sábado, noviembre 23, 2024

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Honra, louvor e glória

A noção de honra sublimou-se na Idade Média, tempo em que o homem amava a vida cerimoniosa e hierárquica. Naquele período, as homenagens prestadas às autoridades civis e eclesiásticas davam à vida cotidiana um especial sabor.

Na Idade Média as coisas essenciais estiveram habitualmente em ordem, eu diria até, na melhor ordem que jamais se realizou na Terra.

O que caracterizava a vida da Idade Média era uma ideia fundamental a respeito da honra. Tal ideia, embora não fosse contrária àquela que tinham os romanos, os gregos e os povos antigos em geral, era muito mais rica.

A noção de honra e de glória na época dos romanos

Os romanos, de vez em quando, prestavam grandes honras às pessoas. Por exemplo, é sabido que em Roma, quando um general regressava vencedor de uma guerra, fazia-se um cortejo durante o qual a população o aclamava. Fumegavam piras odoríferas, enquanto o oficial ia receber um galardão do imperador; às vezes, mas era raro, o imperador assistia pessoalmente ao desfile de seu general vencedor.

Porém, isto os atingia nas grandes situações, nos grandes feitos, mas impregnava muito menos a vida quotidiana.

O homem medieval amava a vida cerimoniosa e hierárquica

Na Idade Média, porém, a existência era fundamentalmente cerimoniosa.

Cada indivíduo que, por algum título, possuía uma virtude mais eminente, ou uma situação mais influente, tinha direito a um lugar especial. Não se compreendia, por exemplo, que não se fizesse uma hierarquia ao dispor as pessoas em torno da mesa de refeições; tudo se organizava com base nas precedências.

Fotos: G. Kralj; V. Toniolo.

Enquanto os romanos se tratavam por tu, na Idade Média floresceram os títulos: Vossa Senhoria, Vossa Magnificência, Vossa Excelência, Vossa Alteza, Vossa Majestade etc.; e entre as Altezas e as Majestades: Alteza Imperial, Alteza Real, Majestade Imperial, Majestade Real, Majestade Apostólica, Majestade Fidelíssima, Majestade Católica etc.

Mais ou menos como numa árvore cujos galhos se desdobram e formam uma galharia, o cerimonial medieval foi deitando uma galharia magnífica de honrarias sucessivas, que tomavam em consideração a situação ou a virtude de cada pessoa, concedendo-lhe um título; e a este título correspondia uma etiqueta, quer dizer, um conjunto de precedências e de praxes, que marcavam a vida corrente.

O valor das honrarias no mundo germânico

Em certos países, sobretudo nos de língua germânica, se conserva a ideia de que, sendo o Estado superior aos particulares, a função pública é em si mesma mais nobre do que a função particular equivalente. Assim, ser servente do Estado é mais do que ser servente de um particular, desde que esse particular não seja muitíssimo eminente e, de algum modo, represente o Estado.

Mesmo em nossa época, em alguns países, por exemplo na Alemanha, usam-se títulos para pessoas que exerciam as funções públicas mais modestas. Um amigo meu, que esteve nesse país, viu um envelope endereçado assim: “Senhora viúva do carteiro aposentado, Fulano de Tal.” Ser carteiro é uma função do Estado; e o carteiro aposentado será mantido pelo Estado a vida inteira, em vista dos anos em que ele trabalhou honestamente; portanto, é um homem meio premiado pelo Estado.

Quer dizer, a mais miúda distinção, a menor honraria, é trabalhada como se fosse uma pequena joia, de modo análogo a quem tomasse um brilhantinho, o burilasse ou lapidasse, o inserisse num anelzinho de ouro fininho e o desse a alguém que não tem joia. Esse anelzinho é um adorno que, na ordem das joias, se assemelha ao miosótis na ordem das flores, que foi criado por Deus, tem seu encanto e sua pequena graça.

A diferença entre etiqueta e protocolo

Isso tudo correspondia à ideia das preeminências, do protocolo e da etiqueta, e tinha no fundo a noção de honra. Protocolo, etiqueta, preeminência e honra são termos conexos.

O protocolo é o tratamento que se dá a uma pessoa eminente, que tem direito a um trato especial. Etiqueta é uma coisa um pouco mais modesta; abrange o protocolo, mas se aplica também aos pequenos. Se eu receber em minha casa, por exemplo, o prefeito de uma cidadezinha “X”, é de acordo com a etiqueta que se dê precedência a ele; não protocolo, e sim etiqueta. A etiqueta é o gênero; o protocolo é a etiqueta dos grandes, embora também se diga etiqueta para os grandes.

O protocolo é o tratamento que se dá a uma pessoa eminente, que tem direito a um trato especial. Etiqueta é uma coisa um pouco mais modesta; abrange o protocolo, mas se aplica também aos pequenos.

Fotos: G. Kralj; V. Toniolo.
De acordo com o protocolo da época, Luís XIV recebe o embaixador da Pérsia – Galeria dos Espelhos, Palácio de Versailles (Paris).

E o que é cerimonial? Cerimonial e protocolo são termos conexos, equivalentes um ao outro. De alto a baixo na escala social, todos os tratos são embebidos disso, e na Idade Média, como afirmei, chegava ao auge.

Prestar honras a cada autoridade de acordo com a dignidade que lhe é própria

Por exemplo, estavam especificadas, pelas praxes e etiquetas, quais eram as pessoas a quem o burgomestre e as principais autoridades municipais deveriam receber do lado de fora da cidade, quando fossem passar em viagem pelo lugar. E também a que distâncias deveriam aguardar. Um rei se espera a tantas léguas da cidade, um príncipe a uma distância menor; o senhor feudal da região a uma distância ainda menor, mas do lado de fora da cidade. Sendo uma autoridade menor, espera-se dentro da cidade. E se formava, no interior da cidade, um cortejo especial para o imperador, para o rei, para o príncipe etc.; as pessoas que deveriam participar do cortejo já haviam sido designadas.

Na vida quotidiana, estava estabelecido como cada um devia ser tratado. Tudo isso formava um conjunto de honras. Daí vem a expressão “prestar honras”, que é empregada até hoje. Às vezes se lê nos jornais: “Um batalhão prestou honras militares a tal autoridade que chegou”, quer dizer, os militares a homenagearam.

Quando um bispo fazia visita pastoral a uma cidade, ele era objeto de todas as honras. À sua chegada, os sinos tocavam, o vigário o recebia e todos o acompanhavam até a catedral.

Fotos: G. Kralj; V. Toniolo.
O Imperador Constantino conduz o cavalo do Papa São Silvestre – Museu Vaticano, Roma.

Esse trato tinha algo de curioso, do qual cheguei a observar reminiscências: quando se encontravam duas pessoas desiguais, uma muito superior à outra, cada uma tratava a outra conservando-se na sua respectiva posição, mas respeitando-a como o faria alguém da estaca zero.

Por exemplo, Fleming, um médico provecto, foi grandíssimo no gênero dele. Suponhamos que ele encontrasse um cientista, também médico, que tivesse feito uma pequena descoberta sobre o modo de aplicar a penicilina num gênero especifico de doença. Fleming é muito superior, porque descobriu a penicilina. O médico menor deveria tratar Fleming com toda a reverência: é o grande Fleming! Mas Fleming, em vez de tratá-lo com pouco caso porque era inferior a ele, deveria dizer: “Quanto gosto eu tenho em conhecer uma notabilidade como o senhor!”, como alguém que não fosse médico trataria esse pequeno médico.

Quer dizer, Fleming colocar-se-ia quase na estaca zero para homenagear esse menor. Daí surge um trato delicioso, porque era agradável ver o menor homenagear Fleming, mas era delicioso ver Fleming prestar esta homenagem a quem era menor do que ele. Formava-se propriamente um sorriso de parte a parte e uma douceur de vivre [doçura de viver], que dava à vida sua significação, seu atrativo, seu encanto.

Homenagens prestadas às autoridades civis e eclesiásticas

Quando o rei ia a uma cidade, ele era servido à mesa, sendo copeiros o burgomestre e os principais funcionários da municipalidade.

Alguém dirá: “Mas diretamente como copeiros? Não é demais isso? Um prefeito de cidade pode ser equiparado a um copeiro?” A resposta é: Não é desonroso ser copeiro. Nada é desonroso a não ser o pecado. Trata-se de quantidades maiores ou menores de honra, e para homenagear um grande rei não é demais que o prefeito seja copeiro. E, depois, o copeiro do prefeito se sente honrado em servir aquele que é o copeiro do rei. Há essas reversibilidades e regras de três, que exprimem como são os molejos do convívio social.

Isso que se dava na sociedade civil, ocorria também na sociedade eclesiástica. Por exemplo, quando um bispo fazia uma visita pastoral a uma cidade, ele era objeto de todas as honras. À sua chegada, os sinos tocavam, o vigário o recebia com o pálio em presença de todo o clero; as associações religiosas, cantando, acompanhavam o bispo até a catedral, ou a paróquia, aonde ele se dirigia à capela do Santíssimo para rezar e, se fosse um homem bem devoto de Nossa Senhora, visitava a capela ou o altar da Santíssima Virgem; depois de tudo, ia para a residência a fim de descansar.

A beleza de uma sociedade com honra

Em nossos dias, os últimos restos de desigualdade e de honra que existiam vão desaparecendo; e nós caímos num trato que torna a vida insípida, desinteressante e dura.

Então, para entendermos bem que falta isto faz, devemos começar por afastar a ideia de que essas honras não têm fundamento racional; que elas não são senão pompa e fumaça, vaidade e aflição de espírito; e que o bonito é uma sociedade sem honras.

É o contrário: o bonito é uma sociedade com honras. São Tomás de Aquino chega a dizer que o inferior atinge sua perfeição obedecendo e prestando honra a seu superior. E, portanto, o sistema de um homem crescer é obedecer e respeitar; o contrário do revolucionário, em que a maneira de o indivíduo se engrandecer é enfunar-se e olhar os outros de cima para baixo.

Defender a doutrina através de um raciocínio bem feito

Penetremos agora no campo do raciocínio.

Com o que explicarei a seguir, pode-se justificar aos olhos de qualquer pessoa aquilo que ninguém justifica. De fato, praticamente ninguém defende o protocolo, a reverência ou a cortesia, porque não os ama; e os poucos que os amam não sabem como se pode defendê-los racionalmente.

O conceito de honra se fundamenta no conceito de excelência: tributamos honra à pessoa excelente. Logo, honra é o sentimento, a atitude merecida pela pessoa excelente.

Fotos: G. Kralj; V. Toniolo.

Fotos: G. Kralj; V. Toniolo.
Acima, Luís XV, por Carle van Loo (Museu de Dijon, França); ao lado, nobres do Ancien Régime (Museu Hermitage, São Petersburgo).

Em primeiro lugar, precisamos saber justificar de tal modo que tenhamos uma convicção profunda, porque, assim como para suportar coisas pesadas é preciso usar pregos fortes, somente a convicção profunda dá base às dedicações profundas.

A honra se fundamenta na excelência

O conceito de honra se fundamenta, no fundo, no conceito de excelência. Mas, como hoje em dia o conceito de excelência não é claro, comecemos por explicá-lo.

Dou um exemplo prático: roupa lavada. Há certas roupas lavadas que, ao olhá-las, se diz: “estão limpas”. Mas existem outras tão bem lavadas, que se afirma: “estão esplêndidas”. Essas últimas foram lavadas de um modo excelente, enquanto as primeiras foram bem lavadas. Qual a diferença entre o excelente e o bom?

A roupa excelentemente lavada é aquela da qual tudo quanto é extrínseco, o resíduo, ainda o mais insignificante, de pó e de sujeira do ambiente foi tirado, de tal maneira que desse resíduo não resta nada ou como que nada. E só se consegue da roupa essa limpeza excelente, por meio de um grande esforço. A lavadeira toma ainda o cuidado de acentuar o aspecto da limpeza, para que não só a roupa esteja limpíssima, mas possua o deleitável do limpo, tornando-o muito evidente. Então, lava com uma pequena dose de anil, de maneira que a roupa bem limpa fica vagamente azulada. E põe um pouquinho de goma, para dar a impressão de que o tecido está novo, ainda na sua consistência primeira. Assim, o tecido limpíssimo, até um pouquinho anilado e engomado, dá a evidência da limpeza. Está, portanto, limpo de um modo excelente.

Ora, e a roupa lavada apenas normalmente, contém sujeira, ou não? Porque, se contém sujeira, como chamá-la de limpa? Se não contém, como não é excelente? No que consiste esse estado entre o sujo e o excelente, que se designa de normal?

Há um resíduo qualquer de poeira, de impureza, que pode ficar numa roupa apesar de normalmente lavada; é algo tão pequeno que não atinge o corpo em nada. De outro lado, esse resíduo é tão minúsculo que a pessoa não percebe; é, portanto, como que não existente. E para o comum das pessoas, o normal dessa limpeza é o comum da vida. Neste vale de lágrimas, limpo é isto. Não é sujo. O outro conceito excelente de limpeza é raro, pouco comum. A regra normal das coisas não é de ser excelente, mas de ser boa.

Então, o insuficiente merece censura, o normal aprovação, o excelente honra. Aqui nasce o conceito de honra.

Diferença entre uma coisa boa e uma excelente

Após exemplificar e, como que, pegar o conceito com a mão para explicar bem aquilo sobre o que falo, vou dar o conceito teórico de excelência.

O bom é aquilo que tem todas as qualidades próprias à sua natureza. O excelente é o que tem as qualidades próprias à sua natureza bifurcadas: as indispensáveis e as que lhe são próprias, embora não sejam indispensáveis; e em grau alto, não num grau comum.

Por exemplo, o microfone diante do qual estou falando. O próprio a este objeto é que se baseie numa haste, porque se estiver no chão ele não pega o som tão bem quanto colocado diante de minha boca. Ele é niquelado, limpo; é um objeto que, dentro das coisas mecânicas, está bem e merece uma aprovação.

Mas seria possível fazer esta coluna em forma de uma coluneta românica, dórica, jônica, flamboyante; ou em forma de longa e esguia serpente dourada, contendo na boca alguma coisa que servisse de microfone; ou então um peixe no alto da coluna. Poder-se-ia transformar isso numa obra de arte, que seria um microfone excelente. Este que está aqui é um microfone decente.

O que distingue uma coisa da outra? Este possui as qualidades necessárias ao microfone. O outro teria inúmeras qualidades que não são necessárias, mas está na natureza de um microfone poder possuí-las. Não está na natureza de um pneumático ter a forma de uma serpente, porque não funcionaria. Mas está na natureza de um microfone poder ter a forma de uma serpente, esguia, uma serpente do Nilo, que se ergue, elegante. Então, o microfone excelente é o que possui, além do que lhe é normal e essencial, uma porção de qualidades que sua natureza comporte, embora não sejam indispensáveis; e tem essas qualidades de um modo elevado, incomum, insigne, invulgar.

Como surgiu o tratamento de “Vossa Excelência”

Daí surge o tratamento de “Vossa Excelência”, engendrado pela Civilização Cristã para quem, seja pela situação que ocupam ou por uma respeitabilidade pessoal especial, merecem ser tratados com deferência. Por quê? Porque são excelentes.

Então, uma pessoa que ocupa determinada situação na Igreja ou no Estado deve ser chamada de Vossa Excelência. É uma situação altíssima? Não, porque a Excelência não é a Majestade. Majes vem de maius, e quer dizer mais: aquele que é mais. Não é a Alteza, porque não é tanto que mereça esse tratamento. É a excelência dentro do vasto mundo dos excelentes.

A um bispo, por exemplo, se chama Vossa Excelência. Porque a condição de bispo é uma condição excelente. Como autoridade espiritual, ele representa a Deus. Por sua pessoa, da qual se deve presumir que é excelente em razão do cargo, ele também merece ser chamado de Excelência. Resultado, não se deve dizer a um bispo “o senhor” e menos ainda “você”. Ele é Excelência.

Também para uma autoridade do Estado, porque esta representa a Deus; ainda quando é laico, o Estado representa a Deus. O poder público é exercido em nome de Deus, qualquer que seja a forma de governo. E por respeito a Deus, a Quem se obedece obedecendo ao Estado, deve-se dizer a um governador, a um deputado, a um senador: Vossa Excelência.

No meu tempo da Faculdade de Direito — quer como aluno, quer depois como professor —, todos os professores eram tratados de Vossa Excelência. Porque a posição de professor é digna; e a daquele que forma professores é excelente. Se uma coisa é boa, formar quem faz a coisa boa é excelente. Então, é justo que o professor universitário seja tratado de Excelência.

Chegamos, então, ao fato concreto de que tributamos honra à pessoa excelente. O que é honra? É o sentimento, a atitude merecida pela pessoa excelente.

Continua no próximo número…

(Extraído de conferência de 15/2/1980)

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