A sensibilidade exerce um papel fundamental na formação do pensamento humano. A fim de analisar com profundidade este fenômeno, Dr. Plinio utiliza-se da “teoria das duas cabeças”: uma classificação que não corresponde às divisões clássicas de consciente e subconsciente, de corpo e alma, mas que se ajusta a todas elas.
Existe no espírito humano uma ordem primeira, profunda e fundamental, pela qual a inteligência, pelos seus pressupostos e exigências mais profundas, tem a tendência a dar valor aos dados dos sentidos, admitindo-os como verdadeiros. Sobretudo dar valor em relação ao mais cognoscitivo de todos os sentidos, que é a vista. A tendência do homem para tomar as coisas como ele as vê é enorme.
Em virtude dessa tendência, quando o homem percebe existir algum conflito entre aquilo que ele vê e aquilo que a inteligência lhe apresenta, cria-se nele uma espécie de situação dolorosa, uma como que dilaceração interna. O exemplo mais banal seria o do indivíduo que coloca um bastão dentro d’água e tem a visão de que o bastão está quebrado. Na realidade, ele só consegue alguma paz para sua alma quando, passando a mão no bastão, percebe, ao menos pela retificação de um outro sentido, que o bastão não se quebrou. Então, um outro sentido depondo a favor da inteligência lhe dá um pouco de apaziguamento. Depois a inteligência descobre a razão e, então, se tranquiliza. Mas se estivesse ante um conflito inexplicável, diante dos dados apresentados pelos sentidos e dos dados racionais, ele teria a sensação de estar voltado contra si mesmo, sofrendo a consequência anunciada por Nosso Senhor: “Todo reino dividido contra si mesmo perecerá” (Mt 12, 25).
A noção de cogitativa e estimativa
Em nossos estudos, estamos vendo que tudo quanto se passa no animal é como que uma imagem do processo intelectual. Portanto, também no ser humano, na sua zona animal, ocorre algo de análogo ao processo intelectual do homem.
Poderíamos dizer que os dados fornecidos pelos sentidos são encaminhados para algo que se chama o senso comum, que é um sentido único que coordena todas as sensações de maneira a formar com elas um todo. Essa formação de um todo é algo de arquitetônico que já tem em si alguma coisa de sapiencial. O dado fornecido pelo sentido único é utilizado pela estimativa, por meio de uma série de correlações, de comparações, de diferenciações, por onde aquela nota única obtida pelo senso comum é susceptível de um enriquecimento extrínseco indispensável, através de uma série de contrastes e semelhanças. A faculdade que faz isso é, no homem, a cogitativa, e, no animal, a estimativa. É a partir dessa estimativa que o animal se orienta e age.
Isto é extraordinariamente parecido com o processo mental, porque se trata de ver como as coisas se entendem no ser, e depois formar uma ideia, uma noção do ser. Formada essa noção, deve-se diferenciá-la das outras, isto é, definir num sentido e estabelecer os limites da diretriz e uma atitude. De maneira que o ciclo, por assim dizer, mental do animal é a imagem do ciclo mental do próprio homem.
A nota comum a ser trabalhada pela inteligência
Isso mostra que o homem, na sua vida intelectual, está constantemente utilizando dados que lhe são fornecidos não só pelos sentidos, como se costuma dizer, mas por esse jogo. Quando procuro entender uma cadeira ou um aparelho de rádio que me fornece sons, não estou apenas utilizando isso e fazendo uma ideia, mas usando esses dados sensitivos que se orientam para uma nota comum sobre a qual, mais especialmente, a minha inteligência vai se debruçar para fazer uma imagem do conjunto.
De maneira que o objeto próprio da minha inteligência, analisando os dados dos sentidos, não é tanto esses dados, mas a nota comum fornecida pelo senso comum, que liga os dados e os apresenta como que já meio preparados, em sua própria animalidade, para a formação da noção da coisa.
As figuras, imagens e fantasias
Quando eu faço as comparações de contrastes e analogias, e até quando crio algo com a inteligência, estou empregando outro equipamento sensorial e fisiológico que o animal também possui, quando tem imagem e fantasia. Uma fantasia que seria mais ou menos adaptada pelo temperamento e individualidade do animal às coisas que ele viu. Em cada passo de meu processo puramente de alma, estou aplicando mecanismos que me são fornecidos por uma elaboração paralela de figuras, imagens e fantasia.
Isso me faz compreender melhor a riqueza e a simultaneidade do operar humano dentro de mim mesmo, e me faz compreender também o seu termo final.
O que são a primeira e a segunda cabeças?
Esta classificação não corresponde às divisões clássicas de consciente e subconsciente, de corpo e alma, mas se ajusta a todas elas.
Em cada passo de meu processo puramente de alma, estou aplicando mecanismos fornecidos por uma elaboração paralela de figuras, imagens e fantasia. Isso me faz compreender melhor a riqueza e a simultaneidade do operar humano dentro de mim mesmo, e também o seu termo final.
O que chamamos de “primeira cabeça” corresponde à parte do conhecimento e da ação do homem, naquilo que ele tem de comum com o anjo. Enquanto que a “segunda cabeça” corresponderia àquilo que o homem tem de comum com o conhecimento, com o instinto do animal.
Portanto, antes de mais nada, é interessante vermos que diferença existe entre o conhecimento do anjo e o conhecimento humano.
O anjo é um ser cognoscente e voltado sobre si mesmo, de tal maneira que ele não precisa de nenhum objeto externo para conhecer. Ele vê a si mesmo e, em si, vê tudo, inclusive as coisas materiais. Tudo que Deus faz passa pelo conhecimento e pela própria natureza do anjo. De tal maneira que se a Providência, por exemplo, move uma garrafa aqui na Terra, ou permite que um homem a mova, essa ação, antes de chegar à garrafa passou pela inteligência do anjo. O anjo, portanto, vê tudo dentro de si.
O homem, não. Ele é como um ser voltado para fora e que pode ver tudo menos a si mesmo. De modo que só pode ter conhecimento das coisas que estão fora dele. Ora, o “fora dele” aqui precisa ser entendido no sentido de fora do conhecimento como tal, não fora do corpo humano. Ele pode perceber um ato de vontade nas suas consequências ou uma manifestação interna da fantasia. Mas sempre voltado para fora do conhecimento. E mesmo aquilo que diz respeito ao conhecimento, ele não vê em si mesmo, mas nas suas consequências. Se eu posso conhecer, por exemplo, qual é o meu feitio de raciocinar, não é por uma visão direta da minha alma, da minha inteligência. Mas eu vejo pelas manifestações dessa inteligência, portanto, nas suas consequências. Essa é a diferença essencial entre o conhecimento humano e o conhecimento angélico.
Depois de termos visto o que o homem tem de comum e de diferente com o anjo, vejamos o que o homem tem de comum com o animal.
O homem tem de comum com o animal todas as tendências de ordem meramente sensitiva. Mas existe uma grande diferença entre ambos. O princípio que informa toda essa ação sensitiva – portanto animal – do homem, é de ordem racional. De tal modo que o homem sente, vê e ouve como o animal, mas as ações do sentir, do ver e ouvir do homem são informadas pelo princípio racional. Aquilo que no animal se faz por mero instinto, que é uma força cega, realiza-se no homem por um princípio racional, vem embebido de coerência, iluminado pela luz de natureza espiritual.
Isso tem como consequência que nós não podemos fazer uma divisão absoluta do homem, criando um hiato entre a natureza racional e a natureza animal. Porque a natureza espiritual do homem está toda embebida na natureza animal. E também a natureza animal está de tal modo unida à racionalidade que, aquilo que no homem é mero instinto já vem todo cheio e denso de racionalidade. Daí existir muito nitidamente os dois princípios: o homem enquanto anjo e o homem enquanto animal, sem que seja apenas anjo, mas semelhante ao anjo, sem que seja animal, porque só tem uma semelhança com o animal.
Tudo isso não impede que se possa legitimamente fazer aquela divisão de que nós falamos de início: “primeira cabeça” é a consideração do homem naquilo que ele tem de comum com o anjo, e “segunda cabeça” naquilo que ele possui de comum com o animal. O erro de Descartes consistiu em querer cortar as duas coisas: um homem puramente anjo.
Por que se emprega aqui a palavra ”cabeça‘?
Com a palavra “cabeça” queremos indicar que cada um desses modos de funcionar do homem é tão complexo, que poderia ser considerado quase como um homem todo. Quando há uma predominância do angélico, é o homem todo que está funcionando. Do outro lado acontece a mesma coisa, quando predomina a parte animal, há certo influxo animal muito nítido, mas é o homem todo que está funcionando.
O modo próprio de funcionar da primeira e da segunda cabeça
A “primeira cabeça” funciona, sobretudo, em função do “logo” e do “portanto”. Quer dizer, ela raciocina: põe as premissas e daí tira as conclusões. Isso tem certa semelhança com a intuição, a visão angélica.
Como consequência, o próprio da “primeira cabeça” é ter visões globais, universais. Assim, a “primeira cabeça”, pelos seus silogismos, seus raciocínios, não quer chegar apenas a uma ou outra verdade, mas ela tende a uma compreensão universal, harmônica e una do universo. Isso por um fato que está impresso no fundo da natureza humana e que deveria estar, porque o homem é feito à imagem e semelhança de Deus. De modo que a “primeira cabeça” tende, antes de mais nada, para esse quadro generalíssimo da ordem do cosmos.
Por outro lado, a “segunda cabeça” tem um modo de funcionar inteiramente distinto. O próprio dela é perceber a realidade e se deixar impressionar por ela, degustá-la e viver dela. Assim, por exemplo, a pessoa que vê uma flor muito bonita tem um movimento da fantasia, de tudo quanto há de simbólico naquilo, mas de uma fantasia ao mesmo tempo cheia de racionalidade. A pessoa tem esse movimento de simpatia e de admiração pela flor, não em função de qualquer raciocínio, mas por uma ação de conaturalidade da “segunda cabeça”, da sensibilidade iluminada pela razão.
A “segunda cabeça” é dotada de uma aptidão própria para enxergar as coisas materiais. Não como um bicho, mas para vê-las naquilo que elas são à maneira de símbolos, de imagens e de semelhanças das coisas espirituais.
A “segunda cabeça” é dotada de uma aptidão própria para enxergar as coisas materiais. Não como um bicho, mas para vê-las naquilo que elas são à maneira de símbolos, de imagens e de semelhanças das coisas espirituais. Assim, ela tem essa capacidade de perceber as coisas espirituais nas materiais, e de passar das materiais para as espirituais por um modo próprio, que é o modo simbólico. Essa capacidade caracteriza muito a forma de apreensão da “segunda cabeça”; e por aí se mostra bem como a ação desta se diferencia da do bicho.
Mostra também qual é o modo pelo qual a “segunda cabeça” retém as verdades. Ela as retém como que encarnadas, presentes nos seus símbolos, e a esse título atingindo a sensibilidade do corpo e a sensibilidade da alma. O vibrar em contato com o símbolo é o vibrar com a sensibilidade da alma; entender o símbolo é, creio eu, um modo específico da “segunda cabeça” ter as suas operações intelectuais.
A ”segunda cabeça‘ toma conhecimento das manifestações da vida vegetativa do homem
A parte inferior da “segunda cabeça” sofre a repercussão das coisas que acontecem na vida meramente vegetativa. Por exemplo, a ação do calor pode provocar no homem uma reação de ordem meramente vegetativa; isso é conhecido pela parte animal do homem.
O mesmo se daria da vida vegetativa com os elementos minerais.
Evidentemente, todas essas divisões que fazemos não separam o homem em seres distintos. São apenas as várias fases do processo do conhecimento. É como a vida do pinto, que tem diversas fases, e nem por isso são vários pintos.
”Segunda cabeça‘ e luz primordial
Assim como o gato tem algo por onde ele é gato e tudo nele se passa de modo diferente do cachorro, de gato para gato, se observarmos bem, há diferenças de individualidade, uma certa nota constitutiva e distintiva que se projeta em todo esse conjunto, dando a esse operar uma nota característica e individualizante. Isso também existe em minha parte animal e condiciona todo o meu operar mental. Esta coisa animal existente em mim é algo que caminha para certo tipo de virtude, certa forma de perfeição e santidade. E a graça me é dada, já relacionada com isso.
Então, tenho a minha luz primordial1 que é algo para o que, em seus bons aspectos, todas as notas individualizantes de minha animalidade já foram orientadas e criadas. E aqui se compreende, até as últimas profundezas, o que vem a ser a luz primordial num indivíduo, numa raça etc. Compreende-se todo o plano de Deus, por meio de causas segundas, as intervenções ao criar a alma, ao criar a graça, e também o plano de Deus com a mais alta direção do mundo. Realmente a mais alta direção do mundo é a constituição interna dos seres que vão jogar no tabuleiro que Ele quer que se jogue. Temos aqui elementos muito ricos para uma boa visão do que seja a luz primordial.
O sistema de transições entre a primeira e a segunda cabeça
Tomando o caso da pessoa que vê a flor, podemos nos perguntar se nessa ação de ver e admirar a flor não haverá algo que já seja de “primeira cabeça”. De fato, se formos estudar melhor o fenômeno, veremos que nesse ato feito por pura ação de conaturalidade em relação à flor, já entra um pequeno princípio de afirmação de normas gerais, de algo abstrato. E, realmente, a noção de belo já se introduz: “há coisas belas no mundo”. Isso já é teórico, é da primeira cabeça.
E, se analisarmos bem esse fenômeno, veremos que, de fato, poderemos subir da flor até a ação puramente abstrata da “primeira cabeça”. É uma ascensão muito lenta e por degraus. Com efeito, a pessoa observará a flor, um prédio, uma catedral, uma série de coisas muito bonitas, e em cada uma delas vai se enunciando um pré-princípio teórico. Esses princípios, por uma ação que ainda está na “segunda cabeça”, constituirão aos poucos fragmentos de sistemas, não ainda com clareza do raciocínio, mas como impressões muito fortes que dominam a pessoa. Até que, num determinado dia, isso brotará na “primeira cabeça” como um verdadeiro sistema de princípios sobre o belo. Isso foi preparado por uma longa série de observações, de meditações e até de sensações que, aos poucos, foram sendo ordenadas exatamente porque a “segunda cabeça” está impregnada de racionalidade.
Então, chegamos à conclusão de que entre a primeira e a segunda cabeça existe, de fato, uma diferença muito nítida. A transição se faz por um processo muito lento, mas contínuo, como são em geral as transições de toda a Criação. Assim, o pinto ao sair do ovo realiza um ato transicional muito importante, porque era ovo e passa a ser pinto, mas para o bom observador, dentro do ovo já estava o pinto inteiro. Aquilo se foi fazendo por uma transição muito lenta, que num determinado momento eclodiu, passando para um estágio de vida superior. O mesmo se dá entre a segunda e a primeira cabeça. É uma transição muito lenta, até um momento em que aquilo se transforma na enunciação de um princípio, de uma tese da “primeira cabeça”.
Continua no próximo número.
(Extraído de Conferências de 1/12/1958, 11/12/1958 e 4/4/1963)
1) A “luz primordial”, segundo a conceitua Dr. Plinio, é a virtude dominante que uma alma é chamada a refletir, imprimindo nas demais sua tonalidade particular. Em outras palavras, seria o pórtico pelo qual uma pessoa é chamada a entrar, para depois amar todas as perfeições de Deus.