sábado, noviembre 23, 2024

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Sacralidade e beleza em duas pontes europeias

Em sua contínua busca da sacralidade e beleza nas coisas, Dr. Plinio era levado a analisar tudo sob este ponto de vista. Tecendo considerações a respeito de duas pontes — uma veneziana e outra francesa —, descreve o que elas têm de sacral e dessacralizante.

Wolfgang Moroder
Arian Zwegers

A ponte do Rialto tem como característica marcante a extrema delicadeza da estrutura do arco. Nota-se que houve a intenção de fazer a ponte coberta, de maneira a garantir os transeuntes contra a chuva. Mas essa ideia funcional foi superada de tal maneira, que nem se é levado a pensar nela diante da delicadeza das arcadas sucessivas e do movimento de ascensão de uma parte e de outra, terminando num elemento monárquico e central que dá vagamente a impressão de um nicho de imagem num arco de triunfo.

Delicadeza e seriedade

De tal modo a parte funcional foi englobada pela parte arquitetônica, artística, que uma pessoa que olhasse para a ponte do Rialto não pensaria em chuva, nem em galeria, nem em nada disso. Teria a impressão de que isso foi colocado ali em cima como mero enfeite, o qual se destaca por um misto de delicadeza e de seriedade. Há seriedade aí porque há pensamento em tudo, há um desejo verdadeiro de fazer as coisas muito bem feitas, com uma grande aplicação de espírito.

Essa aplicação de espírito, entretanto, se disfarça a si própria de maneira a se ter a impressão de que o artista que concebeu isso desenhou em poucos minutos e mandou colocar ali em cima essa estrutura. Chamo a atenção para os menores acabamentos. Notem a balaustrada como é bonita. Depois, o próprio arco da ponte, como é de um movimento delicado.

Passando por debaixo, as águas prestigiosíssimas de Veneza, que parecem carregar consigo a beleza de todos os palácios por onde elas se movimentam.

Vê-se aqui a proa de uma gôndola e outras embarcações. Na gôndola temos algo de muito delicado e que afirma vigorosamente a superioridade do espírito sobre a matéria, da arte sobre o funcional, do nobre sobre aquilo que é vulgar. O gondoleiro é um homem do povo; contudo, notem a elegância, a beleza do movimento e da posição dele; a nobreza com que ele desloca esse imenso remo. Ele está fazendo força, mas não nos dá ideia, nem um pouco, de uma força vulgar. Dir-se-ia quase que ele está executando uma figura especialmente para ficar elegante nessa fotografia.

Hierarquia de valores e predomínio do estético sobre o útil

Isso é sacral. Em que sentido é sacral? No sentido de que apresenta uma hierarquia de valores que conduz para o sacral, prepara para o sacral, sem que se possa afirmar diretamente que tenha uma nota intensamente sacral. O aristocrático, de si, tem uma parcela de sacral. Essa ponte, evidentemente, é aristocrática. O predomínio do estético sobre o útil tem qualquer coisa de sacral também, porque é uma forma de predomínio do espírito sobre a matéria.

Há qualquer coisa de sacral nesse elemento monárquico central da ponte. Poder-se-ia imaginar uma imagem colocada em cada um desses arcos, de tal maneira que não se diria que o sacral se sentiria isolado, expulso, maltratado dentro desse ambiente.

Eu deixo de me referir a esse pano, porque é uma propaganda comercial, e lamenta-se que aí esteja.

O que existe aqui de não sacral? Não há nenhum emblema, nenhum sinal religioso. A influência da Renascença quase não deixou reminiscência alguma da Idade Média dentro disso. E se é verdade que nesses arcos caberiam bustos de imagens, caberiam também bustos de grandes homens de Florença ou da Antiguidade. Num desses arcos se poderia pôr, tanto São João Evangelista, São João Batista, como Pitágoras ou deuses profanos. Quer dizer, a atmosfera da Renascença já entrou aqui. Entrou no quê? Tudo isso é muito bonito, muito nobre, mas tem qualquer coisa de fruitivo, que não foi feito para a contemplação, mas para o gozo da vida, para o prazer. E com isso vai abrindo as portas para coisas piores. Esse seria o comentário sobre a ponte do Rialto.

[Dr. Plinio comenta em seguida uma fotografia da ponte Alexandre III, situada sobre o rio Sena, em Paris.]

Doçura do gênio francês

Faz parte da doçura do gênio francês afirmar-se nas circunstâncias mais inesperadas. Esses bonitos lampadários são feitos de tal maneira que, ao menos a mim, causam a impressão de que são vidros de perfume. A forma, o colorido é tal que, se soubéssemos que se guarda perfume dentro deles, acharíamos natural. Quer dizer, há qualquer coisa de mesa de toilette nessas luminárias. Elas são tão bem trabalhadas, tão doces, tão delicadas que não parecem ter sido feitas para estar expostas à intempérie: neve, todos os ventos soprando; entretanto, no meio de tudo isso a nota francesa põe essa doçura, essa suavidade que é própria do espírito francês.

Dimitri Destugues
Ponte Alexandre III – Paris, França

Eric Pouhier
Carlos Delgado

Essa doçura, entretanto, se afirma também em uma coisa que Deus pôs na França — não foram os franceses que fizeram; eles se inspiraram na doçura da natureza da França. Vejam essa árvore reduzida apenas a um esquema, porque toda a folhagem desapareceu. Ficou só a galharia. Considerem a beleza da cor. Ela é de um marrom lindo! Percebem a delicadeza com que essa árvore deixa transparecer uma impressão de tristeza? A árvore é incapaz de tristeza, mas dir-se-ia que ela está triste, desolada. Essa galharia dá a impressão de penachos caindo; são penachos isolados que se estendem pelo céu, levados ao vento. Mas tudo tão esguio! Cada um desses galhozinhos se entronca no outro com tanta elegância e cai de um modo tão langoroso, que se diria que essa árvore é quase romântica. Não é romântica porque ela é feita pela natureza, não foi modelada por nenhum escultor.

A entrada da ponte é monumental. Uma coluna no alto da qual se encontram figuras finas, segurando espadas, e cujos braços efetuam gestos elegantes, delicados. Tudo isso dá a impressão de algo de etéreo, e também de muito nobre. A nota aristocrática está visivelmente presente na construção dessa ponte. A nota espiritual, no sentido de predomínio do espírito sobre a matéria, que a modela de maneira a se pensar numa porção de coisas espirituais, de estados de espírito do homem, também está presente.

Obra da ”Belle Époque” com eflúvios do ”Ancien Régime”

Também nessa ponte vemos o predomínio do artístico sobre o funcional. Essas são afirmações de sacralidade. Quando contemplamos essas lâmpadas, achamo-las tão bonitas que temos a impressão de serem enfeites desenhados para esse lugar, e nem pensamos em sua utilidade.

Entretanto, podemos dizer que a nota fruitiva está mais presente do que na ponte do Rialto. Essa ponte francesa é obra da Belle Époque, uma época histórica que se desenvolvia na França sob o regime republicano, mas dentro do quadro de uma Europa inteiramente monarquista e de uma sociedade francesa ainda profundamente aristocrática. Há eflúvios de Ancien Régime1 que estão presentes nisso. Mas a sensação de gozo da vida é intensa. A ideia da capital de todos os prazeres do mundo, de uma ponte construída para causar sensações agradáveis aos olhos, para divertir o homem, para dar-lhe vontade de viver nesta Terra, também parece muito presente aqui.

De maneira que esse seria o lado, a meu ver, dessacralizante da ponte Alexandre III.

Quanto à Idade Média, nem se põe sequer uma consideração a respeito. Se o Rialto tem ainda um vago perfume de Idade Média, aqui há um perfume de Ancien Régime. Portanto, um perfume muito menos denso de Contra-Revolução do que o da Idade Média.

(Extraído de conferência de 22/2/1971)

1) Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

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