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Inocência e admiração desinteressada – II

Uma pessoa perde sua inocência quando se deixa dominar pela inveja, a qual produz consequências espirituais que conduzem à Revolução. A Contra-Revolução, visando preservar a inocência e combater a inveja, deve ser, sobretudo, de índole religiosa. A Idade Média foi uma época em que a inveja não era bafejada, como o demonstram os “gisants”.

Gales foi outrora um principado, que possuía um nexo feudal com os reis da Inglaterra, mas tinha seus príncipes próprios, com sua dinastia própria. Esses príncipes tomavam posse desse pequeno território, que é Gales, permanecendo num relacionamento com o rei da Inglaterra parecido com a relação que têm os bispos com o Papa. O Papa tem plena jurisdição sobre cada fiel, mas normalmente o governo dos assuntos locais compete ao bispo.

O rei da Inglaterra tinha plena jurisdição sobre os galeses, exceto para os assuntos locais nos quais o Príncipe de Gales era ainda muito mais autônomo do que um bispo em relação ao Papa.

O senso da hierarquia e do maravilhoso nasce da inocência

Considerem Mônaco, que é um rochedo, mas com duas coisas muito preciosas, que indico na ordem inversa dos valores: um museu oceanográfico magnífico e, de outro lado — o que vale mais do que tudo —, uma pequena população habituada, desde a Idade Média, a ser um todo autônomo e sentir-se nação independente, uma pequena miniatura do universo.

Arnaud
The Emirr

Toda nação é uma miniatura do universo; Mônaco é uma miniatura das nações que são miniaturas do universo. Aquela independência de Mônaco, que ninguém jogou por terra e permanece em pé dentro do totalitarismo moderno, com seu hino, sua autoridade, seus costumes locais, suas leis, etc. tem um pitoresco extraordinário. Os monegascos respeitam o todo do qual fazem parte, com o respeito com que os membros da Commonwealth — Irlanda do Norte, Escócia, Canadá e tantos outros lugares pelo mundo afora — consideram a Rainha da Inglaterra. É uma coisa com a qual sorrimos encantados. Por quê? Porque, embora seja um pequeno país, esse estado de espírito leva todo o mundo a respeitá-lo.

O Príncipe de Mônaco domina uma área de território incomparavelmente menor do que Tóquio, por exemplo, que é a cidade — segundo me disseram — mais populosa do mundo moderno. Entretanto, se o Prefeito de Tóquio vier a São Paulo, será recebido pelo Prefeito desta última. Se chegar o Príncipe de Mônaco em Brasília, irão recepcioná-lo o Ministro do Exterior, os representantes de outras grandes autoridades, executam-se o hino monegasco, o hino brasileiro, continência da tropa, etc. Porque ele é o chefe dessa pequena unidade independente: Mônaco; se ele vier a São Paulo, será recebido pelo Governador do Estado.

Então, respeitar a grandeza até nas suas miniaturas é próprio desse senso de maravilhoso, que brota da inocência.

Tomemos, por exemplo, a República de San Marino, encravada na Itália. Ela é muito menor do que uma série de prefeituras da Itália; Milão, por exemplo. Mas é independente; o presidente da República de San Marino, sendo chefe de Estado, representa algo que vai ser tratado com respeito enorme, porque ele é o supremo de uma pequena unidade autônoma.

Eu poderia falar de Luxemburgo, da República de Andorra, do Principado de Liechtenstein, etc. Havia pelo mundo afora toda uma galáxia de pequenas entidades análogas que a Revolução foi absorvendo. Era o senso da hierarquia e do maravilhoso, dobrando-se até diante de uma coisa pequena, mas encantadora, e se extasiando, como um homem diante de um miosótis pode exclamar: “Ó flor!” Esse senso nasce da inocência e cria esse estado de alma.

A inveja faz desaparecer a inocência

O oposto a isso é o desejo do gozo, de não atingir o fim, causando a inveja e tudo quanto sabemos.

Gustavo Kralj
Caim e Abel oferecem sacrifícios a Deus – Vaticano

Há um tratado de Moral, de um jesuíta português do século XIX, que, segundo me contaram, é muito interessante na parte relativa à inveja. Afirma uma coisa que eu nunca ouvi dizer por nenhum moralista. Transmito-a, portanto, com as devidas reservas, mas percebe-se que algo assim ocorre.

O homem peca por calúnia, não só quando atribui a alguém um mal que este não fez, mas quando ele se recusa a elogiar o bem que alguém praticou.

De maneira que se o indivíduo silencia um ato ou uma qualidade de alguém, merecedores de realce, segundo esse moralista ele implicitamente calunia, porque faz um esforço para os outros verem aquele alguém menos excelente do que é.

E se o homem faz um elogio menor do que alguém merece, ele também peca, e só estará em dia com o oitavo Mandamento se tiver elogiado tanto quanto entende que aquele alguém deve ser elogiado.

Percebemos como isto contraria a inveja, porque se há uma coisa que o invejoso não quer é realçar alguém que ele acha ter algo mais do que ele mesmo, mas que ele quereria que não possuísse. Essa atitude é o contrário da inocência; o indivíduo não tem inocência na medida em que é invejoso.

Devemos nos alegrar com as qualidades dos outros

Às vezes é fácil dizer que sim. Se uma pessoa quer ser, por exemplo, um grande mecânico e tem um amigo que é, digamos, um muito bom músico, não é tão difícil para o mecânico elogiar a música que o amigo toca; mas elogiaria um mecânico melhor do que ele?

Aqui está a questão: ele ficaria alegre, vendo o mecânico consertar uma coisa que ele não foi capaz, e diria: “Sim senhor, então como se é capaz! Ótimo!” E quando ele fosse, aos olhos de terceiros, aplicar a força ou o jeito que aprendeu do outro, afirmaria: “Olha, eu vou fazer uma coisa que aprendi de Fulano.” Esta é a alma que tem inocência. E a alma invejosa, vendo a qualidade que o outro tem, diz: “Por que eu não inventei isso?”

Conclusão: antipatia pelo mais capaz, alegria com alguma coisa que lhe aconteça, em razão da qual não possa mais exercer aquele trabalho, filança, ou seja, ele repete aquele serviço, sem dizer de quem aprendeu ou, pior, afirmando: “Sabe, surgiu em minha cabeça uma ideia ótima: inventei tal coisa”. Sendo que foi o outro que inventou…

Sei que isto que estou dizendo dói e arde, desinfeta… Digo mais: desinfesta! Se alguém é muito atormentado por tentações do demônio, procure ver se combate a inveja. Se não combate, compreenda que poucas coisas são tão exorcísticas quanto acabar com a inveja.

Dr. Plinio durante uma conferência na década de 1990

E a questão da inveja vai mais longe: não basta sentir que o outro seja mais do que nós; é preciso ficar alegre, dizendo, por exemplo:

— Olhe, que bom mecânico apareceu em São Paulo!

Alguém lhe informará:

— É verdade, mas em Bruxelas surgiu um mecânico muito melhor.

— Ah! é? Ainda melhor que esse? Gostaria de conhecê-lo!

Não tenho esses interesses, entusiasmos pela mecânica, como todos sabem. Estou assim exemplificando porque, do meu remoto tempo de mocidade, ficou-me a noção de que muitos, inspirados pelo espírito moderno, acham uma beleza ser mecânico. Julgo que isso não passou, mas só pode se ter agravado. Mas quantas outras coisas há nesse sentido!

Idade Média: uma civilização onde não se sentia o sopro da inveja

Compreendemos, assim, o que vem a ser o fundo da Contra-Revolução, a qual deve ser, sobretudo, espiritual, de ordem religiosa.

Então, entendemos como seria um Reino de Maria inteiramente limpo da inveja. Considerem as figuras com que, na Idade Média, se esculpiram pessoas santas e de alta dignidade na Igreja ou na sociedade temporal. Elas têm uma paz, uma tranquilidade…; e tais figuras se encontram também nas iluminuras, nos vitrais, nas tapeçarias, por toda parte. Analisando-as, não se sente o sopro da inveja naquelas almas; são inteiramente elas mesmas e não invejam ninguém.

Um exemplo disso são os gisants1: esculturas de cavaleiros e damas como se estivessem dormindo sobre a própria sepultura, com as mãos postas e os olhos fechados. E junto à sepultura está escrito, por exemplo: “Aqui jaz o muito alto e poderoso senhor Fulano de tal, etc…” Pesquisando-se quem foi “o muito alto e poderoso senhor”, verifica-se ter sido um monsieur, um Herr qualquer2. A palavra alemã é encantadora — um Fraiherr, senhor livre. Tratava-se de um dono de uma coisa tão pequenina, que ele nem tinha sequer o título de barão; era apenas senhor de um rochedozinho com uma aldeia nas proximidades.

Acima dele havia uma série de autoridades que ele serviu, reverenciou, amou; e abaixo uma camada: os seus camponeses no meio dos quais ele, exercendo sua autoridade, viveu na paz e de quem foi a alegria. Segundo um autor, a alegria desapareceu do mundo quando os castelos se esvaziaram, tornaram-se museus. Aquela paz manifestada nos gisants se tem impressão que se comunica, por exemplo, até às dobras do vestido de uma senhora, até ao travesseiro; às vezes, o escultor, para dar mais realidade ao que faz, esculpe no travesseiro umas dobras para indicar o peso da cabeça. Aquelas dobras são bem arranjadinhas: dir-se-ia que pousou ali uma cabeça sem remorsos.

Isso exprime, em larga medida, uma civilização que não teve inveja.

Encerrando esses comentários, aqui ficamos nós esperando o Reino de Maria para o brilho de nossa vocação e para a glória da Igreja.

(Extraído de conferência de 2/10/1981)

1) Gisant, do francês: jacente, estendido, imóvel. Refere-se a esculturas estendidas sobre túmulos.

2) Monsieur, do francês, e Herr, do alemão: senhor, cavalheiro.

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