de nossa vida quotidiana sem que acontecesse absolutamente nada de novo, sem nenhuma notícia mais arejada e mais agradável, que efeito essa situação teria em nossa alma?
Por exemplo, de manhã vai-se à faculdade; à tarde executa-se um trabalho rotineiro; no jantar conversa-se com dois ou três amigos com quem já se esgotaram todos os assuntos. E assim transcorressem quinze dias, com perigo de se passarem mais quinze do mesmo modo, indefinidamente.
Asfixia, nostalgia de novidades, depressão, nervosismos indefinidos: efeitos da rotina
Em alguns, isso iria produzindo certa sensação de estar asfixiado pela rotina; noutros, uma nostalgia de uma boa novidade ou de uma distração, mais ou menos como uma pessoa pode ter nostalgia de uma viagem de férias durante o ano, ou de um domingo no qual a comida melhora. Quer dizer, ela sente uma espécie de necessidade tremenda de uma coisa mais gostosa para alimentar a vida, para dar coragem de aguentar a rotina.
Não havendo isso, a pessoa tem uma espécie de depressão nervosa, achando que tudo vai mal. É um “tudo vai mal” indefinido. Se lhe perguntarmos:
— Por que vai mal? Não está tudo normal?
Ela responderá:
— É, está normal, mas o senhor vê…
Ou seja, a pessoa não ousa dizer que não esteja normal, mas acha que tudo vai mal.
Depois, nervosismos indefinidos sem explicação razoável seriam a consequência final. Ela tem a sensação de que a Providência não lhe está ajudando, não está cumprindo seu papel de boa aliada. A pessoa está rezando a Nossa Senhora, mas acha que de fato Ela não está fazendo nada por si.
Então, como não acontece nada de extraordinário, a pessoa tem a sensação de estar afundando num pântano, com água já lhe chegando ao pescoço.
Por fim, sente grandes cansaços ou grandes insônias. Baixas nervosas cíclicas sem razões definidas, e uma asfixia que se traduz em ilusões como esta: “Estou em crise e não tenho mais piedade nenhuma; não sei o que acontece comigo…” É o demônio que está falando solto dentro da alma da pessoa.
Problemas nervosos e espirituais originam-se, muitas vezes, na estagnação
Outro dia, eu conversava com um rapaz que dizia notar em si uma espécie de estagnação indefinida que desordenava tudo dentro dele. Isso decorria do fato de estar numa aparente crise de imobilidade, proveniente do fato de não ter acontecido nada de novo que o alegrasse, o distraísse e quebrasse um pouquinho o peso da rotina quotidiana.
Tenho impressão de que muitos problemas nervosos e espirituais se originam desse estado que eu chamaria de estagnação, a respeito do qual farei uma pequena meditação.
Ilusão criada pela rotina
A rotina cria, facilmente, a ilusão de estarmos atolados na vida quotidiana à semelhança de um carro que não sai do lugar. É uma impressão semelhante à de uma pessoa no tempo de seus estudos.
Em minha infância, uma das sensações mais aflitivas era a da rotina e imobilidade do colégio: do primeiro ao último dia do ano, de manhã, à tarde e à noite, passava-se a vida metido nas mesmas salas, com as mesmas aulas e entre os mesmos colegas.
Não me dava conta de que, a cada ano, o colégio recebia uma turma nova e expelia outra. Portanto, continuamente, as coisas andavam.
O medo da instabilidade leva certas pessoas a se alegrarem quando tudo corre dentro da rotina
Como pessoas de mais de 50 anos de idade consideram a perspectiva de um mês inteiro sem novidades? Muitos deles colocam sua felicidade em ver que todos os dias se repetem iguais, sem nada de novo. E, inclusive, chegam a comentar quando se encontram com outro: “Então, nada novo hoje, hein?”; sentem alívio porque não aconteceu nada novo naquele dia.
Tenho a impressão de que muitos jovens ficam extraordinariamente frenéticos, quando estão ao lado de gente assim. Um jovem, por exemplo, que está no auge da estagnação, encontra-se em sua casa e vê entrar um tio sossegado, com aquela tosse quinquagenária, de um homem que atingiu todas as tranquilidades: “Hô, hô”. Então, o rapaz lhe pergunta:
— Como vai o dia?
E o tio responde:
— Ah! tudo está regular, graças a Deus.
— Então, nada de novo?
— Não. E na casa de vocês também, não é?
Daí a pouco, na hora certa, o tio se despede do mesmo jeito de sempre e sai. E aquela vida continua.
Muitos dos que estão neste auditório já tiveram experiência de ambientes onde isso é assim.
Tais pessoas são desse modo porque estão colocadas — por uns tantos defeitos morais, mas também por um lado sensato — diante da ideia de que a vida quotidiana pode ter uma porção de atrapalhações, que o equilíbrio da existência diária é muito frágil e facilmente dá em desastre. De maneira que quando não cai a casa, não quebra uma perna, não perde a fortuna, não aparece um câncer na ponta do nariz ou qualquer outra catástrofe, já está bom, e, então, respiram aliviadas.
Com efeito, a sensação da contínua possibilidade de um risco dá à pessoa uma espécie de alívio pelo fato de que o perigo não está acontecendo. Isso faz com que ela ache gostosa aquela vida.
Dou um exemplo. Imaginemos um indivíduo que vai para uma guerrilha urbana. Ele passa quinze dias no meio do tiroteio e acha aquilo prodigiosamente divertido. Mas, no décimo sexto dia, ele começa a julgar que a coisa está sem graça e tem saudades de sua própria casa. No vigésimo dia — tendo já visto tanta gente morrer perto dele, sentido tanta fome, sofrido tantas enxaquecas, nevralgias e outras coisas — ele resolve voltar para sua casa. E, vendo sua casinha limpinha, arrumadinha, tudo direitinho, pensa: “Ufa, o lar! Ó doce lar!” E se mete dentro daquelas delícias.
Então, aquela regularidade que parecia detestável, debaixo de certo ponto de vista começa a se mostrar deleitável. Percebe-se, portanto, que a geração antiga tinha uma noção muito clara dos mil perigos que a vida oferece, e de quanto é invejável o homem que não passa por nenhum desses riscos.
Para as gerações mais jovens, a normalidade consiste em viver de surpresas deliciosas
Por outro lado, os mais jovens julgam que a existência normal é aquela decorrida com frequentes sensações deliciosas, à maneira de surpresas; e que é para a surpresa deliciosa que se vive. E tal será que aconteça uma anormalidade! A anormalidade é igual à catástrofe, à desventura, e não deve acontecer nunca. Também quando ela acontece para um indivíduo, ele julga que é melhor estourar de uma vez.
Outro dia, fui jantar num restaurante e, ao entrar, vi um homem numa cadeira de rodas; mas, por discrição, não lhe dirigi o olhar. A certa altura, olhei meio furtivamente para ele, para não chamar atenção, e notei apenas que era um homem ainda bem moço. Depois de algum tempo, quando ele foi embora, disseram-me:
— Você sabe quem é esse homem que saiu de cadeira de rodas?
— Não.
— É um homem que foi discutir com um operário na fábrica de seu pai, e o operário deu-lhe um tiro na espinha. E ele ficou paralítico, quase completamente.
Se perguntarmos para um jovem o que ele faria se lhe acontecesse uma coisa dessas, a reposta explícita seria: “Nem sei.” E a reposta implícita: “O senhor está pensando que isso pode me acontecer? A mim isso não acontece. Há comigo qualquer coisa misteriosa, por onde o que pode suceder com os outros, comigo não acontece nunca. E se acontecer eu fico louco, estouro; é melhor que rebente de uma vez, porque não se vive assim.”
O homem precisa ter nervos e estrutura mental para aceitar tudo quanto a vida lhe traga
Esse é o caminho do seu pensamento, o qual é criado pelo otimismo hollywoodiano, que faz residir na boa surpresa o alento da vida.
Antigamente, houve uma pessoa que se queixou, dizendo-me:
— Você desanima as pessoas. Porque elas estão cheias de aborrecimentos, e lhe pedem uma notícia do apostolado; em vez de dar uma notícia qualquer que as anime, você apresenta uma notícia que desanima.
Eu caí de várias nuvens, porque tenho que dar uma notícia verdadeira. Se alguém me pede uma notícia, não posso contar uma mentira para divertir uma pessoa cansada. Além disso, o homem tem que aguentar todos os infortúnios da vida, sejam quais forem. Não deve querer ser servido por Deus com pequenos docinhos de vez em quando, como se faz com um gatinho de estimação ao qual se dá às vezes uma tijelinha de leite para ele lamber. Mas o homem precisa ter nervos e estrutura mental para aceitar o que a vida traz. Assim é o varão.
Esse otimismo hollywoodiano cria o contrário do varão. Causa esse estado depressivo originado, tantas vezes, da normalidade da vida.
A verdadeira posição católica diante da rotina: ter a nostalgia do heroísmo
O que um católico deve criticar de uma e outra posição? Somos favoráveis à rotina inteiramente estagnada de tantos de nossos maiores? Não. Qual a verdadeira posição católica?
A rotina cria a ilusão de estarmos atolados na vida quotidiana à semelhança de um carro que não sai do lugar. Por outro lado, os mais jovens julgam que a existência normal é aquela decorrida com frequentes sensações deliciosas, à maneira de surpresas.
A vida traz de tudo, numa ordem indefinida: tanto as surpresas mais agradáveis, como também as mais desagradáveis. O grande heroísmo da vida consiste em entender que isso é assim por desígnio de Deus.
A Providência dispõe todas as coisas para o bem de cada um de nós. De maneira tal que quando estamos atacados pela rotina — digamos, enferrujados pela rotina —, o que a Providência quer de nós? Não que tenhamos pavor do que pode acontecer, mas vivamos com seriedade o momento que passa, oferecendo a Deus a monotonia da vida de todos os dias; sentindo essa monotonia, mas oferecendo-a a Nossa Senhora, pedindo a Ela, inclusive, o fim dessa monotonia, dispostos, entretanto, a aguentá-la. Esse é o primeiro dado da posição católica.
Segundo: agradecer que essa monotonia seja tão diferente da tragédia. Visitem os hospitais! Quantos rapazes existem ali doentes — da idade dos que estão neste auditório —, e alguns para a vida inteira! Que felicidade não estar nesse caso! Como essa tragédia pode acontecer a qualquer um! Então, devemos ter seriedade de espírito e agradecer a Maria Santíssima de não sofrer essa tragédia.
Mais ainda: dentro da monotonia da vida quotidiana, preparar-se para o heroísmo, ter avidez de heroísmo. Como se consegue isso? A monotonia, num espírito nobre, deve, de fato, causar certa falta de ar, dar aspiração para o que é nobre, para o que é grande. Mas não é o prazer grande que se deve procurar. É o dever grande. Precisamos ter, na monotonia, a nostalgia do heroísmo, não da pagodeira.
Trata-se de um desejo paciente, o que não quer dizer um desejo indolente. Pode-se dizer um desejo ardente, mas temperante, sem desordem. Ou seja, se Deus quiser demorar em nos atender, seja feita a vontade d’Ele. Eu peço que seja logo, mas espero o tempo que Ele queira.
A aceitação da rotina coopera na formação do caráter
Aceitar a rotina é um dos mais duros sacrifícios que o homem pode fazer. Porém, esta aceitação fortalece a vontade e coopera na formação do caráter.
A este respeito, é conhecido o que se passou com Santo Inácio de Loyola. Defendendo a Espanha de um ataque das tropas francesas na cidade de Pamplona, ele levou uma bala de canhão na perna, ferindo-a gravemente em vários pontos.
Trataram-no com a Medicina daquele tempo — ainda muito inicial —, e depois o levaram para o castelo do pai, na Navarra, a fim de recuperar-se.
Permaneceu deitado neste austero castelo medieval sem ter o que fazer. Então, mandou que lhe trouxessem livros de cavalaria. Leu todos os que havia na biblioteca do castelo, porém, ainda devia permanecer naquela rotina, o tempo inteiro deitado com a perna esticada.
Quando já não aguentava mais de aborrecimento e de tédio, ele se resignou a ler também vidas de santos, pois não tinha outra coisa para fazer.
Aí, então, o Espírito Santo falou-lhe de dentro da rotina, sugerindo-lhe um pensamento santo: “Se estes fizeram tantas coisas e ficaram santos, por que eu não farei o mesmo?” E, como fruto da rotina aceita sem revolta, resolveu abraçar a santidade.
Às vezes, é mais heroico esperar do que alcançar o que se deseja
Quanto mais a Providência tarda em nos conceder um dom, tanto mais magnífico este será.
Tomemos o exemplo de São Joaquim e Santa Ana que esperaram até avançada idade para ter um filho. Mas também, quem nasceu? Nossa Senhora!
Ou, então, Santo Elias que, quando foi pedir a chuva, subiu ao alto do Monte Carmelo e encontrou o céu azul, com o aspecto oposto do que ele pedia. Porém, de repente, veio uma pequenina nuvem que se transformou em chuva caudalosa.
Quer dizer, as longas esperas constituem o prelúdio de grandes dons de Deus.
Devemos, pois, esperar, certos de que, às vezes, é mais heroico esperar do que alcançar o que se deseja.
(Extraído de conferências de 23/3/1970, 5/12/1990 e 24/2/1991)