Dr. Plinio apresenta diversos exemplos cogentes, a fim de facilitar a compreensão do que é a ordem do universo; o empenho em fazer a junção do abstrato com o concreto é uma das notas características da escola de formação por ele propugnada.
Se uma pessoa não forma em si essa coragem1 capaz de se virar para qualquer lado, ela acaba se apegando enormemente a determinadas coisas; e quando um indivíduo se apega demasiadamente a algo, não é capaz de amar devidamente o todo do qual esse algo faz parte.
Cada homem vale mais que o universo material…
Imaginem uma pessoa que tenha um dedo de uma das mãos encarangado, e move todos os outros; essa mão é defeituosa. Assim é um homem apegado, que gosta de algo mais do que ele merece; ele tem caráter defeituoso. E, pelo contrário, seguindo a técnica de enfrentar a dor e de saborear o deleite de que eu tratava anteriormente, o homem está a todo momento se desencarangando, se desenferrujando. E o resultado é que ele fica com o olhar límpido para a contemplação dos conjuntos. E o senso, a capacidade de atingir o universal, nasce nele, por causa disso.
Esse universal é dentro de mim e fora de mim. São duas harmonias. Não há uma harmonia que Deus criou no universo e depois, em mim, a desarmonia. Sendo homem, sou um pequeno universo. Mas esse pequeno universo é preciso ver bem qual é o tamanho dele, porque tenho uma alma espiritual e, como qualquer homem, valho mais do que todo o universo material que Deus criou, e Ele não teria derramado uma só gota de seu Sangue infinitamente precioso para fazer bem ao universo material.
A alma de um pobre lixeiro vale muito mais do que tudo quanto Deus criou de material.
Este é o “seu” universo que eu chamo pequeno, mas que o Deus único e verdadeiro considera tão grande que Ele teria sofrido tudo, teria querido de sua Mãe que Ela sofresse tudo que sofreu somente para resgatar esse universo. Esse é o universo que eu trago dentro de mim, o universo que cada um traz dentro de si.
E esse universo é feito de harmonias pelo menos tão belas quanto as harmonias de fora. Ouvem-se lugares-comuns a respeito das galáxias, dos planetas, das flores, das abelhas etc. As pessoas se esquecem de que a alma humana tem harmonias incomparavelmente mais belas do que essas.
A alma de um pobre lixeiro, que coleta o lixo numa máquina muitas vezes malcheirosa e barulhenta, vale muito mais do que tudo quanto Deus criou de material. E eu não terei verdadeiro deleite na Terra se não sentir as minhas harmonias internas. É uma verdadeira utopia querer considerar a ordem universal, sem antes ter considerado a ordem que há em mim, o equilíbrio que pode haver em mim pela graça obtida por Nossa Senhora.
Quer dizer, a sorgente — vocábulo que não existe em português; é uma palavra italiana muito significativa, a coisa que nasce, que surge — da minha felicidade, eu devo ter em mim mesmo.
… e é como um órgão maravilhoso
Como é essa felicidade em mim mesmo? Cada pessoa é como um órgão maravilhoso com incontáveis registros, cuja música foi feita para deleitar os anjos, mais ainda Nossa Senhora, Nosso Senhor Jesus Cristo, a Santíssima Trindade!
Cada pessoa é como um órgão maravilhoso com incontáveis registros, cuja música foi feita para deleitar Jesus, Maria e a Santíssima Trindade.
E o deleite é o seguinte: cada um de nós nota em si — falarei de mim porque é o exemplo que conheço melhor — certos estados de espírito nos quais se compraz, acha agradável. Ao cabo de algum tempo, tem-se a impressão de que determinado estado de espírito, sem enfarar, saciou e já se quer outra coisa, e assim por diante. E com isto de curioso: quanto mais é intenso o estado de espírito em que a pessoa está, tanto mais o desejo de mutação custa a sobrevir; mas quando sobrevém, ele é mais forte.
E às vezes o indivíduo nem quer passar pelas etapas intermediárias e já salta para um estado de espírito bem diverso, porque viveu intensamente um estado de espírito oposto. Então a alma caminha com velocidades e passos diversos. Ela marcha de estado de espírito em estado de espírito, como um soldado que caminha até o fim do horizonte.
Às vezes, pelo contrário, efetua um salto que dá a impressão de que toma o arco-íris numa ponta e vai até a outra extremidade diretamente; é um salto como poderiam fazê-lo com suas “asas” os anjos no Céu. E muda de estado de espírito completamente; a pessoa tem a euforia do inopinado, do inesperado, do diferente e se alegra de novo. Às vezes o estado de espírito aflora de maneira que se quer conhecer cada minúcia. Outras vezes, pelo contrário, ele surge de maneira que se deseja conhecer a linha geral.
Tudo isto forma capacidades, por assim dizer — a expressão filosoficamente não é bem acertada —, experiências internas as mais mutáveis, as mais interessantes, as mais agradáveis onde um homem, que saiba sentir-se a si mesmo, consegue fazer de seu próprio interior um jardim de delícias, um pequeno presságio do Paraíso.
O apego causa frustração, a virtude traz seus deleites
Mas para tal é preciso não ser apegado. Porque se o indivíduo se deixou enganchar num apego, sucede isso de tremendo: ele se prende, se sacia, mas não solta. É o bluff da vida.
Um homem, por exemplo, está apegado ao seguinte: todos os dias de manhã, assim que acorda, ele levanta alteres. Se isto passou a ser uma coisa sem a qual não pode viver, ele dirá que é um homem realizado, mas na realidade é um frustrado.
Quando a alma atinge esse equilíbrio no desapego, desaparecem os maus humores, porque ainda que aconteçam coisas que não se quereria — como a pessoa se tornou sumamente flexível e o bom senso lhe indica o que fazer —, ela de bom grado se adapta, se ajeita, se acerta e toca a vida para a frente. Então não é como certo tipo de gente que, acontecendo uma coisa desagradável pela manhã, passa o dia inteiro de mau humor.
Uma harpa dedilhada por Deus
Lembro-me de uma pessoa dos meus tempos de congregado mariano, que me disse: “É curioso, eu estou hoje o dia todo de mau humor e com raiva de uma coisa que está me tomando por inteiro, mas esqueci-me do que é; por isso estou furioso.” Pensei: “Mas isso existe?! Como é? Então você se esqueceu e ainda está com raiva! Parece um cachorro bravo!”
Uma coisa dessas não tem propósito. E às vezes o indivíduo passa assim não um dia, mas dois ou três. Por razões de apostolado, eu tinha de conviver com ele, e como amo o convívio pacífico, cordial — não queria ver aquele homem “rosnando” o dia inteiro —, comecei a observá-lo e cheguei ao ponto de ajudá-lo a lembrar-se do que ele tinha esquecido e o que lhe dava a raiva, para desmontar a fúria dele.
Então ele desmontava a raiva e dizia-me: “Ah, muito bom! Obrigado!”, e me dava uma tapa nas costas. Era a hora de eu ficar com raiva, mas de nada adiantaria; eu tratava a questão com bonomia, com boa vontade.
Exceto o pecado e o mal, nada provoca raiva! Devemos ser flexíveis a tudo, dispostos a tudo, aceitar de bom grado tudo e ir adiante. A alma é polivalente. Esse universo interior que há nela vai tocando música, conforme o dedilhar dos acontecimentos que Deus manda ou permite. E assim nossa alma entoa o cântico da Divina Providência.
Somos uma harpa, e cada caso que sobrevenha, o qual a Providência quis ou permitiu, tira de nossa alma uma nota harmônica e, ao repousarmos à noite, teremos passado um dia de harmonias em que houve desde a serenidade esplendorosa do Tantum Ergo até o canto marcial, desde a delicadeza do minueto até uma música clássica e matemática de um Bach. Então, fazemos o Nome do Padre, rezamos a última oração e adormecemos tranquilamente.
Somos uma harpa, e cada caso que sobrevenha, o qual a Providência quis ou permitiu, tira de nossa alma uma nota harmônica.
Alguém me dirá: “Isto é muito difícil!” Respondo: “É tão difícil viver com isso que eu só conheço uma coisa mais difícil: é viver sem isso.” Porque a vida é um vale de lágrimas e temos de suportá-la. Viver sem prever os acontecimentos é um erro; é como não se deve ser!
Provém daí uma visão, uma espécie de matriz interna por onde entendemos, pelo menos experimentalmente, vivencialmente, a harmonia, causando-nos uma alegria afável, suave, forte de estar presente a tudo conforme as circunstâncias exijam, e sentir apenas os lados ordenados de nossa alma se movimentando.
Uma técnica para domar o nosso ”leão‘
Certa vez, vi uma cena que me deixou encantado num circo de cavalinhos, ao qual fui nem sei por que, sendo já homem adulto. Apareceu um pobre leão cansado e um domador. Então, aproveitei um pouco a oportunidade para ver como o domador tratava com o leão e fiquei encantadíssimo com a técnica. O leão e o domador eram “pocas2”, mas a técnica era muito bem pensada: o domador não tinha medo nem pena do leão. E, assim que o leão abria a boca, o domador metia-lhe na boca um pau comprido em cuja ponta havia um retângulo. E o leão, que estava com uma grande ferocidade, ao receber aquele golpe ficava docinho e bonzinho.
E o domador ficava prestando atenção. Se o leão voltasse a tentar qualquer coisa, a mão do domador se contraia. E quando a fera abria a boca o domador de novo lhe enfiava o pau. Assim, ele domou o leão. No fim, o domador saiu da jaula e o público bateu palmas de pé; ele possuía várias medalhas e agradecia.
Mas sobre a técnica eu pensei: “Isto é bom como modo de simbolizar o meu dever face ao mal dentro e fora de mim. Se ele começar com o primeiro rugido: Pam!”
Se o leão se enfurecesse completamente e o domador não agisse daquele modo, a fera o atacaria. Assim se passa conosco em face do pecado original.
Nós, às vezes, queremos coisas que não devemos. “Está querendo isso? Vai ter o contrário!” Agindo assim, aquilo baixa o facho e vivemos em paz. Isso faz parte do delectabile da alma. Trancada a fera, ficamos como o domador quando sai da jaula, e isso é muito agradável.
A técnica de domar leões é um bom modo de simbolizar o meu dever face ao mal dentro e fora de mim.
Então compreendemos bem a harmonia que deve haver dentro de nós. E é com essa harmonia desapegada, sem torcidas, que nas horas vagas começamos a olhar o que está fora de nós; e essa harmonia interna serve de seletivo para o que está no exterior. Quer dizer, cada um de nós tem harmonias diferentes, é feito de um determinado modo, apetece certas coisas e não outras, mas ordenadamente. Porque cada um de nós é único e inconfundível.
De que forma nasce numa criança a ideia de conjunto
Cada um, ao ver as coisas, vai gostando desta e não daquela, achando de um jeito etc. Às vezes, sentindo-se meticulosamente em consonância com uma pessoa, ou em dissonância harmônica com outra. Com isso vai-se notando aos poucos que à harmonia de dentro corresponde uma harmonia de fora, e que sou harmônico quando sei me tratar bem, quanto é harmônico o mundo exterior se sei vê-lo bem. E então vai nascendo em mim a ideia do universal, da harmonia geral, a ideia do conjunto. Por exemplo, uma criança que começa a tomar contato com as coisas da vida; em certo momento ela vai formando ideias de conjuntos, e depois a noção do todo por um processo análogo.
Se alguém colocasse nas mãos de uma criança de dois anos uma bandeja, ela de repente teria um encanto por um pormenor, pela sua alça, por exemplo, porque nesta incidiu um raio de luz. E quando sua mãe quiser tirar a bandeja de suas mãos ela chora. Se se separasse a alça da bandeja e deixasse aquela em suas mãos, a criança não teria o que reclamar; ficaria feliz com um pedaço de bandeja na mão.
A ideia de conjunto deve ser entendida e degustada. Eu abomino a degustação sem compreensão, e sou árido para a compreensão sem a degustação.
É natural, pois ela não constituiu ainda essa harmonia interna; está saboreando as primeiras sensações singelas de cada coisa. Em certo momento, o campo de suas sensações se alarga e ela quer coisas juntas, pois lhe agradam mais. A criança não deseja mais brincar com uma pérola do colar da mãe, mas com o colar inteiro. Dentro em breve, ela não quer brincar com um boneco apenas, mas manda vir mais três para se entreter com eles. E em certo momento a ideia de conjunto vai nascendo nela e a criança tem a ideia do todo.
Ideia de ordem universal acompanhada de um sentir
Com essa naturalidade, a alma que está internamente em ordem forma uma ideia da ordenação universal. Ideia que é abstrata, mas também um sentir concreto. E aqui está exatamente o que diferencia o empenho de formar de nosso Movimento e o de outras escolas. E dou razão, em parte, aos meus “enjolras3”; porque pegar um aluno e ensinar-lhe a definição de universo sem isso, é muito difícil.
Vamos defini-lo assim: O conjunto de todas as coisas que, segundo sua própria natureza, não podem ser a não ser relacionadas com outras.
O que fazer dessa definição?
Quando a pessoa tem a harmonia bem formada na alma e degusta os conjuntos, vem alguém e lhe diz: “Você está vendo o que está degustando? Basta gostar? Apenas gostar é próprio de um bicho. Você não quer entender? Note que nenhuma dessas coisas existe adequadamente sem as outras e, portanto, formam um conjunto necessário. E o conjunto, que agora você vê, é mais belo do que cada coisa.”
Nasceu, então, a ideia de conjunto, ao mesmo tempo entendida e degustada. De maneira que eu abomino a degustação sem compreensão, e sou árido para a compreensão sem degustação. As duas coisas devem vir, ora uma, ora outra, até formar a noção, ao mesmo tempo doutrinariamente irrepreensível e viva, do que é um conjunto. E assim se forma também a noção do universo.
(Extraído de conferência de 16/8/1980)
1) Lembremos que Dr. Plinio tratava, no artigo anterior, da “arte de enfrentar a dor” e de suas três regras de vida para isso: “não se deixar arrastar apavorado pelas vias da semirrealidade”, prever e enfrentar a dor; “nunca ter pena de si mesmo” e “num serviço qualquer, nunca começar pelo mais fácil”. Tudo isso ele apresentava para introduzir o assunto de como se “adquire uma noção amorosa da ordem do universo”.
2) “Poca”: palavra usada por Dr. Plinio, significando “medíocre”.
3) Denominação carinhosa com a qual Dr. Plinio se referia aos seus jovens discípulos de então, cujas deficiências se mostravam mais acentuadas que as de “geração nova”. Eram, entretanto, igualmente mais propensos ao maravilhamento e a uma maior confiança na graça divina, estando compenetrados de suas fraquezas.